Paulo Gonzo. ‘O Pinto da Costa é um ser extraordinário’

Paulo Gonzo, benfiquista, tem como grande amigo o presidente do F.C. Porto, Pinto da Costa. “Há uma história extraordinária. Vinha no carro e tocou o telefone em alta voz, como sempre. Era o Pinto da Costa. Disse: ‘Sabe quem fala? Daqui Jorge Nuno’.  E eu vinha de um espetáculo e ia para outro, estava na estrada…

Alberto Ferreira Paulo, nascido a 1 de novembro de 1956, quais são as suas primeiras recordações?

De me obrigarem a cortar o cabelo, que era uma coisa que detestava, e de o meu pai me comprar um fato-macaco para ir para a Escola Industrial Marquês de Pombal. Antes disso, lembro-me da escola Pedro Santarém, em Benfica. Nasci na Maternidade Alfredo da Costa, e fui o segundo de quatro irmãos. Três rapazes e uma rapariga. 

 

A sua primeira recordação de vida é obrigarem-no a cortar o cabelo?

A má, depois há recordações boas. Lembro-me de fazer fotografias naqueles cavalos em que aparecia o fotógrafo e nós estávamos naqueles cavalinhos muito bonitos. Depois o fotógrafo ia a correr, punha um pano na cabeça e tirava a fotografia. Lembro-me também de não ter jeito para o curso Industrial, e ter ido para a escola de Artes Decorativas António Arroio, inaugurei essa escola. 

 

Mas nessa fase não se recorda de mais nada?

Além de ter ajudado o meu irmão mais velho, em segredo, a desertar para França, na altura em que se ia ao salto como se dizia, ainda levei uns tabefes por o ter escondido. Ele disse-me: ‘Diz só quando achares que eu já estou bem longe’. Foi aí que apanhei do meu pai. A António Arroio era um mundo novo porque foi a primeira escola mista, todos os rapazes dos outros liceus tentavam roubar as nossas miúdas. Era uma escola liberal, de artistas, os comportamentos eram necessariamente diferentes e o ensino e os professores também o eram. Levávamos muita pancada porque havia as manifestações e nós íamos ajudar os do Técnico… Depois entrei no semanário Expresso onde fiz umas pequenas notícias sobre espetáculos, mas passei rapidamente a gráfico com o Mestre Ribeiro. Eu era primo do Augusto de Carvalho, sub diretor do jornal. Nessa época estavam lá nomes grandes do jornalismo.

Isso é um grande salto. Como começa a sua ligação à música?

Na Pedro de Santarém já me destacava com o jeitinho que tinha para a música. Pedi ao meu pai uma melódica, que era um instrumento de sopro, e cheguei a fazer parte da orquestra da Emissora Nacional, porque eles iam às escolas e iam recrutando alguns alunos. Um deles fui eu e comecei a aprender percussão mas rapidamente larguei isso. Na Pedro Santarém fugíamos das aulas de música pois a professora era muito austera e usava muito a régua grossa de 5 por 5 centímetros. Levávamos muita pancada. Como a escola ficava perto do Jardim Zoológico uma vez saltei o muro e acabei em frente aos macacos. Como levava uns ténis brancos que aterraram em excrementos quando cheguei a casa levei outra vez. Lembro-me de que era um aluno meio difícil mas muito talentoso!

Quando fala na régua é porque levavam pancada? 

Sim, levávamos. Havia um truque que achávamos que funcionava, mas que era um disparate. Combinávamos uns quatro ou cinco, os que iam apanhar, tínhamos que arranjar azeite, sal grosso e uma crina de cavalo ou algo com bom pelo, e pensávamos que assim a régua partia. Mas não partia nada e ainda levávamos mais. 

Basicamente apanhava na escola e em casa.

Sim.

E fugia à música só por causa da régua?

