O admirável mundo novo da medicina moderna

Tomarei como paradigma da moderna medicina portuguesa o sector das análises clínicas – aquilo que desde há anos passou a designar-se, à inglesa, Patologia Clínica –, até por se tratar do ramo que há mais tempo adquiriu os traços que caracterizam a dita ‘modernidade’. E dir-vos-ei como se passou do modo ‘antigo’ para o ‘moderno’. 

Desde os seus primórdios, e durante bastantes décadas, este ramo da medicina teve um cunho claramente artesanal. As análises eram feitas, uma a uma, por técnicos com formação específica, e os procedimentos que estes tinham de seguir eram laboriosos e morosos. A fiabilidade dos resultados dependia essencialmente da competência, rigor e perícia dos executantes, sendo este o principal critério pelo qual os laboratórios do ramo se distinguiam uns dos outros. Por razões de ordem técnica, ética e económica fáceis de entender, os médicos clínicos apenas requisitavam as análises que, para cada situação, julgassem verdadeiramente indispensáveis. 

Na década de 1970, porém, com a incorporação das “novas tecnologias” informáticas, tudo isso mudou. As análises, na sua grande maioria, deixaram de ser executadas por intervenção humana. Passaram a ser processadas, em série, por aparelhos electrónicos dotados de automatismos, computorizados e programados especificamente para o efeito, isto é, por autênticos robôs. No final de cada ciclo de funcionamento, os resultados obtidos pelo robô são enviados para uma impressora, que os inscreve numa tira de papel. Por outras palavras: o que até então havia sido uma actividade de cunho artesanal – em que a mão-de-obra especializada imperava em absoluto e era insubstituível –, transformou-se, basicamente, numa indústria de tipo virtual. 

E se, até então, um laboratório típico não conseguia realizar mais do que escassas dezenas de análises por dia, depois de apetrechado com estes robôs o mesmo laboratório passou a poder satisfazer, diariamente, centenas ou milhares de pedidos de análises. Quer dizer: após essa inovação tecnológica, a oferta subiu em flecha e, como é de regra, a procura acompanhou a oferta. Nascera uma nova “galinha de ovos de ouro”. Havia que pô-la a render.

Este novo método de produzir análises decorre, na maioria dos casos, sem que o médico especialista introduza no processo qualquer mais-valia da sua lavra. Ou seja: desde há mais de 40 anos, o grosso dos serviços prestados por estes laboratórios – quando não a sua totalidade – deixou de depender dos saberes técnicos que eram património (quase) exclusivo dos patologistas clínicos. Os resultados das análises mais frequentemente pedidas passaram a depender, unicamente, do programa informático que o fabricante do robô haja introduzido no respectivo software. Deste modo, a melhor ou pior preparação e competência técnica do médico especialista e, inclusive, a sua presença física no laboratório, tornaram-se, a bem dizer, irrelevantes. Em regra, ele já não executa as análises, não interpreta os resultados e, muitas vezes, nem sequer cuida de mandar traduzir para português aquilo que a impressora haja escrito em inglês.    

O quase total esvaziamento de conteúdo do que era a actividade tradicional destes médicos, resultante do referido salto tecnológico, deu-se num ápice. Poucos anos haviam decorrido desde o aparecimento da primeira geração de “robôs analisadores”, e já os nossos patologistas clínicos tinham chegado ao ponto de quase não terem, ou não terem mesmo de todo, quaisquer actos técnicos para executarem no seu dia-a-dia profissional.

É compreensível que estes médicos tenham relutância em falar do grande vazio que passou a caracterizar a sua vida profissional. Mas tal não impede que alguns, em privado, reconheçam não saber o que fazer para se ocuparem, durante o tempo em que têm de permanecer nos locais onde são assalariados, já que a sua actividade profissional ficou, desde então, reduzida a pouco mais que tarefas administrativas e rotinas desinteressantes. Exceptuam-se aqueles que, tendo apostado nas áreas técnicas onde ainda não existem máquinas capazes de os substituir por completo (ex: a microbiologia), dedicam a parte nobre do seu tempo de trabalho a tarefas de pesquisa clínica. Mas são raros. Ressalvando estes casos excepcionais, a utilidade profissional dos patologistas clínicos tornou-se tendencialmente residual, para não dizer nula, ao longo das últimas décadas. Esta redundância de causa tecnológica não teve, ainda, “consequências indesejáveis” sobre o vínculo jurídico-laboral dos patologistas clínicos institucionais. Não obstante, já há muito tempo se percebeu que a sobrevivência da Patologia Clínica – essa profissão outrora insubstituível – irá tornar-se inevitavelmente, se é que não se tornou já, difícil de justificar, caso venha a vingar a sempre prometida/ameaçada “racionalidade organizacional” e económica dos serviços públicos de saúde, e tudo indica que ela acabe sendo extinta, por se ter tornado desnecessária enquanto via de especialização médica pós-graduada.  

Sucede, porém, que os apetrechos técnicos disponíveis no mercado (robôs, kits, reagentes, etc.), com base nos quais operam hoje todos os laboratórios de análises clínicas, podem ser adquiridos não só pelos referidos médicos, mas igualmente por qualquer “leigo”. E nada impede que estes últimos compradores potenciais, uma vez munidos dos ditos apetrechos (cuja utilização nada tem de transcendente), fiquem aptos a processar a maioria das análises clínicas que, outrora, só aqueles médicos especialistas (bem como uma parcela importante dos licenciados em Ciências Farmacêuticas) sabiam executar… mas só depois de terem passado por uma formação complementar específica, que durava obrigatoriamente alguns anos.

