Luiza Neto Jorge. Resistir, suberverter, (re)criar

Rebelou-se contra a ditadura monótona dos corpos vestidos, celebrou o corpo e a experiência erótica. Tomou em mãos uma tarefa tipicamente masculina ao escrever Dezanove Recantos, a epopeia de que o seu tempo precisava.

Poeta, com uma das vozes mais marcantes da segunda metade do século XX, senão de toda a poesia portuguesa, Luiza Neto Jorge (10 de Maio de 1939 – 23 de Fevereiro de 1989) levou longe as possibilidades do poema.

Figura de lugar reconhecidamente destacado no movimento inovador que ficou conhecido como Poesia 61, movimento que procurava revitalizar a palavra como unidade central do texto poético, a autora do Ciclópico Acto teve numa mão a pena e na outra sempre o aço temperado das palavras, meio de resistência e arma de ataque contra a opressão do tempo que lhe coube viver e o aviltamento da criatividade artística.

Os seus livros, que só de modo inevitavelmente redutor aceitam a etiqueta (pós)surrealista, são um breviário de guerrilha que recusam tanto os modelos que o realismo privilegiara como a base ética que os escorava. Espadas, punhais, adagas, naifas, arpões, farpas, flechas fazem a sua aparição num universo textual de liberdade indómita.

Distante dos valores rígidos de uma ordem social imposta, onde à mulher cabia observar certas regras apetecidas pelo sistema de valores promovido pelo Estado Novo, Luiza Neto Jorge sabia-se fora dos regulares padrões femininos. Dinamitando a tradição, transgredindo com as suas «escritas daninhas» – assim as definia – as abordagens tradicionais da realidade, afrontando uma sociedade discriminatória, rebelou-se contra a ditadura monótona dos corpos vestidos, celebrou o corpo e a experiência erótica, que homologa ao acto de escrita, e tomou em mãos uma tarefa tipicamente masculina ao escrever Dezanove Recantos, uma «epopeia sumária» (assim a designa o irónico subtítulo) de narração descontínua que revê toda uma linhagem patriarcal, relatando «outro tipo de acções heróicas – como viver e permanecer vivo, inventar a nova face de tudo, amar desvendando, desfalsificar – que outras acções heróicas não há!»

Desta epopeia não se conhece notícia de solicitação persistente, mas a verdade é que o Portugal politicamente repressivo e discriminatório, produtor de quadros de amedrontamento e suspeição, carecia de um livro que o reflectisse. Centrados no comum existir, estes re-cantos, que têm como significativo centro gravítico o verbo ‘contornar’, fazem inflectir o modelo épico num sentido substancialmente novo que recusa o heroísmo viril, como o título desde logo indicia ao aludir aos dez cantos da epopeia de Camões para de imediato os desequilibrar.

Na sua «Minibiografia», a autora de «O corpo insurrecto» tracejou um programa de vida que encontrou na sua poesia, esquiva ao cerco hermenêutico, a justa forma de expressar-se: «Diferente me concebo e só do avesso / o formato mulher se me acomoda.»

O ímpeto transformador daquela que nos ensinou que «o poema ensina a cair / sobre os vários solos / desde perder o chão repentino sob os pés / como se perde os sentidos numa queda de amor», logo se revelou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde ingressa em 1957 para frequentar o curso de Filologia Românica. Aqui, dirige o Círculo de Teatro de Letras, promovendo a apresentação de peças de Ionesco e Thornton Wilder. Do teatro voltará a abeirar-se, mais tarde, pela via da tradução, um domínio que, ocupando uma posição excepcionalmente relevante no conjunto da sua obra, lhe permitirá alcançar um amplo prestígio e o reconhecimento de um público vasto.

Em 1961, interrompe o curso para ir leccionar no Liceu de Faro. Nesta cidade, onde passa a viver, estreitando laços de amizade com Ramos Rosa, Casimiro de Brito e Zeca Afonso (então professor na Escola Comercial e Industrial de Faro) edita o seu livro de estreia, A Noite Vertebrada (1960), a que se segue, no ano imediato, a plaquete Quarta Dimensão, no âmbito da publicação colectiva Poesia 61.

Ao longo da década de 60, período em que vive quase permanentemente em Paris, produz o restante da sua exígua obra poética, reunida em 1993 (Poesia, Assírio & Alvim): Terra Imóvel (1964), O Seu a Seu Tempo (1966), Dezanove Recantos (1969), Ciclópico Acto (1972) e Os Sítios Sitiados (1973), o termo próximo de um percurso poético que caminha das palavras-imagens para uma reconquista da discursividade.

Findo este ciclo, Luiza Neto Jorge recolhe-se ao silêncio – apenas quebrado em 1984 com a edição, em circuito privado, de um livro artesanal, 11 Poemas, de que foram tirados apenas 100 exemplares – e o seu nome, ao longo dos últimos 16 anos, passaria a estar associado à arte imensa de traduzir (Anaïs Nin, Boris Vian, Breton, Céline, Éluard, Goethe, Ionesco, Leopold, Lorca, Senghor, Marguerite Yourcenar, Sade, Stendhal, Verlaine, Witold Gombrowicz e muitos outros) e de adaptar, com destaque para a adaptação teatral de O Fatalista, de Diderot (1978). A autora assinou também diálogos para filmes como Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos, ou A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha.

No desejo de agarrar o tempo que a doença respiratória crónica há muito lhe vinha consumindo, Luiza Neto Jorge viveu até ao último fôlego a sua vida breve.