Saúde. Costa ignora críticos de esquerda

Grupo que endereçou carta ao PS em junho tinha reunião prometida com Costa, mas passam 15 dias e o encontro não foi marcado. “A partir do momento em que se instala o silêncio, entendemos que o PS está a fechar as portas”

A reunião com António Costa ficou prometida para a semana passada, mas o tempo foi passando e não chegou nem uma convocatória nem qualquer pedido de adiamento. O movimento de críticos “de esquerda” que se mobilizou nas últimas semanas para contestar a política que está a ser seguida pelo governo na área da Saúde acredita que o silêncio do PS tem um significado: António Costa fechou as portas que a secretária-geral adjunta do PS, Ana Catarina Mendes, tinha deixado abertas.

A mobilização deu os primeiros passos a 8 de junho, quando um grupo de profissionais de saúde que se dizem apoiantes da atual solução governativa dirigiu uma carta a Ana Catarina Mendes a lamentar que não existam sinais de alteração da política de saúde face ao passado e a alertar que há um défice na promoção da saúde que tem conduzido a uma esperança de vida pouco saudável dos portugueses, atrasos nas consultas, excesso de mortalidade sobretudo nas estações de inverno e verão na população idosa e uma prevalência de excesso de peso que atinge mais de metade da população. A carta veio a público no final de junho e, dias depois, estava agendada a reunião pedida ao PS, a que se seguiram reuniões com Bloco de Esquerda e PCP. No encontro com Ana Catarina Mendes, revelou o movimento que tem como porta-voz Cipriano Justo, antigo militante comunista e ex-subdiretor geral da Saúde, a secretária-geral adjunta propôs uma reunião com António Costa a ter lugar na semana de 10 a 16 de julho. Entretanto o primeiro-ministro regressou de férias, mas o encontro acabou por não se marcado nem tornou a haver contacto.

Na segunda-feira, para expressar o descontentamento, seguiu nova missiva para Ana Catarina Mendes, mas ontem ao final do dia ainda não tinha chegado resposta. Cipriano Justo disse ao i que, por esta altura, já não existe expectativa de virem a ser recebidos pela direção política do PS. “Já deu sinais suficientes relativamente à sua indisponibilidade para nos receber”, diz o médico. “Não me parece que seja uma questão de agenda uma vez que havia sempre a possibilidade de fazer um contacto formal ou informal no sentido de dizer que a reunião não podia ser agora. A partir do momento em que se instala o silêncio, tem um significado e o que entendemos é que o PS está a fechar portas.”

Cipriano Justo salienta que quem propôs a reunião com António Costa foi a secretária-geral adjunta do PS e explica que não interpelaram o ministério da Saúde por considerarem ser preciso uma intervenção superior. “O nosso percurso não é conversar com o ministério da Saúde porque o ministério diz sistematicamente que tem um programa. O que nós teimamos é que, na prática, o programa que está a ser seguido não promove a saúde no país. Tem havido promessas, tem havido anúncios, mas as coisas não passam disto”. O médico salienta ainda que, aproximando-se o período eleitoral, a discussão da política de saúde ficará ainda mais para segundo plano. “Há uma tradição de que tudo é feito pensando nos ciclos eleitorais. A partir de certa altura começa-se a anunciar a construção de hospitais, a abertura de centros de saúde e a contratação de médicos, que é o que neste momento se está a ouvir. Quanto à política de saúde propriamente dita, não se ouve uma palavra e essa é a nossa a agenda. A nossa agenda não são mais médicos, mais centros de saúde e mais hospitais. O que queremos discutir é para que servem”.

Neste intervalo entre a reunião inicial com o PS e a espera pela marcação do segundo encontro, o grupo que promete continuar a reivindicar mudanças na política de saúde lançou um manifesto, que já foi assinado por 130 profissionais de saúde. Do “núcleo duro” do movimento fazem parte, além de Cipriano Justo, os sindicalistas Guadalupe Simões, Mário Jorge Neves ou Sérgio Esperança e médicos como Jorge Espírito Santo ou José Manuel Boavida, presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal.

Na próxima quinta-feira, haverá uma nova reunião do grupo, para discutir os próximos passos. Cipriano Justo sublinha a abertura que houve do lado do PCP e do Bloco de Esquerda para a apresentação de propostas concretas, sendo que uma das ideias do grupo é a criação de estruturas locais de promoção de saúde ao nível dos concelhos, que juntem agentes dos centros de saúde e hospitais mas também da Segurança Social e escolas. Se a reunião não chegar, diz o porta-voz, “o movimento vai continuar e vai seguramente intervir de outras formas, de maneira a dar sinais suficientemente fortes. Se queremos ter uma aliança no arco da solução política e uma das partes se está a pôr de fora, vamos continuar a trabalhar com os que mostraram vontade de estar dentro”.