Sim, aquilo marca as pessoas. Naquela altura passava-se a odiar coisas por causa disso, hoje o ensino é diferente. Tinha era boas notas a Religião e Moral, era um padre que dava aquilo (risos). Entretanto, na escola nova, da Pedro Santarém, a música era dada com um programa diferente, havia instrumentos que podíamos usar. A partir daí comecei a ter gozo e prazer em ir às aulas de música. E pediam-nos para levar um instrumento, daí ter pedido ao meu pai uma melódica. Rapidamente comecei a perceber que iria ser músico (risos).

Porquê?

Porque eu já dirigia aquilo, a professora ia ao bar e eu ficava um bocadinho a dar a aula. Mas às vezes também me baldava, as miúdas cresciam e nós também. E portanto a questão animal falava muitas vezes mais alto.

Nessa altura a sociedade era muito fechada, mas pelos vistos teve uma iniciação sexual precoce. 

Para a época tive (risos). A minha iniciação foi muito confusa, devia ter para aí 15 anos. Só me lembro de umas escadas e de fugir.

Do pai da rapariga?

Não, não. Fugi, não sei o que aconteceu. Sei que era uma situação de risco e daí me interessar imenso pelos policiais e por essas coisas (risos). Depois para perceber se aquilo era bom ou mau repeti muitas vezes.

Diz que foi eleito chefe do pessoal docente na António Arroio? Como foi possível?

Tinha acontecido o 25 de abril e aconteciam muitas coisas estranhas (risos). A minha professora de História da Arte, era linda, linda. E nós tirávamos coisas de casa, pequenos objetos, para lhe oferecer. Ela achava graça . Eu já tinha a Go Graal Blues Band.

Mas quando começou a banda?

Em 74, eu e o João Allain fizemos uma banda de blues, que ninguém ouvia nessa altura. Ainda para mais cantávamos em inglês. Quem apostou em nós foi o Jaime Fernandes e o João David Nunes, que era o diretor da Imavox, onde gravámos o primeiro disco em 24 horas. Nessa altura já estava no Expresso e também foi uma época engraçada. Já fazia espetáculos e era trabalhador estudante. Trabalhava de dia e estudava à noite, deixei algumas cadeiras pendentes na Escola de Belas Artes. Saía do Expresso, apanhava o autocarro e ia ensaiar para Odivelas. 

Nessa altura Marcelo Rebelo de Sousa já estava no Expresso.

Já. O diretor era o doutor Balsemão, o meu primo Augusto de Carvalho e o Marcelo eram os sub diretores. Depois havia o Vicente Jorge Silva, que era o chefe de redação, também lá estavam o Álvaro Martins Lopes, o João Carreira Bom, o Mega Ferreira…

Qual foi o primeiro grande concerto dos Go Graal Blues Band? Cantava e tocava harmónica?

Não, só tocava harmónica nessa altura. Aliás a minha carteira de músico diz instrumentista de harmónica cromática e diatónica. O João Carlos Cordeiro é que era o vocalista, mas ficava sempre muito nervoso antes dos espetáculos e, por isso, andava sempre com um frasco de mel atrás. Quando fomos dar o concerto ao Coliseu aconteceram coisas surreais. Nesse primeiro espetáculo, apanhei um táxi para o Coliseu porque tinha andado a noite toda a colar cartazes, com um balde com farinha e água que era assim que se fazia a cola, e portanto quase não dormi. Consegui organizar o concerto porque pedi 12 contos emprestados ao advogado Pedro Mantero. O saudoso Covões gostava de mim e alugou-me o Coliseu por 60 contos. Foi um grande espetáculo. Quando cheguei havia uma fila que passava o Gambrinus e eu achava que não era nada para mim, mas cheguei com uma mala com a roupa que iria cantar e o porteiro do Coliseu não me deixou entrar. Perguntou-me o que queria, respondi-lhe que ia cantar e ele respondeu-me: ‘Isso é o que todos dizem. Vá para a fila’. Fui comprar bilhete para mim próprio e fui para a fila! Na altura o empresário que organizou o espetáculo foi o Rui Simões, e estava a ficar louco com o meu atraso e apanhou-me na fila para comprar o bilhete. No dia seguinte fui imediatamente devolver o dinheiro emprestado ao doutor Pedro Mantero. E assim foi o meu primeiro risco na área do espetáculo.

