Django. Melhor do que ficção

Com o filme que marca a sua estreia como realizador, Étienne Comar foi direto para a abertura da 67.ª edição da Berlinale. Política como sempre, aliás mais do que nunca

Ser político ou não ser, mudar o mundo ou sobreviver, mais do que o retrato da história de um génio do jazz e do swing cigano na França ocupada pela Alemanha, “Django” é uma reflexão sobre o lugar que devem ocupar os artistas em tempos politicamente conturbados. Mais do que conturbados, no caso, porque vamos até 1943, Paris cheia de alemães e oficiais nazis, Django com concertos lotados nas melhores salas de espetáculos de Paris, Goebbels a querê-lo na Alemanha porque os nazis também querem o swing – um swing à sua maneira, que quer dizer, por exemplo, solos que não ultrapassem os cinco segundos.

Django, cigano que em 1943 já conquistou Paris, pai dos solos que depois agarraram Jimi Hendrix, Les Paul e Jimmy Page e todos os outros, antes de ir para os Estados Unidos, bem antes, biopic sem ser para uma parte da história do músico pouco conhecida que Étienne Comar decidiu recuperar com Reda Kateb, Louise de Clerk e uma data de não-atores neste seu filme de estreia como realizador que foi direto para a abertura da 67.ª edição da Berlinale, que decorre até 19 de fevereiro na capital alemã. Uma escolha que é um ato político por si só, numa edição que Dieter Kosslick, diretor do festival, quis que fosse mais política que sempre é (no ano passado o Urso de Ouro foi, no meio da crise dos refugiados, para “Fuocoammare”, documentário de Gianfranco Rosi sobre os que vivem e os que chegam a Lampedusa). “Sem utopias não seremos capazes de criar o mundo de amanhã”, escreve, notando como perante o “presente desconcertante” em que vivemos, “muitos artistas do cinema andam à procura de respostas no passado”.

Nessa lógica vem “Django”, ideia há muito tempo na cabeça de Comar, produtor de “Dos Homens e dos Deuses” (2010), Timbuktu” (2014) e “Meu Rei” (2015), que partiu do romance de Alexis Salatko sobre Reinhardt para esta ideia que, de qualquer modo, já era antiga. “Há muito tempo que queria fazer o retrato de um músico atormentado pelos problemas da existência. Por volta dos 40 voltei a mergulhar na música ao entrar numa banda de rock com amigos e adorei, foi fascinante. Tinha-me esquecido de como era fácil isolarmo-nos do mundo exterior quando estamos a tocar. Todos nós estávamos em fases complicadas das nossas vidas e superámos essas dificuldades divertindo-nos a tocar juntos.”

O resto foram as memórias das conversas com pai, fã de Django desde o tempo em que ele se fez músico para se salvar da perseguição de que os ciganos eram alvo por toda a Europa. Do tempo em que a ideia era swingar para esquecer a guerra, a ocupação alemã, a catástrofe em suspenso naqueles minutos em que a música durava. E “Minor Swing”, “I’ll See You In My Dreams” estão cá todos, interpretados pelo Rosenberg Trio, primeiro com o Quinteto do Hot Club francês, em Paris, depois no acampamento cigano que os alemães foram incendiar junto à fronteira com a Suíça, para onde Django tentava fugir com a mulher, a mãe e o macaco, depois da recusa a fazer uma digressão pela Alemanha nazi.

Retrato a fugir aos clichés das histórias que se contam da guerra, período pouco retratado da vida do músico que Comar escolheu para provar o poder da música, o mesmo de que fala Kateb quando recorda o tempo da rodagem, da semana inteira passada em palco a pedir repetições de takes só pelo prazer de poder tocar mais uma vez. “A música nem sempre serviu para fazer das pessoas ativistas mas já ajudou a mudar o mundo e a maneira como olhamos para ele também”, disse o ator na conferência de imprensa em Berlim com o realizador e Cécile de France, que sublinhou a importância do envolvimento com a comunidade cigana na preparação do filme que dizem tê-los recebido de braços abertos.

E bem porque “Django” é uma homenagem a eles e a todos os sem-terra, com todos os paralelismos que isso tiver com as questões de fronteiras e de refugiados que se discutem e que continuam por resolver hoje. “Há muitos paralelismos que podem ser estabelecidos com a realidade que vivemos hoje”, diz Comar. Portanto vem como final perfeito a recriação pedida a Warren Ellis (Dirty Three e Nick Cave and the Bad Seeds) para rematar o filme com “Requiem for Gypsy Brothers”. Requiem composto por Django, mesmo sem saber compor, e tocado de regresso a Paris em 1945, por altura da libertação da França, mas que não chegou aos dias de hoje e que Comar decidiu imaginar. “A única coisa que nos chegou foi a introdução que o ouvimos tocar no órgão, foram as únicas notas que chegaram a ser escritas e quis pedir a um músico contemporâneo que fizesse a sua versão do que esse requiem seria.” O órgão, as cordas e as vozes em romani, como se crê que seria o original. “Claro que Django terá composto algo diferente. Menos lírico, mais caótico, mas acho que resulta.”