Os ‘trouxas’

Apesar do pessimismo de editores e livreiros sobre o futuro do livro (e não só do livro) em papel, apesar de ser um pesadelo para os olhos ler um eBook inteiro, ou até mesmo parcialmente, ainda que em ecrã de boas dimensões, apesar de tudo, e felizmente, vão sendo publicadas obras impressas a um ritmo…

Tão apreciável que não faltam críticos de tanta e criativa produtividade.

Esperança, colega meu na Agência Lusa no início dos idos 90 do século passado, queixava-se quando já em final de turno o editor da secção lhe depositava na secretária uma resma de takes das agências internacionais para traduzir e enviar para a ‘linha’ (de distribuição aos órgãos de comunicação social assinantes do serviço noticioso). Com as mãos esfregando os olhos e tapando a cara, lá vinha o protesto da praxe: «Tanto papel… para quê tanto papel??? Eu faço, mas não consigo dar conta disto tudo».

No mercado livreiro, são tantos os livros, tantas as constantes ‘novidades’, que não raro escapam até aos leitores mais atentos. E muitos, obviamente, escapam-me.

Vêm estas linhas a propósito de obra lançada por Eduardo Paz Ferreira em Julho de 2016, que, não obstante me ter escapado durante meses – até agora, e a falha só foi colmatada graças a oferta de meus maiores e mais queridos Mentores –, me merece recomendação aos leitores que, como eu, não deram por ele há mais tempo.

Por Uma Sociedade Decente é o título (editora Marcador) e já vai na terceira edição. 

Em nota do autor, «em jeito de introdução», pode ler-se:

«A primeira condição para termos uma sociedade decente é a de que cada um de nós tenha um comportamento decente. Não tenho, todavia, qualquer dúvida em reconhecer que esta é uma condição necessária, mas não suficiente, até porque, se não faltam estímulos aos comportamentos indecentes, eles rareiam quanto ao comportamento decente, que tende a passar despercebido.

«Frequentemente quem tenta pautar a vida pelas regras morais e éticas que caracterizam uma sociedade decente é considerado ‘trouxa’».

Concorde-se ou não com Paz Ferreira – e assumo que em muito discordo de teses do autor –, tem total razão… nesta parte (como em muitas outras, mas, com o devido respeito, muito longe, para mim, de a ter em todas) .

Não tenho o privilégio de conhecer Eduardo Paz Ferreira pessoalmente, nem de o ter tido como professor na Faculdade de Direito de Lisboa – e não é como Francisca Van Dunem (a ministra da Justiça, sua mulher), quem, segundo o próprio confessou em entrevista a Ana Sá Lopes no i, não se lembra de ter sido sua aluna, porque o regente da cadeira de Finanças Públicas do meu curso foi o malogrado Sousa Franco (aliás, em tempos sócio de Paz Ferreira em escritório de advocacia). Mas tenho a agradecer-lhe o prazer de uma boa leitura e fonte de reflexão. Que muito recomendo. Mesmo discordando com modelos e perspetivas sobre muitas coisas.

Veja-se o que Paz Ferreira escreve sobre os media e a comunicação social. Não que discorde da análise e do diagnóstico, mas, sim, da afirmação, em jeito de conclusão, que retira sobre a realidade nacional.

Escreve Paz Ferreira: «A interferência das agências de comunicação e dos meios de comunicação social não pode ser devidamente pesada se não levarmos em consideração o monolitismo que crescentemente se instala a nível mundial, com grandes grupos a comprarem títulos independentes».

Até aqui, tudo certo (ou seja, errado). 

Mas acrescenta: «E, em Portugal, já nem sequer precisam de os comprar: são já todos deles ou alinhados com eles».
Isso, caro professor, é que não são. O SOL e o i resistem, independentes, embora com a dificuldade suprema de estarem num mercado pequeno em que os pequenos, independentes, respiram debaixo de água agarrados a uma palhinha que são os seus leitores/compradores e os anunciantes que não os votam ao esquecimento ou aos quais não passam despercebidos.

Pior do que não apoiar ou dar valor àquilo que se tem ou pode ter, com muito pouco, é ignorá-lo ou apenas lamentar a sua perda quando se deixa de ter ou poder ter.

Esse é, aliás, um problema da sociedade indecente em que vivemos. Não darmos valor ao que temos, enquanto temos, e chorarmos quando sentimos a sua falta, porque já o perdemos.

Não somos trouxas. Somos quem e como somos – e acredito que ainda somos muitos – em busca de uma sociedade decente.

De esquerda ou de direita, mais ou menos idealistas ou pragmáticos, vivemos, de facto, num tempo com défice de valores e de debate, de reflexão, de pluralismo e de tolerância entre pensamentos diferentes – o que nos amesquinha ante a contradição da globalização sem regras e do egoísmo individualista desprovido de tudo e do mais elementar.

Mas ainda há muitos ‘trouxas’. Inconformados. Resistentes. Mesmo que à medida que o tempo passa e a capacidade de resiliência e resistência se vai esgotando tudo se torne mais difícil.

Por enquanto, caro professor, e também subscrevendo o «eco de Simone e Ivan Lins» que é subtítulo de tão interpelativo livro de tão decente Autor, há aqui mais uns ‘trouxas’ – como quem se assina – que também persistem em acreditar que «começar de novo vai valer a pena»…

Ou, pelo menos e apesar de tudo, vai valendo.