A ‘dança do fogo’…

A oligarquia está aflita. Quer retomar o ambiente de festa, mas tem medo de dar nas vistas

À medida que a tragédia de Pedrógão Grande se foi esbatendo nas primeiras páginas da imprensa e nos alinhamentos dos telejornais, as conclusões dos relatórios das entidades envolvidas no terreno são absolutamente obscenas. Nada falhou, tudo funcionou na perfeição. A culpa vai morrer solteira, como aqui escrevemos.  

De sorriso novamente plantado no rosto, António Costa ‘reapareceu’ nas Galveias – remoçado e pletórico de otimismo – na cerimónia de apresentação da candidatura de Fernando Medina à Câmara de Lisboa, vestindo o fato de secretário-geral do PS, com imaculada autossatisfação. Sem vestígios da catástrofe ocorrida dez dias antes. 

Arrumada no armário a ‘farda’ de primeiro-ministro consternado com a calamidade – sem nunca ter feito, sequer, um ato de contrição -, António Costa demonstrou naquela cerimónia, pela forma descontraída como nela compareceu, o mais completo alheamento pelo falhanço do Estado na proteção das populações e pelo desnorte operacional em Pedrógão Grande. Insensibilidade, inconsciência, irresponsabilidade? Escolha o leitor. Corrigiu a pose, defensivo, no debate quinzenal no Parlamento. Tarde demais.

Hoje é claro que se quis aproveitar o luto e a dor de Pedrógão Grande para sufocar à nascença a justa indignação dos sobreviventes e a revolta das populações abandonadas à sua sorte, num país desertificado no interior e com manchas florestais desleixadas.

O fracasso do Estado só não fora tão óbvio em situações anteriores, porque as perdas materiais e, sobretudo, de vidas humanas, ficaram longe da dimensão de Pedrógão.

Porém, repetiu-se no cenário operacional a mesma crónica desorientação, seguida do passa-culpas para ‘sacudir a água do capote’. 

Em maio de 2006, era António Costa ministro da Administração Interna, foi aprovada uma resolução pomposamente intitulada ‘Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios’. Ficou no tinteiro. Ninguém aproveitou a lição. A começar por Costa, que vinculou o Estado ao famigerado SIRESP. Agora, pressionado, admite ‘emendar a mão’.

Ainda em 2014, o Parlamento aprovaria, por unanimidade, um relatório sobre incêndios florestais, do qual foi relator outro socialista, Miguel Freitas, produzido por um grupo de trabalho parlamentar.

Logo no preâmbulo, o documento defendia, taxativamente, que «os incêndios florestais representam a mais séria ameaça ao desenvolvimento sustentável da floresta nacional, cujo risco de arder é quatro vezes superior ao dos países do Sul da Europa». 

Invocavam-se dados estatísticos terríveis: «Nos últimos 33 anos (1980-2013) arderam em Portugal mais de 3,5 milhões de hectares, dos quais cerca de 1,95 milhões nos últimos 14 anos, ou seja, 55% da área ardida nos últimos 33 anos foi já no século XXI». Outro estudo para a gaveta. 

A «prevenção e o combate continuam de costas voltadas», concluía melancolicamente o relator. 

Uma coisa é certa: Pedrógão Grande assinalou o fim da ilusão. O país está vulnerável a qualquer catástrofe. Seja um grande incêndio, uma inundação maior ou um sismo mais violento. 

Em Portugal, a legislação deixa muito a desejar e as obrigações afetas à Proteção Civil obedecem a uma lógica no papel que fracassa na prática. Pior ainda, se a cadeia de comando é mudada à beira do Verão para dar guarida a ‘protegidos’ com cartão partidário.

Os abraços, as gravatas pretas e os afetos são manifestações de circunstância, que ficam bem nas televisões mas passam depressa à história e não disfarçam a mediocridade dos dispositivos.

A incompetência declarada do Estado no socorro às vítimas deveria obrigar os responsáveis a envergonharem-se e a tirarem as devidas consequências.

Pelo contrário, os ‘patrulheiros de serviço’ apressaram-se a perseguir um jornal espanhol – El Mundo – por este ter publicado uma reportagem da tragédia na qual ‘profetizou’ que António Costa não iria sair politicamente ileso.

Lesto, o Sindicato dos Jornalistas foi a reboque e tomou-lhes as dores, questionando «diretamente a publicação espanhola». Ridículo! 

A nomenclatura não estava preparada para este abalo, quando tudo parecia correr de feição. Desde a vinda do Papa a Fátima – exuberantemente aproveitada -, às vitórias no futebol, na Eurovisão e às boas notícias de Bruxelas, o caminho para a glória parecia irreversível.

Afinal, tudo se precipitou. A oligarquia está aflita. Quer retomar o ambiente de festa, mas tem medo de dar nas vistas. A memória do sofrimento exposto de dezenas de famílias, que ficaram destroçadas, ainda está muito viva.  

Timoratos, o PS, o PCP e o Bloco meteram ‘a viola no saco’. A imprudência de Passos Coelho deu-lhes muito jeito. A ‘dança do fogo’ está em cena com os bailarinos do costume. A barragem de propaganda segue dentro de momentos…