As ‘rendas’ e os barões assinalados…

O que têm em comum personalidades tão diferentes como Ricardo Salgado, Armando Vara, Helder Bataglia, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro ou, mais recentemente, António Mexia? Todos estão metidos em demorados sarilhos com a Justiça e nenhum deles escapa a ser mencionado na nebulosa que envolve os governos socialistas de José Sócrates.

Da geração de ‘supergestores’, que se distinguiam pela audácia dos negócios – e por um nível de remunerações e de prémios de alto gabarito –, já sobejam poucos com folha limpa.

A novidade de António Mexia como arguido (e de mais alguns confrades da rede elétrica) ocorreu na mesma semana em que quatro juízes mediáticos intervieram nas Conferências do Estoril falando de corrupção e dos mecanismos ao alcance da Justiça para incriminar os responsáveis, sobressaindo a ‘delação premiada’ (ou direito premial).

Ironicamente, terá sido uma denúncia anónima que pôs os investigadores na órbita da EDP e da REN.

O comunicado da Procuradoria não foi meigo, admitindo «factos suscetíveis de integrarem os crimes de corrupção activa, corrupção passiva e participação económica em negócio».

Portugal começa a exibir um rol de situações que desmente a ideia feita de sermos um país à margem deste tipo de criminalidade. As relações perversas entre agentes políticos e económicos têm contribuído para adensar as cumplicidades e os favores entre compadres.

Bem advertia António Barreto, ainda em março, neste jornal, que se abateu sobre Portugal «uma espécie de peste negra que é o BES, a família Espírito Santo» e «uma espécie de praga, a praga Sócrates. Faz lembrar uma praga bíblica». Foi certeiro.

Coincidência ou não, Jardim Gonçalves, o fundador do BCP, reapareceu numa entrevista ao Público, na qual recuperou episódios menos conhecidos da ‘guerra’ que estalou em 2007 no então maior banco privado português, e que levaram ao seu afastamento.

Para ele, «o Governo [de José Sócrates] precisava de dominar o BCP», porque necessitava «de um controlo mais fino do sistema financeiro para fazer a colocação da dívida pública».

Curiosamente, o ex-banqueiro nomeou António Mexia como pivô dessa operação para tomar conta do BCP, em nome de um grupo de interesses que envolvia, também, a Ongoing, entretanto falida após o colapso do BES.  

‘Praga bíblica’ ou não, o certo é que o xadrez desdobrou-se em vários tabuleiros, adquirindo contornos imprevisíveis.

Numa altura em que continua adiada a acusação relativa à Operação Marquês, são agora as ‘rendas excessivas’ da eletricidade a perfilarem-se na agenda mediática, que estava tão adormecida em relação ao tema como o Bloco de Esquerda – que acordou agora estremunhado para um problema que, há um ano, já discutia com o PS.

A procissão começa a sair do adro e da zona de conforto.

O afundamento do BES, a questão das imparidades da Caixa (e as fragilidades detetadas noutros bancos), o colapso da PT e, agora, as suspeitas que recaem sobre a EDP e a REN, são polos geradores de muitas incertezas. São as ‘rendas’ e os barões assinalados…

E convirá não varrer para debaixo do tapete outros casos que fizeram e fazem correr muita tinta: Monte Branco, Operação Furacão, Portucale, Face Oculta, BPN, Remédio Santo, Operação Labirinto, Vistos Gold. Estamos bem servidos.

Não admira, por isso, que a Justiça tenha reaparecido em força nas Conferências do Estoril, juntando no mesmo palco magistrados com o protagonismo de Antonio Di Pietro, Sérgio Moro, Baltazar Garzón, além de Carlos Alexandre. Uma raridade.

Estes ‘tenores’ anticorrupção foram unânimes na preocupação de agilizar os meios judiciais para que o crime não compense. E aproveitaram a oportunidade para relançar o debate sobre a ‘colaboração premiada’, pelo seu valor instrumental na investigação de certo tipo de crimes que, doutro modo, ficariam no segredo dos ‘pactos de silêncio’.

Num país onde as malhas continuam lassas para travar o enriquecimento ilícito, o combate à corrupção, a qualquer nível da pirâmide social, não pode ser um exercício meramente teórico. Ou visto como uma heresia.

Em 2015, a coligação PSD-CDS ainda tentou um avanço nessa matéria, mas a boa intenção foi bloqueada pelo Tribunal Constitucional, entretanto eclipsado.

Vale a pena recordar que uma das normas então chumbadas pelos juízes do TC previa a possibilidade de pena de prisão para quem «obtiver um acréscimo patrimonial ou fruir continuadamente de um património incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados».

Que jeito daria esta norma em alguns processos em curso…

Nota negativa: O Sindicato dos Juízes ameaça com greve. É bizarro. Mas os juízes não integram órgãos de soberania? Borraram a pintura.