Nasceu em Nova Iorque, formou-se em Edimburgo e em Londres, entabula conversa em português e inglês. Paula Lobo Antunes, 41 anos, atriz, ar de menina. Uma conversa sobre o filme da vida de uma mulher que cresceu entre duas linhas: a do politicamente correto – que a teria tornado numa bióloga – e o coração de atriz. O resultado está à vista.
Se vamos fazer o filme da sua vida comecemos em Nova Iorque. Nasceu lá, ali morou até aos cinco anos. Quais são as primeiras memórias que tem?
O primeiro dia de escola, de ir no autocarro e muitas vezes o meu pai ir connosco. Lembro-me que ia de fato e com a sua maleta e limpava-me os bigodes do leite com o cuspo da língua dele, que era das coisas que mais abominava. Prometi que nunca faria isso mas também faço à minha filha (risos). Lembro-me do meu quarto ser completamente espelhado. Nessa altura era muito vaidosa, hoje já não sou tanto. O meu quarto era ligado com o da minha irmã João, era um bocado um closet.
Onde moravam?
Em New Jersey. Inicialmente vivíamos em Nova Iorque, os meus pais trabalhavam no hospital Presbyteran Columbia, ainda estavam a acabar o curso de medicina e a fazer a especialidade. Mas a nossa casa já tinha levado com alguns tiros, algo completamente normal e como éramos três crianças mudaram-se para New Jersey. Tínhamos mesmo aquela casa típica com as vedações, tipo sonho americano.
Falou da escola como primeira memória…
Sim, mas eu odiava! A minha irmã estava na sala ao lado, chorava e ia ter com ela e ficava na aula dela. Não sei porque odiava, talvez não estivesse preparada.
Mas ainda falamos de uma espécie de infantário, certo?
Sim, numa escola primária. Mas até tivemos direito a um graduation, com aqueles chapéus e tudo. Lembro-me perfeitamente do vestido, a minha mãe comprou um vestido branco para a minha irmã João e um amarelo para mim. Eu era muito pirosa. Tinha um gira-discos daqueles pequeninos de plástico e tocava sempre a música da Carly Simon que era o ‘You’re so vain’. Achava mesmo que a música era sobre mim. Das maiores recordações que tenho é ter visto o Grease com quatro anos, não sei como porque o filme é um bocado precoce. E eu queria ser a Sandy, tentava vestir-me como ela. Claro que não vestia calças de cabedal com quatro anos, mas lembro-me de pedir para vestir umas calças pretas de bombazina ou de veludo cotelé e punha-me a cantar. No outro dia mostrei o Grease à minha filha.
A reação dela foi tão forte como a sua?
Ela já tem muito mais filmes vistos do que eu tinha na idade dela. Adorou o musical Mamma Mia, já viu muitos clássicos. Já viu Seven Brides for Seven Brothers, já foi muitas vezes ao teatro, já tem um avanço tremendo. Mas acho que gostou muito, até porque viu uma vez o filme e passou o resto da noite a cantar a música final: ‘You’re the one that I want’. É uma esponja.
Voltemos a Nova Iorque. Nessa altura já falavam inglês em casa?
Só. Os meus pais falavam às vezes entre eles em português e quando isso acontecia a minha irmã mais velha, que era a única que falava português, levava-nos para o andar de cima porque isso significava que eles estavam zangados connosco.
A sua primeira língua é mesmo o inglês. Pensa em que língua?
É um misto. Depende das situações e das emoções. As asneiras é mais em inglês e digo muitas mas agora estou a adaptar. Em vez de dizer fuck digo fudge, shit digo sugar. A minha mãe já fazia isso, alterava os palavrões para não percebermos. Mas como aprendi a representar em inglês às vezes ainda tenho dificuldade em certos textos. O ideal e que me completa é mesmo as duas línguas.
Alguma vez sentiu que acham sobranceiro este bilinguismo?