A carta do descontentamento: “O que está sobretudo em causa é um problema de programa político” 

Cara Ana Catarina Mendes
Secretária-Geral Adjunta do PS,
 
Tomamos a liberdade de a contactar novamente, uma vez que ainda não recebemos da sua parte qualquer sinal sobre a reunião com o primeiro-ministro que estava agendada para a semana de 10-16 de Julho, como nos tinha sido prometido.
Estará certamente lembrada que no encontro que mantivemos no passado dia 4 de Julho partiu de si a ideia de realizarmos essa reunião, com a qual a delegação concordou de imediato, dada a importância do assunto.
Estará também lembrada de que, além das preocupações demonstradas com o rumo da política de saúde do governo, mostrámos igualmente total disponibilidade para cooperar com o Partido Socialista na identificação de soluções que levassem à alteração da estratégia que está a ser seguida, e que no essencial não se desvia do padrão que os sucessivos governos vêm mantendo, com os resultados que estão à vista e de que lhe demos conta. 
Como afirmámos na altura, o que está sobretudo em causa é um problema de programa político, sendo que o financiamento e o seu eventual crescimento devem ocupar um lugar subordinado. Não é o financiamento que irá dar as respostas às perguntas que os portugueses estão a fazer sobre a sua saúde e o SNS, são as soluções políticas que devem utilizar e orientar esses recursos, dando as respostas que hoje, nuns casos estão em aberto, e que noutros estão deficitárias. Não sendo uma questão de menor importância, não são, no entanto, os recursos financeiros que estão em causa, são as ideias que são questionáveis.
 
No debate do passado dia 12 de Julho o ónus das ideias ficou uma vez mais evidente. Relativamente aos indicadores-chave da saúde da população e do desempenho do SNS, que tivemos a oportunidade de lhe expor, não foram na maior parte dos casos sequer aflorados e noutros foram uma vez mais remetidos para um futuro sempre indeterminado e incerto. Nenhuma medida foi equacionada nesse debate para aquele que é um grave indicador do estado de saúde dos portugueses – a esperança de vida com doença ou incapacidade –, nem para a epidemia do excesso de peso da população, nem para o excesso de mortalidade sazonal nos idosos, nem para os 800 mil doentes em excesso de espera para uma primeira consulta hospitalar, nem para o volume das urgências hospitalares, nem para a elevada despesa privada com os cuidados de saúde, nem para a desregulação da iniciativa privado. No essencial, os males da saúde são estes. Precisamos de lhes dar resposta.
 
Reafirmamos a nossa condição de apoiantes da solução política e da maioria parlamentar que está na base da constituição do governo, para a qual contribuímos e para a qual continuamos a trabalhar. Defendemos que é no seio da esquerda que estes problemas devem ser analisados e discutidos, e encontradas as respectivas soluções políticas. Entendemos que ninguém nem nenhuma entidade de esquerda se deve esquivar a enfrentar o que não está a correr bem, seja qual for a razão invocada. Temos procedido de boa-fé com o Partido Socialista ao declarar com toda a lealdade que não é uma amálgama de medidas casuísticas e desarticuladas que fazem uma política de saúde, e que a política do anúncio ou da promessa em nada contribui para a saúde dos portugueses. É nossa profunda convicção de que o sector não está a ter o desempenho que era desejável. Avaliamos muito negativamente o desperdício desta conjuntura política para se proceder à reabilitação e requalificação do SNS. Esta é a grande oportunidade para se dar mais saúde ao SNS, que deve ser aproveitada com urgência.
 
Por último, e compreendendo as dificuldades da última semana, vimos reiterar a disponibilidade para reunir logo que possível com o primeiro-ministro e Secretário-Geral do PS para discutirmos a mudança que a cada dia que passa se torna mais urgente realizar. Mantemos as expectativas que depositámos no tom cordial com que fomos recebidos e na maneira interessada com que nos escutou e dialogámos. Temos de admitir que criámos uma grande expectativa da reunião de 4 de Julho. É lícito, por isso, concluirmos que a realização do encontro se deve realizar o mais brevemente possível para, em conjunto, definirmos os caminhos para a saúde de que os portugueses necessitam e a que legitimamente aspiram. 
 
Aceite os nossos mais cordiais cumprimentos,
 
Lisboa, 17 de Julho de 2017