E aí já cantava.

Cantei aí pela primeira vez por acidente. O vocalista adoeceu e tive que me chegar à frente e assumir e foi uma coisa… Quer dizer, o Coliseu é o Coliseu! É importante, é uma sala emblemática. Sempre arrisquei nas coisas.

Davam muitos concertos?

Sim, às vezes íamos a Bragança e levávamos 12 horas a chegar – o tempo de ir e voltar a Angola! E tudo ficava mais difícil quando tínhamos pouco dinheiro e fazíamos a viagem de regresso a seguir ao espetáculo… 

Ensaiavam todos os dias e há muitas histórias divertidas desse tempo.

Sim, a garagem onde tocávamos ficava por baixo de uma casa de frangos e não sei como não enjoei frango… Uma vez fomos assaltados à mão armada na garagem e levaram os instrumentos todos. Apareceram de meias na cabeça, e um deles era irmão de um da nossa banda e só soubemos isso porque um deixou cair o Bilhete de Identidade. A Polícia Judiciária acabou por os apanhar quando tentavam vender o equipamento numa loja onde havia ensaios. 

Como surgiu o nome Gonzo?

Como fomos obrigados a registar-nos na Sociedade Portuguesa de Autores eles queriam saber quem era quem e o que tocava. O João Allain acrescentou Gonzo a Paulo, sem eu saber. Qual não foi o meu espanto quando compro o Sete, o grande jornal de espetáculos da altura, e vejo Paulo Gonzo. Fiquei irritadíssimo, mas depois fui-me habituando e acabei por achar graça, também porque eu adorava os Marretas. Agora não há nada a fazer. Já cheguei a esquecer-me da documentação e deixaram-se seguir viagem no aeroporto só com o bilhete de avião a dizer Paulo Gonzo.  

E porque saiu da banda?

A banda acabou porque chegou ao fim um ciclo. Uma editora convidou-me para fazer um disco a solo e as coisas começaram a descambar nessa altura. No estrangeiro é mais fácil fazer várias coisas e ninguém ter ciúmes. Mas foi inevitável. Éramos uma banda com um peso substancial, mas chegámos a tocar em sítios onde acabava a estrada. E quando não havia palcos, em atrelados dos tratores. Só subíamos ao palco quando recebíamos o dinheiro, e era antes. Muitas vezes quem nos contratava estava à espera do dinheiro da bilheteira para nos pagar, hoje já não é assim. 

O primeiro single ‘So Do I’ correu muito bem, mas o verdadeiro sucesso surge com outra música.

A minha vida mudou com os ‘Jardins Proibidos’, já que tudo começou a tomar proporções  enormes. Quando assinei o primeiro contrato com a CBS, as potencialidades eram enormes, saltei de uma coisa pequena e meio amadora para uma situação já a sério. Sendo um músico a sério eu tenho que assumir as responsabilidades todas. Numa banda vai-se dividindo as culpas, os créditos e aí não. Há um processo muito diferente, há um produtor, as capas já eram à séria e é aí que assumo a música num patamar mais sério. E era obrigado a vender discos. Antes cantava sempre em inglês, mas optei por começar a pensar em português e comecei a cantar os Jardins e outras músicas. Ando sempre ao contrário, porque hoje cantar em inglês já não chateia, mas na altura era uma coisa mal vista. O que é um facto é que aquilo correu bem e depois  a CBS foi arriscando. Os ‘Jardins Proibidos’ foram o disco mais vendido, sete platinas, cada platina eram 40 ou 45 mil discos, nessa altura era muito dinheiro. Não estava habituado.

