Transparências, jogos de espelhos e câmaras escuras

A exposição ‘Da Fuga e do Encontro: Inversões do Olhar’, no Espaço Novo Banco, propõe cruzamentos surpreendentes e novas leituras de uma magnífica coleção de fotografia. O curador, Ségio Fazenda Rodrigues, fez-nos uma visita guiada e revelou-nos as afinidades secretas entre as obras escolhidas.

Sendo Da Fuga e do Encontro assumidamente uma exposição sobre o olhar, causa alguma estranheza que a primeira imagem nos mostre uma pessoa de olhos fechados. Sérgio Fazenda Rodrigues, o curador, justifica a opção: «A exposição anda à volta do que é a noção do olhar e donde ele provém: se provém do cérebro, se da emoção; se é uma coisa virada para fora, se é uma coisa virada para dentro».

Sérgio Fazenda faz uma analogia: «Há um termo inglês que se adequa: gaze. Diria que quando olhamos demoradamente para qualquer coisa há um primeiro instante em que decidimos o que queremos focar e algures, com a passagem do tempo, o nosso olhar solta-se e já não estamos a olhar para fora, estamos a olhar para dentro. Eu queria perceber quando é que esse instante ocorre e como ele se processa».

A primeira sequência de fotografias tem pois a ver com o olhar, os olhos – abertos ou fechados – e a parte do corpo onde eles se encontram, a cabeça. «Sempre com esta noção da cabeça como lugar do nosso olhar, seja em sentido físico, porque é o lugar onde estão os olhos, seja num sentido mais profundo relacionado com o nosso imaginário, do que vemos e não vemos, do que está presente ou ausente», comenta o curador. Nas obras expostas, por vezes os olhos estão mesmo lá, outras vezes surgem apenas sugeridos, como no caso de uma imagem de Ignasi Aballí, artista de Barcelona que «pega em recortes de jornal, amplia essas imagens e retira-as do contexto», ou de um trabalho de Catarina Botelho, com fotografias de almofadas amachucadas, «o lugar do repouso da nossa cabeça».

Os jornais voltam a aparecer numa fotografia de grandes dimensões da secção de periódicos da Biblioteca da Universidade de Coimbra, da autoria da alemã Candida Höfer. «Tem a ver com uma ideia de memória e arquivo, mas também de acontecimento que se arruma e se organiza e está registado em cada um destes jornais». A colocação dessa fotografia, que representa um espaço curvo, na parede do fundo tem ainda outra intenção: «Esta brincadeira da curva de alguma forma ecoa o movimento que fazemos no espaço da exposição».

Janelas, enquandramentos e pontos de luz

A noção de espaço é muito cara ao curador, ou não fosse ele licenciado em Arquitetura. Deixou de praticar há já alguns anos para se aproximar do universo da arte contemporânea, mas refere que a sua formação continua a ser uma ferramenta muito útil. «O processo de criar o discurso curatorial e é muito semelhante ao de pensar um projeto de arquitetura».

O curador destaca em seguida uma imagem de Wolfgang Tillmans «que é fascinante e que faz a ponte para a segunda linha narrativa», uma reflexão sobre o enquadramento do olhar (e das imagens). A foto de Tillmans apresenta «uma janela que está a acabar de ser pintada e temos a ideia da janela como enquadramento que delimita a visão, mas sobretudo uma articulação daquilo que vemos para lá da janela [árvores, o exterior] e, através dos jornais [usados para que a tinta não caia onde não deve], aquilo que retemos para trás. Aquilo que aparece através da transparência do vidro e aquilo que nas memórias do jornal fica cristalizado para trás».

Nesta mesma sala há um retrato de Maria João Bastos por Julião Sarmento acompanhado por uma banda sonora (de cada um dos lados dos auscultadores a atriz vai dizendo coisas contraditórias, como «sai daqui» e «fica comigo» ou «amo-te» e «odeio-te»). Aqui, é o espectador que se sente observado. «Depois há esta sequência do Gregory Crewdson [Dream House], um fotógrafo incrível, que faz um trabalho mirabolante e fotografa isto em estúdio de cinema». De resto, Crewdson trabalha com atores como Gwineth Paltrow, Tilda Swinton ou William H. Macy. «O ambiente é-nos estranhamente familiar, tem a ver com o lado doméstico, mas as situações representadas são perturbadoras», resume Fazenda.

Voltamos a encontrar Julião Sarmento na imagem de «uma mulher que no lugar da cara nos apresenta um espelho que nos devolve o olhar. O círculo [do espelho] remete para a ideia de ponto focal. E quando avançamos temos outra imagem do Igani Aballí com a mesma lógica: este é o segundo ponto-chave. Este pontilhado, que resulta da ampliação da imagem, ajuda-nos a equacionar como o ponto constrói ou contém ou não qualquer coisa».

A ideia do ponto – e em particular do ponto focal – volta a aparecer no trabalho de Abelardo Morell, fotógrafo cubano sediado nos Estados Unidos. «O que o Abelardo Morel faz é construir o princípio da máquina fotográfica, a câmara escura. Ele encerra o quarto de hotel, deixa-o às escuras, com apenas um ponto de luz a entrar pela janela e regista a imagem que existe lá fora». Dessa forma, «aquilo que é exterior passa a integrar o interior do quarto. Mais uma vez temos esta relação entre qualquer coisa que é muito grande e vasta, neste caso as paisagens de Nova Iorque e de Londres, e qualquer coisa mais contida, o quarto de hotel».

Fotografias quase abstratas

O fotógrafo Richard Misrach, através de uma imagem monumental de duas raparigas mergulhadas numa imensidão de água azul, «introduz-nos a ideia do limite. Percebemos que é uma porção de qualquer coisa muito maior e é isto que nos convida a uma imersão na imagem e que nos entrega à terceira parte da exposição, em que há uma investigação sobre o que, numa ausência de limite, constrói uma referência para o nosso olhar».

Aqui, apresentam-se imagens quase destituídas de elementos identificáveis. Num caso, é uma pequeníssima gaivota que remete para uma praia, noutro são pequenos pontos de luz que sugerem um povoado ou uma estrada. A exposição termina com um quadrado onde surge o texto integral do Retrato de Dorian Gray, a obra de Oscar Wilde sobre um homem amoral que permanece sempre jovem, enquanto uma pintura que o representa o mostra cada vez mais velho. «Adelina Lopes transcreveu o texto todo e fotografou-o», explica Sérgio Fazenda. «O que vemos aqui é o resultado de uma experiência interior, a leitura, e assim liga ao início, àquela imagem de uma personagem de olhos fechados».