Já ouvi vários vezes esses comentários. Sempre falei assim com os meus pais e as minhas irmãs. Acho que isso é normal para quem nasce numa família que tem duas línguas principais.
Qual é a primeira imagem que tem de Portugal?
Não sei bem. Tenho a sensação de que era muito sujo, lembro-me de me fazer confusão os cães na rua abandonados, era tudo descampado, não havia muita ordem.
Há alguma recordação familiar dessa altura que se recorde com especial carinho?
Sim, íamos muito ao McDonald’s (risos). Ao domingo não se cozinhava e era sempre pizza ou McDonald’s. A minha mãe ainda mantém mais ou menos essa tradição e ao domingo é dia de pizza. Mesmo o meu pai muitas vezes, no dia 24 de dezembro e já cá em Portugal, ia connosco ao McDonald’s. Era uma coisa muito nossa.
Quando veio para Portugal continuou a estudar em escolas internacionais.
Sim. Leio e escrevo muito mais em inglês, falo em inglês com a minha filha. Com os meus melhores amigos da escola também falamos em inglês. Faz parte de mim. No início confesso que fiquei muito tímida por dar erros em português e não ter uma gramática muito extensa, para além de às vezes inventar palavras sem querer. Depois comecei a aceitar-me. Mas ainda hoje recebo muitas críticas por escrever em inglês nas redes sociais. São as minhas redes sociais: as pessoas podem criticar à vontade mas é assim que consigo transmitir o que quero, até porque a maior parte das coisas que escrevo lá são para mim.
Como foi a adaptação a Portugal?
Foi difícil. O único consolo que tinha era estar numa escola inglesa. Primeiro foi numa escola americana que hoje se chama CAISL, depois mudei-me para o Saint Dominic’s e no final o Saint Julian’s. Identificava-me com as pessoas, sentia-me confortável. Os meus primos chamavam-nos as primas americanas e eles próprios gostavam muito de falar connosco. Lentamente fui aprendendo a falar português. Mas foi difícil. Cá não havia supermercados grandes, só a mercearia do final da rua que fechava cedo. Só havia dois canais de TV e a partir de certa hora. Não havia McDonald’s, o ritual de domingo desapareceu. Passou a ser jardineira (risos). Era tudo diferente mas nunca foi uma coisa má, era só diferente. Para a minha irmã Margarida que veio com 12 ou 13 anos talvez tenha sido mais duro. Para mim eram só experiências novas. Mas, mais tarde, quando tinha uns 10 anos, revoltei-me com os meus pais, assim uma coisa de raiva por termos vindo e não estarmos nos EUA. Mas se calhar tinha a ver com o facto da separação. Viemos para Portugal porque eles se divorciaram. E obviamente que isso marca bastante uma criança.
Nova Iorque ficou sempre para si como um símbolo da união da família.
Claro. Desapareceu o nosso lar e a família, foi um desmoronar. Por isso o mundo novo não fazia muito sentido, daí ter demorado a compreender o país. O meu pai ainda ficou nos EUA durante dois, três anos. Escrevia-nos cartas e íamos vê-lo no verão. Ficámos a morar só com a minha mãe.
Uma casa cheia de mulheres.
Sempre foi, mesmo com o meu pai presente era uma casa de mulheres!
Crescer com esse lado feminino tão presente foi difícil?
Foi quase como o filme do Almodóvar: Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (risos).
Vamos lá pôr imagens nisso (risos).
Discussões à mesa do género: tira essa camisola que é minha! Tira essas calças que são minhas! Tira as cuecas que são minhas! Era assim, ia até às cuecas (risos). A minha mãe era ótima e achava imensa piada. Nunca se metia nas nossas discussões, nem quando atirávamos copos de água à cara. Ao mesmo tempo, era muito divertido. Nunca havia um momento aborrecido. Com mais discussões ou riso, tínhamos sempre a música ligada e víamos muitos filmes juntas. A minha irmã mais velha fazia concursos, punha músicas dos anos 80, deixava-nos entrar no quarto dela e depois tínhamos que adivinhar que música estava a tocar.