Antes tinha o estatuto do tipo que cantava blues, uma coisa mais intelectualizada e entretanto passa a cantar em português e para um patamar mais comercial. 

Há alguns pseudo-intelectuais da música que acham depreciativo uma balada, porque vende. Chegaram a chamar-me de baladeiro, e eu não sei o que é um baladeiro. Sei é que todos os que vendem música como o Tom Jones, o Mick Jagger, os Queen, o Prince são então baladeiros. Há regras, tem que se chegar ao coração das pessoas e uma música não pode passar despercebida se não também nem faz sentido fazê-la. Tem uma carga mais forte ou não mas se tiveres um texto medíocre e uma música boa não é bom, e vice-versa também não. Mas se trabalhares e juntares as duas coisas é extraordinário e foi isso que aconteceu com os Jardins. Portugal era um país muito preconceituoso, sempre foi. E, na altura, o que passava nas rádios era música americana. E ainda hoje é um bocado assim. Mas uma balada ser muito comercial é a coisa mais estúpida, vinda de um crítico ou de jornalista. Porquê, porque vende discos? Deveria não vender? 

Mas essa música surgiu ao mesmo tempo que a novela?

Não, vem antes. Quando a novela apareceu a música já era conhecida. Essa e o ‘Dei-te quase tudo’. Vieram falar-me para a música ser a do genérico. Foi a partir dessa novela que a ficção portuguesa atingiu os patamares que atingiu. Sabes que nunca tinha cantado ao vivo essa música e quando fui fazer a primeira parte da Tina Turner o público todo a cantou? No dia seguinte, o Carlos Pinto pediu-me para ir falar com ele à Sony e decidimos que eu ia gravar o ‘Dei-te Quase Tudo’ e regravar os ‘Jardins Proibidos’. O Carlos sugeriu-me que eu fizesse um dueto e foi ai que encontrei o Olavo Bilac numa discoteca em Alcântara por volta das cinco da manhã. Já estávamos com um grãozinho na asa e combinámos que falaríamos no dia seguinte. E assim foi. Fizemos o videoclip no Blues Café e o disco saiu em junho. Foi uma fase grande de inspiração para mim e tudo disparou. Depois entrei em tour, aí já tinha o meu filho Francisco.

Que idades têm os seus filhos agora?

O Francisco tem 27 e a Mariana 19. 

Depois dos Jardins Proibidos, o que muda na sua vida com tanto dinheiro?

Há uma série de coisas que acontecem, tinha tido um filho, vivia com a mãe dele, tinha que organizar as coisas para conseguir fazer duzentos e tal espetáculos num ano e meio. Há que organizar tudo, ou seja, isto passa de um patamar para outro em que basicamente a organização passa a triplicar. Escolher histórias, produtores, meios, a logística que tem que acontecer, os espetáculos passam a ser muito requisitados. Eu tinha espetáculos a toda a hora, todos os dias quase. O país era pequeno e é. Inflacionei imenso o mercado, porque passado quatro anos tinha que fazer outros discos, e fiz – que vendeu mais quatro platinas (Suspeito, lançado em 1998). Mas fiz uma música que foi uma cruz que ainda hoje tenho às costas, que é os ‘Jardins Proibidos’. Não posso ainda hoje fazer um espetáculo sem cantar essa música e o “Dei-te quase tudo”, senão sou ostracizado. 

Por que diz que é uma cruz?

Uma cruz no bom sentido. Fazendo como disse vários discos e espetáculos ao vivo, essa música continua a não ter tempo e não terá, há músicas assim. Houve uma versão cubana e tudo. 

Que impacto teve essa mudança na sua vida? Por exemplo, antes disso saía à rua e não era reconhecido, de repente passa a ser conhecido na rua. 

E muito. Muda tudo na minha vida. É uma sensação estranha, para quem não estava habituado. Leva-se um estalo, sim. Mas curiosamente nunca deixei de ser a mesma pessoa. Aquela coisa do vedeta à parte e tal nunca aconteceu. Mas temos que nos recatar mais, isso sim. Há coisas que depois não podes fazer. Vai-se aprendendo à medida que se vai vivendo. 

