Zeca Afonso. O rosto da utopia

À inutilidade de «cantar o cor-de-rosa e o bonitinho» respondeu com o seu génio criador, sempre interventivo. Quando passam 30 anos sobre a sua morte, são múltiplas as iniciativas que o evocam um pouco por todo o País. 

«Insisto não ser tristeza» – um verso de Zeca Afonso – é o lema das comemorações que assinalam os 30 anos da Associação José Afonso, presidida por Francisco Fanhais, e o legado daquele que lhe deu nome. Pretendem contrariar tendências pessimistas e vão prolongar-se ao longo do ano um pouco por todo o País, com concertos, declamações, exposições, exibições de filmes e documentários, debates, entre outras iniciativas.

«Desta canção que apeteço», o título de uma exposição sobre a obra discográfica de José Afonso, «Geografias de uma vida» e «30 anos da AJA» dão título a exposições que vão estar patentes em Évora, Mira-Sintra, Santarém, na Fundação Oriente, em Lisboa, Abrantes, Almada, Santo André, Santiago do Cacé, no Thêatre Molière (Bruxelas), Leiria, Évora, Setúbal e Faro, integrando a programação da iniciativa.

Hoje, haverá um tributo ao genial trovador no Conservatório Gulbenkian, em Braga, que reunirá o Grupo Canto d´Aqui, Artur Caldeira, Ana Ribeiro e a cantora galega Uxia.

Zeca Afonso é a imagem mesma da utopia. Ao seu nascimento, em Aveiro, associou «uma luz muito difusa, translúcida», talvez a mesma que, acendida de esperança, mais tarde saberia erguer, com enorme talento, acima de um velho tapume de opressão e de censura. Avesso a espíritos de tutela, a feudos e a dimensões estreitas, sonhava com a cidade sem muros nem ameias. Não por acaso, a escolha da senha para o desencadeamento das operações militares que a 25 de Abril de 1974 punham fim a quase meio século de ditadura em Portugal, recaiu sobre uma criação sua: «Grândola, Vila Morena».

O Dr. José Afonso, na boa tradição coimbrã exibida nas capas dos seus primeiros discos – Baladas de Coimbra, Baladas e Canções –, Zeca Afonso ou apenas Zeca para a sua imensa roda de amigos, não foi apenas o trovador da luta pela liberdade, o cantautor-símbolo da revolução de Abril ou a figura central do movimento de renovação da música popular portuguesa, iniciado na década de 60. Criador notável, com uma extensa obra poética hoje rodeada da atenção crítica dos académicos, foi um músico de excepção, um intérprete de rara sensibilidade, referência de gerações sucessivas. 

Zeca Afonso somou ao percurso africano do império – Angola, depois de uma primeira Infância em Aveiro, Moçambique, onde permanece até aos 10 anos e onde voltará em 1964, dando início ao seu «baptismo político» –, as andanças (ou voltas) de andarilho. Chegado a Coimbra em 1940, para frequentar o Liceu D. João III, os seus olhos, habituados ao ambiente de Belmonte, cidade onde à guarda de um tio salazarista fervoroso (o mesmo que lhe incutiu o gosto pela música) disse ter vivido «o ano mais desgraçado» da sua vida, como que se lavaram naquela atmosfera de boémia e de irreverência académica.

Em Coimbra, o autor desse hino mobilizador que é «O que faz falta» fez serenatas, entrou no viver desgovernado das Repúblicas, espécie de oásis de liberdade onde cantava à noite, viveu a mística da Briosa, deu provas de desaprumo militar, de absoluta incapacidade de «encornar sebentas» e de frequentar, sem falhas nem chumbos, o curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras, que conclui em 1961 com a apresentação da tese Implicações Substancialistas na Filosofia Sartriana. Em Coimbra, Zeca Afonso, que faz a sua estreia discográfica logo em 1953, viu, enfim, esboroar-se o «herói de capa e batina», pela perda da visão poético-estudantil, que, acelerada pelas dificuldades financeiras, deu lugar a uma tomada de consciência dos problemas sociais. «Menino do Bairro Negro», tema inspirado nos meios sociais miseráveis do Porto, e «Vampiros», um dos símbolos maiores da resistência antifascista até ao advento da liberdade, estavam, por esta altura, na forja.

À actividade itinerante de professor – em Mangualde, Aljustrel, Lagos, Faro, Alcobaça – corresponde uma «acção de carácter existencial», inscrevendo-se à margem dos programas oficiais. Em 1967, regressado de Moçambique «em estado de revolta» e esgotado, não pela experiência da docência nem pela intensa actividade cultural, social e política que ali desenvolvera, mas pelo próprio sistema colonial, é colocado no Liceu Nacional de Setúbal. Definitivamente situado no campo de oposição ao salazarismo, a sua acção não se limita, entretanto, à sala de aula. Convidado a cantar nas colectividades da Margem Sul e, mais tarde, nas associações académicas, passa a viver com a PIDE à ilharga, intimidando, cancelando espectáculos, proibindo a radiodifusão das suas canções.

Impedido de exercer a sua actividade de professor a partir de 1968, por razões políticas, vê-se obrigado a encarar mais seriamente a carreira musical. Da sua actividade criativa, desenvolvida ao longo de mais de 30 anos repletos de aventuras fascinantes, marcadas pelo seu génio criador e pela coragem da sua postura cívica, resultaram discos marcantes de que há sempre que destacar Balada do Outono (1960), o LP Cantares de Andarilho (1968), o Álbum Traz Outro Amigo Também (1970), Cantigas de Maio (1971), representando este o momento de viragem para formas de acompanhamento instrumental mais enriquecidas e elaboradas.

Aos entusiasmos heróicos do período revolucionário de Abril seguiu-se o desencanto dos anos 80, agravado pelas renovadas formas de opressão e pela doença incapacitante, mais e mais cruel. A morte saiu à rua na madrugada de 23 de Fevereiro de 1987. Zeca Afonso, interventivo até ao fim, soube esperá-la com lucidez crua e um apurado sentido de humor.