Era difícil gerir os egos ou foi uma aprendizagem?
Foi uma aprendizagem, ficámos mais duras. Um bocadinho mulheres homens. Todas nos tornámos em adultas mulheres muito fortes e bem sucedidas profissionalmente.
O que é isso de ser muito forte?
É saber estar em qualquer sítio, é saber o que se quer e não se quer. É ter opiniões formadas, mas ser aberto e tolerante. E seguir o rumo que se quer.
Como é que essas mulheres fortes convivem com desilusões amorosas e profissionais?
Apoiando-se umas às outras e sabendo que são coisas que passam.
Por exemplo, quando se divorciou como foi essa entreajuda?
Vivia nos EUA, vim para Portugal e divorciei-me. Nunca mais me esqueço desta imagem: lembro-me perfeitamente de estar em casa, na varanda, e de repente aparecerem três irmãs, a Margarida, a Bárbara e a João. Nunca me largaram.
Sentiu o chão a fugir?
Sim, foi a pior sensação da minha vida, não tanto por mim mas pelo meu ex-marido. Ele não estava à espera e o facto de eu abandonar a nossa ideia de vida conjunta era impensável.
Porque tomou essa decisão?
Por causa de trabalho. Tinha trabalho em Portugal e ele não queria vir.
O trabalho falou mais alto que o amor.
Sempre disse que a minha profissão era o mais importante de tudo. Hoje já não acho isso.
O divórcio foi um momento negativo. Obviamente que a morte do seu pai também foi. Como viveu esse momento?
Ainda estou a vivê-lo. Ainda estou no início dessa perda por isso não consigo muito relatar o que estou a viver. Para mim é como se ele ainda estivesse cá. Ontem quando torci o pé a primeira pessoa a quem pensei ligar foi a ele. Sei que ele não está cá. Quer dizer, está nos meus sonhos, nas minhas palavras e nas das outras pessoas. Há poucos dias estava a andar na rua e uma senhora de uma certa idade parou-me e disse: ‘Lobo Antunes?’. É engraçado porque consigo distinguir o tipo de reconhecimento em relação a mim, seja por trabalho ou pelo meu nome. Este reconhecimento foi diferente. Ela perguntou-se se era filha do João, eu disse que sim. Ficou muito comovida, os olhos começaram a marejar e disse-me que de repente tinha olhado para os meus olhos e visto o João. E foi-se embora.
No velório e missa do seu pai estavam muitas e muitas pessoas que quiseram agradecer. Como é viver isso?
É uma honra. Uma honra tremenda. É engraçado também perceber que esse reconhecimento faz com que a memória dele continue. Mas eu, as minhas irmãs e tios por dentro ríamos porque o conhecíamos. Havia muita gente que dizia que ele tinha sido como um pai, tanto que depois vim a descobrir que as pessoas entravam na consulta e ele dizia ‘olá, filha’, ou ‘olá, filho’. Pelos vistos era uma prática corrente. Ele tratava as pessoas assim porque era uma personagem muito paternalista. E também para pôr os doentes à vontade, se iam entregar a vida a alguém ele tinha que transmitir segurança a essas pessoas. Mas ele era o nosso pai, não era o pai de mais ninguém (riso).
Como diferenciavam isso?
Há uma coisa que eu e as minhas irmãs aprendemos há muitos anos em relação ao meu pai – e é o que uma pessoa tem de fazer quando a outra é tão grande e tão completa – temos que partilhá-la com as outras pessoas. E jamais exigir o tempo dele ou a presença porque ele tinha mesmo que estar para toda a gente. Ele nunca se recusou a ver ninguém, nunca se recusou a atender o telefone a ninguém e isso foi uma coisa que aprendemos muito cedo. Lembro-me que, aos fins de semana, já em Portugal, ia buscar-nos a casa da nossa mãe. Ao domingo levava-nos mas muitas vezes passava pelo hospital para ver os doentes. Nós sabíamos que isso fazia parte dele, não podíamos exigir.