O que se aprende?

Estava sempre fora do país a fazer espetáculos, havia sítios onde estava, por exemplo em Dusseldorf, que às tantas tinha de ter folhas coladas no backstage a dizer em que cidade estava, em que país e que horas eram. Não havia tempo. Uma vez tive uma crise de ansiedade em Hamburgo, e nessa altura deixava as portas dos quartos dos hotéis abertas com medo de não acordar. Um dia fui à janela e não conhecia aquilo, fui ao telefone não atendiam e desatei num choro porque achei que tinha perdido o espetáculo. Entrei em pânico, levaram-me um whisky às 3 da manhã à cama e descobri que o espetáculo era no dia seguinte. Houve um mês em que fiz 26 espetáculos. Não estava habituado, aquilo era uma carga pesadíssima, é-se obrigado a falar com milhares de pessoas. Torna-se mecânico, fica-se um autómato. A rotina era ter um espetáculo, sair, entrar no dia seguinte num aeroporto. Era muito confuso. Ia falando com os meus filhos e a minha mulher,  e aí sempre foram impecáveis, sempre me defenderam.

Pouco os viu crescer, portanto.

Vi, vi. Estava pouco em casa mas falava muito com eles. E levava-os à escola às 7 da manhã quando podia!

Muitas vezes de direta?

Muitas, claro. 

Não sentiu necessidade de ter apoio médico?

Não, porque tinha o manager comigo e pessoas que me iam indicando o que ia fazer, os concertos. Mas é engraçado perceber como é que ainda hoje estou aqui e consegui segurar aquilo tudo. Uma coisa que me ajudou foi uma decisão do Carlos Pinto que me disse: ‘Paulo, acabou aqui. Você não faz mais espetáculos. Tem aqui dois bilhetes, escolha ou as Maldivas ou as Seychelles’. E pela primeira vez em oito anos fiz férias, nas Seychelles, e foi uma estalada. Vinha de um vendaval de trabalho, de uma confusão tal a que não se está habituado. Quer dizer, não tínhamos condições em Portugal para assumir uma coisa dessas. Passei de uma coisa menor para uma coisa que acontecia no mundo inteiro, nós aqui não tínhamos estrutura para isso e não temos, é tudo muito mais caseirinho, mais maneirinho. Parei um mês, estive oito dias nas Seychelles com a mãe dos meus filhos, só os dois. Quando estava lá houve uns miúdos locais que me viram a almoçar num restaurante numa praça, e me reconheceram! Aí fiquei orgulhosíssimo. Eram para aí uns vinte miúdos, foram a casa buscar os meus discos, e depois percebi. Eles tinham acompanhado a saída dos discos porque estiveram numa escola em Algés ou em Paço de Arcos ao abrigo de um programa qualquer e eles acompanham esse sucesso, o que é extraordinário. Foram buscar os discos todos a casa para eu assinar. Aí acalmei. Mas depois um disco tem tempo de vida, o que é natural. Saiu o ‘Suspeito’, que teve quatro platinas, mas tinha esgotado o espaço em Portugal para tocar. Houve ali um deserto. 

Com tanto sucesso deve ter ficado com alguns tiques de vedeta, é conhecido pelo seu mau feitio. 

Tenho um disco que se chama Mau Feitio (risos). O mau feitio era um bocado irónico. Sou uma pessoa extremamente aberta, digo o que tenho a dizer, não tenho rabos de palha nem telhados de vidro. Desde essa altura e até hoje, depois de um espetáculo, os meus músicos vão para o hotel e eu fico mais de duas horas a receber pessoas e a dar autógrafos. Gosto de pessoas, mas também tenho algum mau feitio, e isso é uma escola grande, todo este percurso deu estaleca para perceber o que é que aquela pessoa que vem ali vai querer ouvir. Sei quem são os maus e os bons. E gosto do que é muito bom e do muito mau, o que está no meio faz-me impressão. 

