O seu a seu dono

Quem não tem cão caça com gato’. À sombra deste provérbio escrevi durante três anos estórias, pensamentos, recados, cartas com e sem destinatário explícito.

alguns leitores interpelaram-me, corrigiram-me e agradeceram-me o uso deste provérbio popular a enquadrar as palavras que me iam passado pela cabeça e que punha em comum em cada semana.

é o tempo de clarificar perante esses leitores e algum outro que inadvertidamente leia este escrito por que escolhi esta companhia.

nos tempos em que alguns de nós acreditávamos que tudo tinha mudado neste país, o meu curso de filosofia acabara mais ou menos em kant. voltei à faculdade para experimentar a liberdade que também passava por ali e conclui as três cadeiras que deixara para trás antes de ir trabalhar.

foi a festa e o desafio do pensamento novo, as janelas pareciam estar todas abertas para as ideias voarem, rodopiando, saindo de letras, entrando em direito e pelo caminho fazendo bater as portas da reitoria.

filosofia da linguagem, penso que era este o nome de uma das cadeiras que escolhi entre o manancial de ofertas que eram apresentadas. o professor era engenheiro, fora padre e do que ele gostava mesmo era de pensar com outros, interpelar o pensamento doutros e ajudar a criar ideias novas – chama-se fernando belo.

a proposta de trabalho consistia em estudar a filosofia subjacente aos ‘provérbios e lugares comuns portugueses’, coligidos e comentados por fernando ribeiro de mello.

a paixão que produziram em mim foi tão grande quanto o cair por terra de todas as certezas herdadas dos avós camponeses.

não, ao que parece os provérbios não têm origem popular, têm-na nas classes dominantes, nobres ou burguesas, conforme o tempo histórico do qual emergiram.

«voz do povo é voz de deus». não, não corresponde em nada parecido com sabedoria acumulada durante centenas ou milhares de anos, com as arestas buriladas pelo tempo como as dos calhaus rolados nas praias da nossa infância, muito menos com a voz de qualquer ser superior reconhecido por qualquer comunidade humana organizada algures no mundo.

os provérbios populares portugueses são contraditórios, conservadores, reaccionários na sua generalidade, em temas tão diferentes como as mulheres, o matrimónio, o poder ou a família.

«filha má, dota-a e casa-a».

«mais vale filha mal casada, do que bem amancebada».

«mais vale salteador que sai á estrada, do que namorado que ajoelha».

«matrimónio é como praça sitiada, os de fora querem entrar, os de dentro querem sair».

«ao cabo de cem anos os reis são vilões, e ao cabo de cento e dez, os vilões são reis».

«albarda-se o burro à vontade do dono».

«antes ser martelo que bigorna».

«a quem tudo te pode tirar, dá-lhe o que te pedir».

«vinho que baste, casa que farte, pão que sobre e seja eu pobre».

«ao amigo que pede, não se diz amanhã».

cada um destes provérbios podia dar origem a muitos artigos filosóficos.

‘quem não tem cão caça com gato’, foi a minha tentativa de, lendo-os com outro olhar, lhes dar, no aqui e agora, o sentido livre que lhes atribuo.

o gato caça sozinho para exercitar o seu instinto de sobrevivência, ou mesmo para sobreviver.

não existem muitas notícias de que alguma vez um gato tenha caçado para o dono, à excepção de uma velha estória contada por um frade, de um gato que recheava a casa dos donos com o bacalhau demolhado de todas as vizinhas. estórias de frades.

mas nisto de provérbios não se pode fazer fé… «daquilo que bem lhe sabe, não reparte o frade».

sabemos que nem sempre é verdade.

catalinapestana@gmail.com