Médicos mudam reuniões para hotéis e hospitais privados

Bastonário dos Médicos diz que as novas regras de relacionamento do SNS com a indústria farmacêutica e tecnológica são um «tiro nos pés». Setor avisa que decisão do Governo pode ter o efeito contrário e diminuir transparência. E ainda retirar «prestígio» ao setor público. 

As regras entraram em vigor a 5 de fevereiro e Miguel Guimarães, bastonário dos Médicos, tem recebido dúvidas por email e telefone quase diariamente. A última chegou na quinta-feira. Uma médica de um hospital, que não identifica, telefonou com um problema em mãos: estava a organizar um congresso na unidade com oradores estrangeiros e apoio da indústria farmacêutica para as despesas e tiveram de mudar o evento para um hotel da zona, já que passaram a estar proibidas as reuniões com patrocínio da indústria farmacêutica nos estabelecimentos do SNS. «Vão para um hotel porque não há nenhum hospital privado no local em causa, que seria outra alternativa, e mesmo assim não sabem o que vão fazer para poder receber os apoios da indústria para o alojamento», diz Guimarães. «Dei-lhes a minha opinião: os laboratórios podem pagar diretamente as despesas, seja o hotel, as viagens e alojamento dos oradores convidados. Se não for possível, que criem uma pequena empresa para poderem organizar o evento, pagarem as contas e fecharem as contas da empresa».

Mais ou menos transparência?

Em causa está o decreto-lei 5/2017, publicado a 6 de janeiro, e que limita ofertas e patrocínios das empresas que fornecem medicamentos e dispositivos médicos aos estabelecimentos e serviços do Ministério da Saúde. A sugestão de Miguel Guimarães levanta dúvidas que o próprio reconhece: o futuro será mais transparente? 
O diploma, que determina que ações de natureza científica ou outras não podem ter caráter promocional nem ser patrocinadas por produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos, gerou polémica. A Associação Portuguesa da Industria Farmacêutica (Apifarma) diz ter sido «apanhada de surpresa».

A Ordem dos Médicos, que o diploma refere ter sido ouvida no âmbito do processo, opõem-se terminantemente e frisa que está em causa a formação contínua dos médicos do SNS que, à falta de verbas do Estado para esse efeito, depende dos patrocínios. Um dos primeiros médicos a pronunciar-se publicamente foi António Araújo, diretor do serviço de Oncologia Médica do Centro Hospitalar do Porto e irmão do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde Fernando Araújo. Numa carta aberta, o médico que preside o Conselho Regional do Norte da Ordem questionou quais os planos da tutela depois de implementar estas regras. E sublinhou os riscos. «Sabendo que o circuito do dinheiro que era despendido pela indústria farmacêutica na formação era, até agora, relativamente fácil de ser escrutinado, não estarão a criar condições para alternativas menos transparentes?». 

A 30 de janeiro, dias antes de o decreto-lei entrar em vigor, o Infarmed emitiu uma circular a esclarecer o que estava em causa. Os eventos científicos podem continuar a ter lugar no SNS, desde que sejam organizados ou patrocinados por outras entidades que não empresas, como sociedades científicas ou associações profissionais. E as empresas poderão fazer sessões de informação coletiva sobre os seus produtos no âmbito das regras da informação médica. De resto, as reuniões que acontecerem fora do SNS com patrocínio carecem de autorização, assim como qualquer outro donativo, que só poderá ser aceite se a tutela considerar que não fica comprometida a isenção e a imparcialidade.
Para Miguel Guimarães, mesmo depois dos esclarecimentos, as regras arriscam ter o efeito contrário ao que o Governo pretende: diminuir a transparência. Se os profissionais de saúde tiverem de constituir empresas para organizar os eventos fora dos hospitais ou se o dinheiro para uma determinada ação chegar através de sociedades médicas, estas patrocinadas por farmacêuticas, será mais difícil rastrear qualquer conflito de interesses. «Até aqui, estávamos obrigados já a divulgar todos os apoios na plataforma de transparência do Infarmed e qualquer um podia ver que a direção hospitalar recebeu determinado montante para efeito x. Isso pode ser escrutinado por toda a gente, em última instância pelo Tribunal de Contas. Em termos de transparência, o Estado estava numa situação mais confortável do que estará daqui para a frente».

Eduardo Pinto Leite, vice-presidente da Apifarma, concorda com as preocupações do bastonário e sublinha que a Apifarma, desde o primeiro momento, contestou o decreto-lei. Entrou em vigor dias depois de ter sido renovado o protocolo entre as farmacêuticas e o Estado para a sustentabilidade do SNS, uma relação de parceria que não é afetada, garante, mas não deixa de parecer fragilizada. 