Também gosta do muito mau?

Gosto porque sei com que é que conto, e pode ser uma fonte de inspiração para não o fazer.

No primeiro concerto que deu no Coliseu teve que pedir dinheiro emprestado. No concerto que deu dos duetos no pavilhão atlântico com convidados de onze países também teve que investir?

Sim e paga-se logo quando se aluga o pavilhão, eles não estão à espera como antigamente. Ainda apanhei um susto porque na altura havia uma data livre e eu não sabia se havia mais concertos naquela semana e depois veio-se a verificar – e aí ia apanhando outro esgotamento, porque na semana que antecedeu o concerto dos duetos tinha John Legend,  Anastasia, Lady Gaga na véspera e eu a seguir. E a Lady Gaga teve um terço do pavilhão. Nessa noite não dormi. Até pedi ao Jaime Fernandes para me arranjar um barco a remos se aquilo não corresse bem para sair dali (risos).  No dia a seguir havia uns ensaios de teste de manhã. O Jaime chegou e disse:  ‘É para dizer que já reservei o barco’. E aí percebi que o pavilhão estava cheio, foi uma alegria enorme, aliás nunca tinha feito isto. É extraordinário terem vindo 11 intérpretes de 10 países diferentes para cantar comigo em Lisboa.

Pagou a todos?

Claro! E vêm todos em executivas, houve uma frota de carros para cada um. Tive a ajuda importante de algumas pessoas, nomeadamente do Stefano e da Maria João Saviotti que me ofereceram literalmente o hotel D. Pedro. E houve uma colaboração da TAP. Era muita gente, porque fiz o Meo Arena e logo no dia a seguir Guimarães. Mas isso para mim foi um orgulho. A produção tinha meios diferentes, era uma coisa à séria. E o que é facto é que resultou. Isto para dizer que vou a jogo.

Não perdeu dinheiro nesse concerto?

Não. 

O que lhe deu mais gozo nessa noite?

Foi saber que estava lá toda a gente, desde os meus amigos a pessoas de quem eu vim a ficar amigo e que temos uma relação próxima como o Mario Biondi, a Fafá de Belém e a Ana Carolina do Brasil, o Tito Paris de Cabo Verde, o Anselmo Ralph e o Matias Damásio, de Angola, o Jorge Palma. Até me vieram um pouco as lágrimas aos olhos quando ele deu os primeiros acordes. Foi extraordinário. E foi todo aquele envolvimento que me fez pensar: ‘bom, eles gostam de mim’. É extraordinário quanto tudo corre bem do início ao fim. É um risco sempre e o princípio de um concerto é sempre muito importante, porque tens que segurar as pessoas logo.

Fez o hino do Benfica com o António de Melo e o Rui Finger.

Sim, foi um pedido do presidente Luís Filipe Vieira. 

É um benfiquista assumido?

Sim, sou adepto.

Mas como criou uma relação tão próxima com Pinto da Costa?

(risos) Há que não confundir as pessoas, aquilo que elas são, com as atividades que elas têm e infelizmente há muitas pessoas que não fazem isso. Pinto da Costa é presidente do seu clube. Não o conhecia bem e veio a revelar-se um ser humano extraordinário, uma pessoa com muito sentido de humor, um filantropo e um amigo. Não me conhecendo ele também mas sendo meu fã, como ele dizia, fomos apresentados através do meu amigo Fernando Póvoas. Houve duas situações muito significativas para mim e reveladoras da pessoa que ele é. Uma foi quando o meu pai morreu. No funeral, ele fez questão de prestar homenagem ao meu pai pedindo ao Fernando Póvoas para me perguntar se eu queria, é claro que eu disse que sim. O funeral foi no norte e ele apareceu lá conhecendo-me ao fim de nos termos encontrado apenas duas vezes. A segunda foi com a morte da Pequenina. Ele também só a viu duas ou três vezes e veio de propósito a Lisboa pôr uma coroa de flores no funeral. Isso para mim é revelador e fala-me regularmente. Nada tem a ver com clubes nem interesses de qualquer parte.