Esta é uma das consequências lógicas, e inelutáveis, da veloz correria técnica que hoje domina as sociedades ditas civilizadas, como a nossa. E por força da qual se vão tornando rapidamente obsoletas, e redundantes, tantas e tantas profissões tradicionais de prestígio, igualmente condenadas à extinção.

Desta nova realidade decorrem efeitos de vária ordem, tanto para o exercício da medicina como para a saúde das pessoas – e que, entre nós, nunca suscitam reflexão. Como não podia deixar de ser, alguns desses efeitos são perversos. Refira-se por exemplo a prática, banal entre nós há já muitos anos, de “por rotina”, e para quase qualquer situação clínica, serem pedidas longas “baterias de análises”, muitas delas sem justificação racional discernível. Tal prática, a que muitos, cinicamente, chamam “medicina defensiva”, torna possível (e altamente provável) que, só à conta deste ramo da Saúde, milhões e milhões de euros sejam gastos anualmente – sem qualquer critério, controle, ou benefício para os doentes / utentes / consumidores / contribuintes. Quer dizer: em puro desperdício. O que, só por si, deveria também (acho eu) merecer alguma reflexão por parte das autoridades públicas “competentes”.

Devido a estas mudanças, e por razões de ordem fiscal, não só surgiram numerosas “empresas” em substituição de antigos laboratórios médicos individuais, como também têm nascido muitas outras sociedades anónimas que, “oferecendo serviços” neste mesmo ramo, já não pertencem nem são geridas por médicos. À frente destas podem agora estar empresários com outro tipo de background: economistas, gestores, ou meros espertalhões com olho para o negócio… Tais empresas contratam determinados técnicos (patologistas clínicos, farmacêuticos…), em part-time e a recibo verde, já que por lei tem de nelas haver alguém “devidamente habilitado”, que se responsabilize pelos resultados fornecidos. Porém, seja qual for o seu técnico responsável, todas as “unidades laboratoriais” que prestam este género de serviços acabam por operar com base em hardware e software similares ou idênticos. O que mais varia entre elas é, talvez, o número de “postos de recolha” de que cada uma dispõe. De modo que, hoje em dia, acaba por ser com base no respectivo volume de negócios (i.e., na respectiva “quota de mercado”) que estes numerosos “prestadores” tendem a ser distinguidos uns dos outros – e não, como outrora, em função do alto ou baixo prestígio técnico que cada um haja granjeado. E tanto podem implantar-se num hospital como num centro comercial, numa “clínica” ou num banal apartamento de bairro. Inserem-se, sem nenhum escândalo, no SNS, com o qual “estabelecem convenções”. Trata-se, em suma, de gente respeitada, pilares da nossa moderna sociedade. Entretanto, a “qualidade” da “medicina” praticada no país – e, é claro, a saúde de todos nós –, já hoje dependem muito (e tenderão a depender cada vez mais) dos “bens” / “produtos” / “serviços” que estes “prestadores” tenham interesse em disponibilizar. De resto, é bem sabido que os pedidos de meios auxiliares de diagnóstico tendem a subir em flecha à medida que a competência profissional dos clínicos, a sua disponibilidade para ouvir e observar atentamente quem os procura, e a confiança neles depositada pelos pacientes, vão decrescendo – já sem falar nas situações do foro estritamente criminal, em que tudo pode ser fictício, excepto as facturas…

Na sociedade de desenfreado consumismo em que passámos a viver, as análises clínicas tendem pois a ser, também, desenfreadamente “consumidas”. De resto, o seu maior ou menor “consumo” depende sobretudo do marketing e dos mitos que, em cada época, prevaleçam na sociedade, muito mais do que das reais necessidades das pessoas envolvidas. Basta, por exemplo, que o incauto Zé Povinho seja induzido a crer que só poderá gozar de boa saúde se “fizer análises” com frequência – e logo ele irá exigir ao seu médico assistente que lhe requisite numerosas análises, por tudo e por nada. Daí que estas se tenham tornado, para muita gente, um negócio como qualquer outro, aliás florescente e próspero como poucos. E por isso estas empresas vão surgindo por aí, como cogumelos, apesar da “vigilância técnica” a que (em teoria) estão sujeitas por parte das “autoridades competentes”, e não obstante as enormes dificuldades que, ciclicamente, dizem ter de vencer, antes que o seu principal cliente – o Estado – se disponha enfim a pagar-lhes os enormes calotes que rolam, e rolam, e rolam… com anos de atraso.  

Para concluir, direi que me parece altamente provável que a generalidade dos leitores considere inverosímil o quadro que aqui expus, pois sei não ser esta a ideia que os leigos fazem desta profissão. No entanto, é fidelíssimo. Fiz questão de dar este texto a ler, em primeiro lugar, a um colega de curso que terminou a sua carreira profissional como Director do Serviço de Patologia Clínica de um dos principais hospitais públicos de Lisboa, pedindo-lhe que o criticasse com toda a franqueza. Ele confirmou-o em absoluto. 

António Silva Carvalho