Francisco Vale: “No processo da concentração editorial, a Babel foi o que correu pior”

Francisco Vale, editor da Relógio D’Água, que acaba de adquirir os direitos da obra de Agustina Bessa-Luís, dá entrevista ao Sol na edição que vai para as bancas amanhã. Ficam aqui dois excertos da entrevista que não couberam nas quatro páginas.

Francisco Vale: “No processo da concentração editorial, a Babel foi o que correu pior”

Qual é o livro a que está sempre a voltar?

Podia falar de dois, pelo menos. Anna Karenina, do Tolstói, uma obra quase perfeita, e As Ilusões Perdidas, de Balzac, que tem muito a ver com o jornalismo e a edição em meados do século XIX, com muitas semelhanças com o que se passa hoje.

E de um autor contemporâneo?

Acho que a última grande obra literária será talvez o Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy. Já tem umas décadas, mas é a última grande obra que li de um autor contemporâneo.

O que há de tão singular nesse livro?

Criou um personagem, o juiz, que é dos mais completos e devastadores da literatura do século XX.

Qual foi a primeira vez que um livro lhe deu a certeza de que iria enveredar pela literatura?

Os livros do meu pai em casa eram sobretudo de História, vários eram do Stefan Zweig, e alguns deles, designadamente o Segredo Ardente, marcaram-me muito. Havia também obras do Somerset Maugham, e lembro-me de ter gostado muito de O Fio da Navalha. Mas há muito que não o leio. É sempre perigoso revisitar essas leituras preferidas da infância e da adolescência.

À volta da literatura há uma série de figuras, personagens de carne e osso. Houve alguma que o tenha marcado?

Para mim foi muito marcante o José Cardoso Pires, que foi quem me apoiou na altura em que precisei de abandonar a vida política activa. Estava cansado dela. Ele ajudou-me a ingressar no jornalismo, no Diário de Lisboa, que foi uma experiência feliz. Na altura, o jornalismo era muito diferente de agora. Nas redacções não havia pessoas vindas dos cursos de comunicação, eram pessoas que gostavam de escrever. Por definição, havia sempre alguns escritores entre eles. Naquela redacção trabalhei ao lado da Maria Judite de Carvalho, um figura sempre muito tímida, do Stau Monteiro, sempre desejoso de passar um fim-de-semana em Paris, do Fernando Assis Pacheco, que foi meu chefe de redacção… Foi o Cardoso Pires que me permitiu conhecer este mundo e estou-lhe muito grato por isso. De maneira que editar a obra dele é para mim um prazer adicional: um modo de devolver um pouco aquilo que ele me deu.

Há algum editor que tenha sido para si uma inspiração?

Obviamente sempre apreciei a Gallimard, apesar das ambiguidades do Gaston Gallimard em relação ao processo político francês durante a II Guerra Mundial. A Faber & Faber é também uma referência para mim, e aqui em Portugal houve algumas editoras que me marcaram: a Portugália, de Agostinho Fernandes, que antecipou muitos dos autores que ainda hoje lemos, também a Estúdios Cor.

E alguma figura na edição portuguesa que eleja como central?

O Vitor Silva Tavares, editor da & etc. Sempre achei que era um editor obstinado. Embora esse não seja o meu caminho na edição, aquela recusa de tudo o que fosse a dinâmica industrial.

 


 

Porque não vendeu a Relógio D'Água quanto ocorreu o fenómeno da concentração editorial?

Não me sentiria bem deixando de ser editor ou sendo-o às ordens de pessoas a quem não atribuía legitimidade para me dirigirem em termos editoriais. Como sabe, houve essencialmente três grupos a surgirem deste fenómeno e que tiveram destinos diferentes: A Babel, a Leya e a Porto Editora. A primeira foi a que correu pior, a Leya foi um caso intermédio e a Porto Editora julgo que foi aquela que teve uma atitude mais inteligente, integrando os editores e os projectos. Mesmo assim, é muito diferente ser-se editor numa grande empresa, onde se é um funcionário e recebe um ordenado, muitas vezes até bastante razoável, a ser o editor que corre por sua conta e risco, ser independente.

Fica a sensação de que antes da concentração editorial, a Relógio D’Água era uma editora entre pares, tinha outras igualmente admiráveis ao nível dos seus catálogos, e neste momento, do ponto de vista estritamente literário, parece que já edita mais que a Porto Editora.

Ou então escolhe livros que acabam por ser mais abordados pela crítica e por ter mais peso na divulgação jornalística. Nós editamos cerca de 100 títulos por ano, a maior parte na literatura e na área das ciências duras, e reeditamos cerca de 20 livros. Isto configura o perfil de uma média editora à escala portuguesa. Claro que esses grandes grupos, como a Leya e a Porto Editora, editam mais, mesmo abstraindo do livro escolar, que é o suporte deles. São muito dependentes de uma certa flexibilidade do Estado em relação ao livros escolar. No dia em que se avançar mesmo para a reutilização dos manuais eles vão passar algumas dificuldades.

Mas quando fala na flexibilidade do Estado, quer dizer que enquanto o Estado não escolher proteger as famílias ao invés dos interesses empresariais…

Acho que o Estado tem em conta a viabilidade desses grupos empresariais. Garante-lhes condições que permitem o seu funcionamento nos termos actuais. Em todo o caso, há um fenómeno curioso que passa por mesmo nesses grupos começar a haver uma aposta crescente nas suas chancelas mais literárias. É o caso da Quetzal e da Bertrand na Porto Editora, e da Dom Quixote na Leya. Não há dúvida de que estes grupos perceberam que há um público exigente na área literária.