Falou em duas mortes, o seu pai, que foi atropelado por um carro da PSP. Na altura foi uma situação muito difícil para si.

Foi. Fui eu que tive que ir reconhecer o corpo, tendo sido avisado pela polícia. Foi muito complicado e muito repentino. Nem imaginava uma situação dessas, mas depois percebi que tinha que resolver e tratar de tudo. Ele faleceu há cerca de quatro anos. Foi complicado, ainda é e há-de ser sempre. Logo a seguir, mal refeito ainda, a Pequenina faleceu também com automóveis. E a seguir o cão atropelado também. O Pipas também foi atropelado.

A história da Pequenina é pública hoje em dia. Sempre preservou muito a sua vida pessoal. Não acha que é paranoia excessiva das pessoas conhecidas esconderem assim tanto a sua intimidade. As pessoas não deixam de viver um bocado a vida com essa preocupação?

Não. Acho que vivemos mais a nossa vida. Não escondo nada, só escondo a má interpretação que as pessoas possam ter. O facto do meu pai falecer não pode ser motivo de aproveitamento e eu lembro-me que fui seguido por jornalistas até ao cemitério. Era motivo para a primeira página? O motivo para uma primeira página deveria ser sempre um bom trabalho, isso sim é bem vindo. Esse é um motivo de orgulho. Das misérias e desgraças não. A preservação da intimidade é para proteger as pessoas de uma coisa destas. Os meus filhos têm que ser pessoas normais. Eu sou uma pessoa normal com uma exposição mediática diferente mas tenho uma função. Tanto respeito o jardineiro, como o carpinteiro, eu sou músico. Cada um faz o que lhe alimenta a alma. Quando vou aos espetáculos não me escondo, estou com as pessoas, sou solidário. Há pessoas que quase não têm e vão aos espetáculos, estão duas horas ali para cantarem e ser felizes, a minha função também é essa. O meu pai faleceu, a Pequenina estava ainda em coma e eu fui fazer um espetáculo. Não tenho que levar às pessoas o meu estado de alma, tenho que cantar o que tenho a cantar.

Como foi esse espetáculo?

Foi uma situação muito curiosa, já estava agendada. Foi até um convite do Pinto da Costa para eu colaborar numa angariação de fundos para uma ala pediátrica no hospital de S. João. Acho que foi o próprio diretor do hospital que pediu a colaboração ao Pinto da Costa, sabendo que éramos amigos. Eu aceitei, a Pequenina ainda estava viva. O espetáculo que foi um jantar acabou por reunir 800 mil euros para a obra. Os GNR também foram. Fiz o espetáculo mas é uma sensação única que não consigo nem explicar, aguentar essa hora e meia com tudo aquilo. Ao mesmo tempo parece que se está a flutuar, aquilo foi mecânico. 

A música mais difícil que cantou na sua vida foi no velório da Pequenina, a sua namorada?

Emocionei-me muito mas tive que me conter muito e acho que nem acabei. Estava a tremer. Foi o ‘She’, na Basílica da Estrela. É ilimitada a sensação que se tem ali. Não sei.

Onde ganhou forças para cantar?

Nos amigos.

Depois desse momento dramático na sua vida levou algum tempo para criar este disco.