Ele disse que tinha feito um livro autobiográfico. Esse livro vai ser publicado?
Há alguns impedimentos, mas gostávamos muito que o livro saísse. É sobre um neurocirurgião em construção, é basicamente sobre a vida dele desde o nascimento e como cresceu em família em Benfica e depois a formação nos EUA, como se tornou neurocirurgião e o retorno a Portugal. Ele dizia uma frase: ‘uma coisa é seres um peixe pequeno num oceano gigante, outra é seres um peixe grande num lago pequenino’. Quando ele veio para Portugal já veio com muito know-how e é isso que o livro conta. Ele começou a escrever a autobiografia quando ficou doente e sentiu que era isto que queria transmitir e deixar, era o seu legado. Eu e as minhas irmãs queríamos que já tivesse sido publicado, mas ainda há questões que não o permitem. Sobre essas questões não faço comentários. Só espero que o livro saia o mais depressa possível. Na íntegra, com as palavras do meu pai que é só isso que interessa sem qualquer modificação ou contaminação. Isso é que é o importante.
O seu pai fez o prefácio do De Profundis Valsa Lenta do Cardoso Pires. Quem gostaria que fizesse o prefácio do livro do seu pai?
Ninguém. Deve ser publicado como está, é uma obra tão pessoal, tem uma linguagem muito íntima, diferente de todos os outros livros que ele já escreveu que também não tinham prefácio. Deve ser uma coisa pura, só dele e de mais ninguém.
No velório percebeu-se que o seu pai era um lança-perfume de todo o tamanho.
(risos) O meu pai era lindo!
Tinha fãs que nunca mais acabavam?
Tinha e tem! Era dos homens mais charmosos, inteligentes, vaidosos. Daí ter escolhido, depois de ter feito o meu discurso, a música ‘My Way’, do Frank Sinatra. Ele fez as coisas à maneira dele. No meu discurso disse que um homem com tantas qualidades não existe.
Em criança assistiu a várias cirurgias do seu pai.
E da minha mãe. Já falei disto anteriormente e já fui criticada nas redes sociais, mas a verdade é que os meus pais eram conscientes naquilo que faziam. Eu ia para o bloco preparada e desinfetada como qualquer outro médico.
Mas que idade tinha?
Para aí dez anos. Adorava.
Pedia para ir ou eram eles que a levavam?
As duas coisas. Às vezes levavam-me porque não tinham onde me deixar (risos). É um bocado como levar a minha filha para o estúdio, muitas vezes as crianças vão com os pais para o trabalho. Também acho que de certa forma me estavam a subornar para querer ser médica, mas saiu-lhes o tiro pela culatra (risos). Mas adorava assistir, talvez por ser tão nova aquilo até era um bocadinho banal e não me chocava.
Assistiu a alguém a morrer durante uma operação?
Não. Mas vi uma mulher a morrer a chegar ao hospital e isso marcou-me muito. Fiquei tão transtornada que acho que foi aí que percebi que não queria ser médica.
Acabou o curso de Biologia Médica em Edimburgo com excelentes notas.
Média de 18. Houve uma pessoa que teve 20. Trabalhei e quis ter boas notas primeiro porque havia a possibilidade de ir fazer Medicina a seguir. Mas no último ano já me tinha candidatado a teatro, por isso já não havia a pressão. Mas havia a pressão de fazer o melhor, que foi uma coisa que nos foi instituída. A minha mãe ficava aborrecida se eu tivesse por exemplo um 12, mesmo que eu dissesse que o resto da turma tinha tido 10. Dizia sempre que não interessavam as outras pessoas. Havia uma exigência que era uma coisa um bocado intrínseca. E isso é uma coisa que também sinto muito, que é o desperdiçar do talento. Abomino o desperdiçar de um talento. As pessoas têm que dar o seu melhor para se sentirem bem, se não o fizerem é uma falta de respeito para com elas próprias.
