80 anos de Guernica. O sol negro de Picasso continua a despertar-nos para o horror da guerra

Há 80 anos o pintor espanhol reagiu a um crime que inaugurou o terror de Estado contra os civis, algo que desde então não parou de se repetir e ampliar em devastação. “Guernica” já não é só o grito contra o que foi feito na pequena povoação basca, é uma bandeira e um manifesto contra…

Cada passo é apenas peso, a memória tropeçando, o susto a entrar no pesadelo, máquinas estranhas, os motores com sede enquanto o incêndio desce sobre pastos e éguas; inútil, a mão desta mulher de joelhos entre as pernas do touro… O gráfico dum grito que, há 80 anos, deitou o sal silencioso no nosso sangue e despertou o outro coração que temos. Nesse parágrafo, recorremos a um corte e montagem a partir do espantoso ciclo de poemas que Carlos de Oliveira dedicou em “Descrição da guerra em Guernica”, e que não apenas dialoga como chega a decalcar aspectos do quadro de Pablo Picasso, pintado em 1937 por encomenda do governo da Segunda República para o pavilhão que representou Espanha na Expo Paris. 

“Guernica” provocou de imediato sensação, com um assalto das consciências que veio a fazer dele não apenas o mais famoso quadro do século XX mas, acima de tudo, o exemplo da mais poderosa denúncia nascida da mão de um pintor contra o terror belicista. A tal ponto foi eficaz, que esta pintura imensa e que até hoje aflige quem perante ela tem ainda aquela paisagem fumegante diante de si – “com o peso das patas, com os longos músculos negros”, a expressão de dor das vítimas feitas “bestas bíblicas”, entregues ao tétano e ao furor -, que o quadro baptizado com o nome da localidade basca se tornou um símbolo universal da denúncia da guerra. Recentemente, houve reproduções do quadro que foram usadas em manifestações da população síria contra a guerra que, desde há seis anos, vem descendo o país a um nível de devastação infernal. Além de, oito décadas volvidas, servir ainda de bandeira e grito às vítimas da guerra, a própria Organização das Nações Unidas se referiu há alguns meses aos bairros da cidade de Alepo, reduzidos a escombros,  como a “Guernica do século XXI”.

O massacre que ocorreu a 26 de abril de 1937, durante a Guerra Civil de Espanha, e que foi visto como um ensaio para os bombardeamentos aéreos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), provocou a morte de 150 a 300 pessoas, segundo estimam os historiadores. Foi um prenúncio das tácticas adoptadas pelos governos facínoras, em que áreas civis são sacudidas por sucessivos bombardeamentos aéreos.

A partir das quatro horas da tarde, a cada quarto de hora esquadras de aviões nazis e italianos apoiaram a guerra do General Francisco Franco contra a Segunda República espanhola, lançando sobre Guernica bombas incendiárias depois das bombas destrutivas. O sentido é provocar um tal choque e terror que quaisquer pretensões de resistência sejam abandonadas.

Dois dias depois, na sua oficina da Rue des Grands-Augustins, em Paris, Pablo Picasso viu as primeiras fotografias da tragédia, e no primeiro de maio começou os esboços preparatórios. Com três metros e meio de altura por quase oito de comprimento, a tela captura, entre o preto e o branco, passando pelos tons de cinza, a curva inteira da garganta que produz em toda a extensão esse grito de um “som impossível”.

Foram vários os poetas que ao longo dos anos se fascinaram pelo poder deste quadro, e o francês Michel Leiris expressou o sentimento de perplexidade e assombro perante uma obra ao mesmo tempo tão terrível e bela, afirmando que, através dela, “Picasso nos envia a nossa carta de luto: tudo o que amamos vai morrer”. O pintor já militava em defesa da Segunda República, e aquele quadro não foi apenas provocado pela comoção que sentiu perante o massacre cometido sobre a pequena povoação basca, mas foi efectivamente um fruto da propaganda contra o franquismo. De resto, alguns anos antes de morrer, Picasso pediu para que o quadro só fosse devolvido a Espanha quando as liberdades públicas fossem restauradas. Isso levou a que só em 1981, depois da morte do ditador, em 1975, e da restauração da democracia, em 1977, o quadro tenha chegado a Espanha. Durante os anos em que Franco esteve no poder, “Guernica” foi como um escarro que lhe queimou o rosto pelo mundo fora. Depois da Expo Paris, foi exibido  em Oslo, Copenhaga, Estocolmo e Gotemburgo, Londres, Leeds, Liverpool e Manchester. Em 1939, o quadro foi enviado para os EUA, onde foi mostrado no Museu de Arte Contemporânea de São Francisco, primeiro, e no Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova Iorque, mais tarde, instituição onde se manteve até 1981, depois de breves passagens por cidades como Chicago e Filadélfia, e pelo Brasil, na década de 1950.

Por estes dias, e para assinalar os 80 anos da obra e os 25 da chegada ao museu Reina Sofia (Rainha Sofia), esta instituição de Madrid – cidade onde até hoje persistem bem vivos resquícios do franquismo – quis homenagear o génio do pintor espanhol, mas decidiu fazê-lo com uma exposição que está a gerar bastante controvérsia, sendo o museu acusado de “ocultar a Memória Histórica” do quadro de Picasso. No diário “El Espanol”, o jornalista Peio H. Riaño assina uma veemente denúncia da exposição “Piedade e terror em Picasso: o caminho até Guernica”, que estará patente no museu até 4 de setembro. Reunindo 150 obras-primas do artista, vindas da coleção do museu e de mais de 30 instituições de todo o mundo, o jornalista e crítico acusa o casal que comissariou a mostra,  Timothy Clark e Anne Wagner, de relegar para um distante segundo plano as referências à Guerra Civil, levando a crer que “Guernica” não é tanto um grito social e político, mas é antes o produto de uma evolução plástica. Nenhum dos dois sequer lê espanhol, como nota Riaño, e, segundo ele, preferiram deixar de lado qualquer metodologia historiográfica, para retirarem ênfase à denúncia da Guerra Civil espanhola e às origens do quadro, para construírem “um relato formal e estético”.

Na conferência de imprensa em que a exposição foi apresentada, Clark justificou esta perspectiva que ignora a principal motivação que levou Picasso a pintar “Guernica”, admitindo: “Como eu sou inglês e a Anne norte-americana, não nos sentimos qualificados para falar da Guerra Civil. Não tínhamos nada de novo para dizer sobre ela”. 

 

Publicado originalmente na edição impressa do b,i. de 8 de abril de 2017