Pois, depois foi um pesadelo. Veio um buraco literalmente. Tinha uns espetáculos que quis fazer e quis cumprir. A editora nunca me ligou a dizer que tinha prazos a cumprir. As tantas sentia necessidade eu próprio, mas sabia que não podia forçar isso. Acho que foram os amigos, os músicos, os comprimidos e os espetáculos. Isso demorou um ano e tal mas depois nasce o apetite e a ideia de que tinha que fazer mais um disco para saber se as coisas voltam ao normal. Só que não voltam. Isto nunca me tinha acontecido. Tive um buraco na vida de um ano e tal. Sou até muito espontâneo, chego ao estúdio, pego na guitarra e as coisas saem mas não saía rigorosamente nada. Ficou um buraco na minha mente, foi uma situação impressionante. O melhor foi deixar andar um pouco, não forçando.

Até ao dia em que acorda e…

Acordei para aí às três da manha ou às quatro com uma melodia na cabeça e gravei uns compassos no telemóvel com a guitarra que o Pedro Luz me tinha emprestado. Fui dormir depressa, a pensar: ‘Finalmente’. Fui imediatamente ao estúdio e começaram a sair coisas. Entretanto, pedi ao Jorge Palma para me fazer o texto. O Palma disse que sim, mas que era uma música muito importante para ele fazer e foi para a Serra, e dois meses depois chegou este texto extraordinário. ‘Sem ti/Ninguém me transmite alegria/ Ooooh! Sem ti/ Tu nunca estás longe de mim’.  

Consegue recuperar a alegria?

Acho que sim. Esta música é para homenagear a Pequenina. Este disco começou a ser pensado a seguir aos duetos. Foi uma música que saiu sem imagens, as pessoas acho que ficaram meio chocadas até. Uma música nunca pode passar indiferença às pessoas porque senão não faz sentido, as músicas existem para tocar as pessoas. Isto podia ser também uma canção de amor para toda a gente. Se estou arrependido porque não tinha tido tempo de dizer aos meus ou a ele alguma coisa, agora há tempo. Falando só em mim, tenho o privilégio de poder dizer em público, às claras, o que penso. Depois as pessoas que viram o videoclipe e a imagem com a música têm uma perceção diferente. A mensagem está lá e é uma coisa de esperança e era isso que queria dar a essa música. Com imagem ela tem outro sabor, um sabor esperançoso até.

Também há vários duetos neste disco.

Há algumas músicas que nem fui eu as escolhê-las, foram acontecendo, algumas nem estavam nos planos. Há um ano fui homenageado em Boston com um prémio de carreira e vim no avião com o Boss Ac, e eu muito contente a falar com ele porque estava fazer o disco, em conversa combinámos ele mandar-me umas coisas. Ele fez o texto, pôs a voz e ficou assim. No meio do disco ainda gravei uma música para a novela Amor Maior, e sugeriram a Raquel Tavares que eu não conhecia. Ela tem uma voz ótima, é muito espontânea, muito carnal. Depois foi adaptar ao dueto e saiu bem, a canção é um sucesso.

Agora vai para a estrada?

Sim e vou começar dia 24 de abril, em Beja. 

Já alguém lhe disse que se casou ou divorciou por causa das suas músicas?

Sim, o Jardins deu para tudo! Há pessoas que me abordam e dizem: “Tenho dois filhos por sua causa; separei-me por causa de si; casei-me à sua custa; tive uma noite fantástica de sexo por causa da música”. É uma música que cabe em todos os momentos, bons ou tristes. É um orgulho! Acho que me deviam dar uma avença porque ajudo a natalidade do país!

Alguma vez lhe ligaram a pedir para cantar uma música sua?

Não, mas há uma história extraordinária. Vinha no carro e tocou o telefone em alta voz, como sempre. Era o Pinto da Costa. Disse: ‘Sabe quem fala? Daqui Jorge Nuno’.  E eu vinha de um espetáculo e ia para outro, estava na estrada como se diz na gíria. Disse ‘Olá, presidente’. Ele é super fã da música ‘Sei-te de cor’, aliás casou e abriu o baile ao som dessa música. Ao telefone, ele diz-me que está a ouvir o ‘Sei-te de cor’. E diz-me: ‘Sabe onde estou? Em Veneza, numa gôndola!’ (risos).