Nunca pensou não ir sequer para Biologia e entrar logo em teatro?
Pensei, claro. Mas a minha mãe disse: ‘Oh Paula, vá fazer uma coisa como deve ser e depois faça o que quiser’. Depois dessa conversa nunca mais falei sobre isso com ninguém. Tinha até vergonha de dizer que gostava de ser atriz. Mas a verdade é que os meus pais já sabiam. Por isso nem questionei, até porque sentia que não estava preparada. Acho que ela até me fez um favor.
Até entrar em Teatro em Londres com 22 anos, qual foi o grande momento de rutura da sua vida?
A grande rutura foi mesmo aí. Tinha um namorado com quem estive quatro anos. Ele era para ir para Londres comigo e acabou a relação. Então fui sozinha à procura de casa e acabei por ir para um dos piores bairros, Whitechapel. Era uma espécie de zona J. Tinha pelo menos umas cinco chaves para entrar em casa. Fiquei naquele bairro de muçulmanos que não me serviam nas lojas, eram muito racistas. Um dia, perto de casa, uma carrinha da polícia parou ao pé de mim e disse-me que estava a ser seguida por um gang. Os polícias aconselharam-me a ir embora. O meu começo em Londres foi difícil e o que mais me quebrou nem foi isso: no início do curso de teatro fui sempre arrasada. Pus muitas vezes em causa se a minha vocação era mesmo ser atriz. Foram os anos mais felizes da minha vida mas foi difícil.
Foi arrasada de que forma no curso?
Diziam-me que tinha um véu que me tapava e que eu nunca revelava o que estava por baixo.
Quando soube que tinha entrado na escola?
Ainda ontem me recordei da carta que recebi a dizer que tinha entrado. Fiz as audições sem que ninguém soubesse, ia de comboio de Edimburgo para Londres. A minha mãe foi comigo, segurava-me o cabelo quando eu vomitava antes das provas com nervos. Ela apanhava aviões para Londres de propósito só para ir às audições. Depois era ela que recebia os resultados, ainda recebi umas cartas de rejeição. Eram todas fininhas até que aparece uma carta mais gorda a dizer que tinha entrado. Aí já estava a morar em Portugal. Nesse Natal, fiz questão de dizer à minha família toda.
Como é que a sua família de médicos, escritores e por aí fora a encara quando diz que quer ser atriz?
O meu avô paterno disse que eu era burra porque os atores eram todos burros. Respondi-lhe que tinha o curso de Biologia Médica. Ele diz-me: “Ainda mais burra é. Foi desperdiçar quatro anos da sua vida para nada”. O meu outro avô também era médico, mas tinha entrado nas Pupilas do Senhor Reitor. E eu chamo-me Paula por causa da minha tia Maria Paula que também entrou nas Pupilas e em vários filmes.
Sentiu-se o patinho feio da família?
Acho que senti a necessidade de fazer o que eu queria. Já tinha feito o que eles queriam. Encontrei uma força dentro de mim que me obrigou a ir. Foi uma grande mudança na minha personalidade e na minha postura perante a minha família. Em Londres trabalhei no curso em todos os sítios e mais alguns.
Que tipo de sítios?
Distribuí panfletos, trabalhei em discotecas e em bares. Até gravei telefonemas eróticos (risos).
Como assim?
Mandavam os textos lá para casa e eu tinha que interpretar ao telefone uma história erótica com várias vozes. Depois mandava a gravação. Fiz uma vez e depois disseram que já não precisavam mais de mim.
Depois chega a sua primeira oportunidade no João Semana.
Sim. Fiz de Clara, que era a personagem da minha tia-avó materna, aquela de quem herdei o nome. Foi uma enorme coincidência. Essa minha tia-avó era uma mulher lindíssima, toda a gente dizia que parava o trânsito.
Depois do João Semana recebe logo o convite para entrar na Escrava Isaura. Foi tudo muito rápido.
