Gambito de dama e Madre Teresa

A questão é que, face ao alerta de Mendes para a ameaça de uma «tempestade política» – logo bem entendido por Marcelo e por Costa –, Centeno deveria também ter imediatamente percebido que não havia condições para manter tal compromisso.

Os grandes mestres do xadrez, quando a jogar com brancas e tendo a vantagem do primeiro lance, apreciam particularmente o movimento de saída com peão de dama. Dizem que, psicologicamente, fragiliza de início os adversários menos experientes, provocando-os para uma partida mais aberta e de combinações e sacrifícios aparentemente mais complexos.

No tabuleiro da política portuguesa dos últimos dias, estando um ministro em xeque, Marcelo Rebelo de Sousa veio a jogo com um… gambito de dama (nome pelo qual é conhecida a saída mencionada).

Ouvidas ou lidas as declarações do Presidente da República a propósito da trapalhada que envolveu a nomeação e exoneração da anterior equipa dirigente da Caixa Geral de Depósitos, liderada por António Domingues, foram as mesmas tidas como uma tomada de posição de Marcelo em defesa do ministro das Finanças, sob fogo da Oposição, por alegadamente ter mentido em comissão de inquérito parlamentar. E foi essa a leitura imediata e mediatizada.
Ora, tal como no xadrez, nem sempre a jogada mais óbvia é a mais acertada – antes pelo contrário.

Na lógica xadrezística, o sacrifício de um simples peão, por regra, traduz-se numa combinação que implica uma vantagem final – e às vezes decisiva – para o sacrificador. Como, não raro, uma aparente jogada defensiva pode revelar-se o princípio de um ataque letal.

Ora, o que fez Marcelo?

Perante as denúncias da Oposição (PSD e CDS) de que Mário Centeno terá mentido em comissão parlamentar sobre a existência de negociações do Governo com António Domingues para eximir os então novos gestores da Caixa de apresentarem as respetivas declarações de rendimentos no Tribunal Constitucional, o Presidente veio a público reafirmar que o primeiro-ministro sempre lhe garantiu que não era essa a posição do Executivo e, como assim, também a do ministro das Finanças.

E disse mais: que o Presidente e o Tribunal Constitucional, tal como o primeiro-ministro, jamais admitiram excecionar os gestores do banco público da obrigatoriedade de apresentação das declarações de rendimentos. «Era impensável».

Bom, no início de junho de 2016, o Conselho de Ministros aprovou um decreto-lei sobre o Estatuto do Gestor Público que determinava «a não aplicação do regime previsto naquele estatuto aos administradores designados para instituições de crédito integradas no Setor Empresarial do Estado, qualificadas como ‘entidades supervisionadas significativas’» – sendo que a única instituição de crédito do SEE é a Caixa Geral de Depósitos.

Mais uma vez, a leitura imediata e mediatizada foi a de que tal diploma servia apenas e só para permitir que os vencimentos de António Domingues e seus pares não ficassem abrangidos pelo teto salarial imposto aos gestores públicos (o que inviabilizaria a sua contratação) e pudessem ser consonantes com os da banca privada.

E foi Marques Mendes, no seu programa televisivo dominical, quem veio alertar para a «gravidade» de tal diploma, porque isentava os gestores da CGD da apresentação da declaração de rendimentos no TC.

Quer dizer, na verdade, tanto o Governo, ao aprovar o dito decreto-lei, como o Presidente, ao promulgá-lo, sancionaram o compromisso que Centeno obviamente assumiu com Domingues – quer em matéria salarial, quer no que respeita à entrega das declarações de rendimentos no TC.

A questão é que, face ao alerta de Mendes para a ameaça de uma «tempestade política» – logo bem entendido por Marcelo e por Costa –, Centeno deveria também ter imediatamente percebido que não havia condições para manter tal compromisso.

Ora, em vez de assumir isso mesmo perante os novos gestores da Caixa e, publicamente, ter esclarecido de vez a posição do Governo, retificando-a, Centeno fez exatamente o contrário, negando as evidências e procurando refugiar-se em justificações absurdas. E enredou-se numa teia de que já só muito dificilmente conseguirá livrar-se.

Mário Centeno já provou as suas qualidades técnicas e de negociação nos euroforos, mas também já sobejamente deu provas da sua inabilidade política.

Centeno sabe que negociou e o que negociou com Domingues (aliás, já todos sabemos e estamos esclarecidos).
Mas o que não sabe é como descalçar a bota de tantos erros e mais um em todo este conturbado processo.
Diz-se o ministro das Finanças chocado com a tentativa de assassínio de caráter de que se considera alvo por parte da Oposição. Mas a verdade é que foi ele quem não só não honrou os compromissos que obviamente assumiu com António Domingues – gestor experimentado e com tamanha e incontestada reputação jamais aceitaria o convite que lhe foi dirigido sem ter acertado, e por escrito, as condições para a sua aceitação –, como o coloca numa posição de descrédito público incompatível com a idoneidade que lhe é por todos reconhecida.

Por isso é que, ao agir como agiu, Centeno caiu nas armadilhas de um jogo que não é o seu.

Mestre no xadrez da política, Marcelo sabe-o bem. Por isso, não veio defender Centeno coisa nenhuma. Pô-lo foi sob xeque e quase sem saída, ameaçando o mate.

Porque Marcelo, em matéria de política, pode ser afetuoso e popular, mas, ao contrário do que disse em Madrid, está longe de ser a Madre Teresa de Calcutá. É verdade que procura «espalhar amor fraterno e paternal», mas não resiste, como nunca resistiu, a uma boa patifaria.

Para se pôr a salvo e, de caminho, salvar António Costa, Marcelo, se for caso disso, já deixou claro que não hesitará em dar Centeno ao sacrifício.