Portugal muda devagar…

Com ‘visões’ ou ‘aparições’, o centenário de Fátima juntou há uma semana crentes e não crentes à volta da celebração presidida pelo Papa Francisco, mobilizando as televisões e os media em geral, como raramente se viu.

Apesar de se apresentar como peregrino, Francisco teve à sua volta o Estado, representado em peso na Cova da Iria. Alguns, com fé confessada. Outros, agnósticos ou ateístas assumidos (ou disfarçados), jamais tocados pelo mistério da fé.

António Costa acha-se em estado de graça, mas não tem ilusões de que carece de legitimação eleitoral para sacudir as amarras que o ligam ao PCP e ao Bloco, identificados com diferentes igrejas e credos que não passam por Fátima.

São outros os ‘pastorinhos’ de Jerónimo de Sousa ou de Francisco Louçã, apesar de o Avante!, órgão da família comunista, ter explicado, judiciosamente, que «Fátima criou raízes na religiosidade popular, frequentada por trabalhadores, ‘povo miúdo’ e comunistas», e que o «acervo cultural das massas católicas não está longe de ideias comunistas». De repente, a ‘alienação’ converteu-se em identidade próxima.

Já Louçã confessaria que «se a religião não teve nenhum papel na minha vida, a Igreja Católica teve». Uns ‘santos’.

Falhada a tentativa de trazer o Papa a Lisboa, quando chefiava o Município, António Costa esforçou-se por aproveitar a vinda de Francisco, quer numa mensagem gravada em vídeo – e distribuída nas redes sociais –, quer a seguir à curta audiência que teve com o Sumo Pontífice, rendido a uma «personalidade tão inspiradora para o mundo».

O centenário foi ainda pretexto para um debate teológico sobre a natureza percecionai e fundacional de Fátima. O próprio bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, revelaria no Observador que já fora um cético em relação ao fenómeno religioso da Cova da Iria. Um racionalista precisa de tempo para interiorizar convicções.

Discípulo do cardeal Ratzinger, D. António Marto, ainda em Roma, «sonhava com a democracia em Portugal» e admirava Mário Soares, porque «ele contou-me pessoalmente que teve sempre a peito que no 25 de Abril não acontecesse o que aconteceu na Primeira República: a hostilidade para com a Igreja». A Igreja respirou fundo. E hoje os seus desafios são outros.

Portugal e a Igreja mudam devagar. No anterior Regime, Salazar confiava moderadamente na Igreja Católica, mas ambos guardavam medidas distâncias.

A seguir ao 25 de Abril, no período mais revolucionário, os três ‘efes’ eleitos pelo Estado Novo – Fátima, Futebol e Fado – conheceram momentos de eclipse. A Igreja foi olhada de soslaio, o futebol ostracizado (até pelo jornal A Bola…) e o fado, com Amália à cabeça, não menos.

Decorrido quase meio século sobre o colapso da ditadura, a Igreja não sofre incómodos de maior (descontadas as picardias do Governo, envolvendo o financiamento de colégios católicos); o fado foi reabilitado e reconhecido como património imaterial da Humanidade, com direito a Amália no Panteão, desde 2001; e o futebol, com Eusébio trasladado para o Panteão em 2015, transformou-se num poderoso anestésico social, ajudado pelas televisões.

Assistiu-se a um fim de semana vertiginoso. Irrepetível. Dos peregrinos em Fátima aos ‘fiéis’ na Luz. Depois, a inesperada vitória de Salvador Sobral no Eurofestival foi a ‘cereja em cima do bolo’ para elevar literalmente ao rubro o orgulho lusitano.

O país tem fome de heróis. Com essa perceção, as televisões afadigaram-se na pesquisa da história do cantor e depressa passaram à exploração obsessiva do feito inédito para afago do orgulho pátrio.

Um festival que a RTP já só transmitia por desfastio, por dever de ofício, serviu para lançar um novo ídolo, apesar de o próprio preferir uma sensata modéstia.

Perante um ‘astral’ tão propício, o poder político andou num rebuliço. António Costa não se fez rogado na primeira fila em Fátima – nem no camarote do Estádio da Luz.

Num cartaz gigante, desfraldado nas bancadas, lia-se com ironia «Habemus Tetra», inspirado na clássica frase que costuma anunciar, no Vaticano, a eleição de um novo Papa.

‘Habemus Costa’, parecia ler-se no rosto esfuziante do infatigável primeiro-ministro, com Centeno sentado ao lado, já com o ‘fecho de contas’ do INE no bolso, trazendo a boa notícia do crescimento de 2,8% no primeiro trimestre. ‘Filtrada’ para Marques Mendes, este não falharia o seu papel de arauto na SIC.

O que era ‘alienação’ no passado ilumina agora o caminho do Governo. A felicidade é tanta, que António Costa quis abrir uma cimeira em Lisboa, promovida pelo Financial Times, sobre as virtudes do luxo. Íntima da Igreja, do futebol e do fado, a ‘geringonça’ abriu-se ao consumismo topo de gama. Um passo muito neoliberal… ou um ‘milagre’?…