Neste meio também é preciso muita sorte. Infelizmente, conheço muitos excelentes atores que não trabalham.
Quem é que foi a sua pessoa certa neste meio?
Liguei para o Moita Flores a perguntar se ele estava a fazer castings. Mandou-me aparecer na produtora dele dali a uma hora. Fiz uma leitura e, no dia seguinte, ligou-me e disse que queria que eu fizesse a personagem da Clara na Escrava Isaura. Fiquei em choque. Mas pôs-me uma condição: tive de ter aulas de dicção, notava-se muito o sotaque.
Há alguma pessoa que considere seu padrinho neste caminho?
Foi o João Semana – o Nicolau Breyner. Era o meu pai da representação. Já o conhecia desde pequenina, era o tio Nico. Cada vez que o via ficava deslumbrada. Também está comigo, ainda. Quando me disseram que ia ser ele o João Semana, chorei de nervos.
O que ele lhe ensinou?
A não me preocupar tanto. Enganei-me na primeira cena que fizemos juntos. Também foi outra coisa que aprendi no curso de teatro, que o mundo não ia acabar. E o Nico também me ensinou isso. Ele é padrinho, a Ana Bustorff é a minha madrinha.
Qual foi o papel da sua vida?
Acho que ainda não o fiz. Mas no papel de vilã em Flor do Mal, a primeira cena que gravámos foi em estúdio com o Rogério Samora e o realizador diz pela caixa de ordem para dentro do estúdio para toda a gente ouvir: ‘A star has born’. E aí pensei que as pessoas me iam começar a levar a sério, não pelo meu nome ou pela minha cara.
No fundo, sempre sentiu que ser Lobo Antunes era uma mais valia?
Não. É um misto para o bom e para o mau.
Sente que é um bocado uma intelectual para os colegas e um bocado ‘brega’ para os autores?
Sim. Quando andava a estudar em Londres falei com todos os diretores de teatro em Portugal. Falei com o João Mota e com o Luís Miguel Cintra que me disse, com todo o respeito, que preferia contratar o eletricista, porque o conhecia, do que a mim que não me conhecia de lado nenhum. Isso mostra a abertura de espírito do teatro em Portugal, que é muito pequeno. Existia um preconceito em relação aos atores que fazem televisão, mas hoje em dia vê-se cada vez mais atores do teatro a fazê-lo.
Por uma necessidade também económica.
Então mas o trabalho já é de valor? Então não vão trabalhar para um restaurante porquê se precisam de dinheiro?
Quando o seu pai foi mandatário do Cavaco Silva, como olhou para isso?
Não olhei. Não discutíamos política. Nessa altura até me contactaram para eu ser mandatária da juventude. Só falei ao meu pai sobre isso depois de ter recusado. Ele disse: ‘Ainda bem que você disse que não’.
O que pensa de Cavaco?
Não tenho opinião. Sei que o meu pai gostava muito dele e eram amigos. Respeito-o porque sei que o meu pai tinha uma relação muito íntima com ele. Com Jorge Sampaio ainda mais, eram amigos de infância. Discuti isso com ele, ter sido mandatário dos dois. Mas os Presidentes não têm partido. Era uma posição como cidadão.
Qual foi o papel mais difícil da sua vida?
Ainda vai sair. Já filmámos, foi muito difícil porque coincidiu com o início do fim do meu pai e é um tema muito complicado que é o tema dos milagres e de Fátima. O meu pai não sendo crente, ou dizendo que não era crente, ou dizendo que gostava de ter sido crente, disse-me: ‘Peça à Jacinta para fazer um milagre por mim’. Isto foi no final de setembro, início de outubro. Foi mesmo no final dele, estava no hospital em coma induzido. A personagem é a enfermeira Aurora, que cuidou da Jacinta nas horas de morte dela. Passei essas semanas entre o estúdio e o hospital. Foi a ficção a imitar a vida.
Como se preparou para isso?