Após a tomada de posição da Apifarma e dos médicos, o Governo não recuou, mas o responsável acredita que o tempo mostrará se é necessário introduzir alterações e se houve ganhos, o que não anteveem. «Do ponto de vista da transparência, Portugal já era dos poucos países europeus que tinha uma plataforma de transparência onde todas as transações têm de ser declaradas». O responsável sublinha que a Apifarma, que representa o setor farmacêutico nacional e faz parte da Federação Europeia das Indústrias e Associações Farmacêuticas (EFPIA), foi a primeira associação patronal portuguesa a adotar um código deontológico, em 1987, que tem vindo a ser objetivo de sucessivas adaptações às regras internacionais. Quanto aos esquemas que poderão ser adotados pelos estabelecimentos e profissionais do SNS para continuarem a ter acesso aos apoios, Pinto Leite admite que existem riscos acrescidos e que, do lado das empresas, a flexibilidade não é total.

Por exemplo, pagar diretamente contas de hotéis ou catering vai depender das regras de cada firma. «Pode dar-se o caso de só poderem ser apresentadas despesas relativas a entidades de saúde, o que não é o caso da hotelaria». Se assim for, o apoio não é possível. 

Se o resultado em termos de transparência não é claro, a preocupação de Miguel Guimarães vai mais longe. «Se isto retirar eventos dos hospitais públicos que por vezes são apoiados por organizações científicas internacionais, e se esses encontros passarem a ter lugar nos hospitais privados, estaremos a tirar prestígio ao SNS», sublinha o bastonário, que avisa que as sociedades médicas são entidades privadas que não estão obrigadas a organizar eventos no SNS – podem fazê-lo onde entenderem. As equipas hospitalares públicas perdem autonomia para organizar as suas iniciativas e pode diminuir o acesso dos médicos à formação e a qualidade da mesma. 

Miguel Guimarães fala de um «tiro nos pés» e acredita que o diploma, como está redigido, levanta outros problemas. Solicitaram pareceres jurídicos que alertam que, se a lei fosse cumprida ipsis verbis, vedaria até ensaios clínicos no SNS. Perante isto, Guimarães defende que o diploma deve ser revogado. Outra solução requereria um compromisso maior do Estado: «Estaremos a falar de um investimento de 4 a 5 milhões/ano. Até lanço um desafio: acabe-se com o apoio da indústria farmacêutica e o Estado que garanta essas verbas para assegurar a formação contínua dos seus trabalhadores». Mas aqui o médico deixa um aviso: embora a preocupação da tutela seja a transparência nas relações, alguns hospitais usavam parte das verbas doadas para completar o orçamento e fazer obras pendentes, denuncia. 
 
420 mil euros em donativos ao SNS declarados este ano 

Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, admite que as novas regras poderão ter algum impacto, mas desvaloriza a polémica que se instalou em torno deste assunto. No caso dos eventos científicos, poderão ser patrocinados pelas sociedades médicas. Já donativos de equipamentos ou outros materiais, que terão de ser autorizados, podem requerer ‘estratégia’ do lado das unidades, mas não é impossível mantê-los. «Se convidarem um consórcio de empresas concorrentes entre si a participar, haverá menor risco de ser alegado um conflito de interesses», exemplifica. Lourenço admite, ainda assim, que a perda de alguns eventos para hospitais privados e outros locais poderá retirar verbas que os hospitais faturavam com o aluguer dos seus auditórios. «Teremos de encontrar outras fontes de receitas».

E o impacto global será grande? Embora a plataforma de transparência do Infarmed não indique datas, uma análise aos dados reportados revela que as farmacêuticas e tecnológicas registaram, só este ano, donativos no valor de 420 mil euros aos hospitais do SNS e administrações regionais de Saúde. Uma vez que as regras entraram em vigor a 5 de fevereiro e que as empresas têm 30 dias para comunicar, o valor dirá apenas respeito aos patrocínios e apoios entre dezembro e janeiro, que daqui para a frente estão condicionados a autorização prévia da tutela.. 

O mesmo foi confirmado ao SOL pelo Infarmed, que sublinha que os «benefícios concedidos anteriormente não estavam abrangidos por estas regras» Ao todo este ano, até à data, foram declaradas 117 transações tendo o SNS como destino, 80 para apoios no âmbito de reuniões, congressos e jornadas científicas. O maior donativo foi um ecocardiógrafo de 72 mil euros, concedido pela Actelion Pharmaceuticals ao Centro Hospitalar do Porto.