Não me preparei. Se calhar foi emocional demais, ainda não vi por isso não sei. Mandava fotografias ao meu pai, ele estava meio baralhado. Viu-me numa fotografia de época vestida de enfermeira e disse à minha irmã: ‘As enfermeiras não têm esses olhos tão azuis’. Provavelmente vai-me custar ver esse trabalho.
Acha que há muito essa coisa do sexo, drogas e rock&roll nesta arte?
Sim, muito. Há exceções. A primeira coisa que o meu professor de teatro me disse em Londres, na primeira aula, foi tenham muito cuidado com as drogas e com o álcool. É verdade. Há muita promiscuidade, passa-se mais tempo com quem se trabalha do que com a própria família. E em qualquer profissão que isso aconteça há uma maior probabilidade de promiscuidade.
Deixaram-lhe o aviso. Protegeu-se de alguma forma?
Entrei neste meio já adulta, já tinha mais de trinta anos por isso tinha outra postura e um forte apoio familiar. Os meus pais diziam-me: ‘Não se banalize’. Agora na minha vida privada não quer dizer que não tenha tido os meus momentos. Mas resguardo-me muito em termos públicos. Acho que quanto menos as pessoas souberem de mim como pessoa mais acreditam nas minhas personagens.
Já viveu em várias cidades. Onde se sente em casa?
Em Nova Iorque.
Daí ter levado a t-shirt que dizia Nova Iorque ao funeral do seu pai?
Sim. Era uma coisa que fazia todo o sentido. Era a cidade favorita dele, foi onde nasci, onde houve união na minha família. E tenho um estilo um bocadinho descuidado, nunca sei onde está nada. E encontrei aquilo na gaveta naquele dia, nova em folha, foi quase um momento mágico.
Vivendo com um ator, falam muito de representação?
Não, falamos pouco dos trabalhos que estamos a fazer a não ser para pedir alguma opinião. Temos gostos muito parecidos. Gostamos muito do Benfica e de ir ao futebol, falamos muito de música, de livros e de cinema. Mas já preparámos personagens um com o outro. Antigamente fazíamos mais.
Alguma vez foi assediada sexualmente por causa de um papel?
Já, várias vezes. Vou mais uma vez recorrer ao meu pai, mas lembro-me perfeitamente da primeira vez que isso aconteceu, foi no Brasil. Liguei para ele a chorar, ele desatou-se a rir e disse: ‘Olhe filha, não é a primeira nem vai ser a última. Habitue-se’.
O que pensa da traição?
Não aceito. Odeio. Como não o faço, não o tolero.
Quando fez cenas de sexo houve atores que se excitaram?
Quando fiz em televisão isso não aconteceu. Mas em teatro já aconteceu o ator excitar-se. É uma coisa fisiológica, é o “desculpa se fico, desculpa se não fico”. Também acontece às mulheres.
Já se deixou levar alguma vez numa cena?
Já. Depois o regresso é lixado. Uma vez deixei-me ir numa cena de choro, num jazigo. A cena era só eu a chorar. Só estávamos eu e o câmara lá dentro. E os olhos dele deram-me toda a contracena de que precisava. De repente começo a chorar, a soluçar quase até ao vómito, era a sensação de cair num abismo e de não voltar mais. E de repente “corta!”.
Qual foi o maior susto da sua vida?
Foi num avião. Vínhamos da Madeira, estávamos lá a fazer a Flor do Mar. Era o elenco todo, havia uma tempestade terrível, nenhum avião tinha aterrado em Lisboa. Eu e o Jorge praticamente despedimo-nos, houve pessoas a despedirem-se das mulheres.
Gosta mesmo de futebol. Quem é o melhor jogador do Benfica para si?
Eu adoro o Luisão, tenho uma fixação. Mas hoje em dia para marcar golos é o Mitroglou.
Agora está a fazer o quê?
O Sábio, uma novela na RTP. Faço de Carmen. Voltar à RTP foi bom, foi onde comecei. Sinto-me muito bem lá.