O actual problema da habitação em Lisboa e no Porto e as promessas dos candidatos

Nesta campanha para as autárquicas, tem sido evidente que, nas cidades mais importantes do país – Lisboa e Porto –, a questão mais debatida pelos candidatos é a  habitação.

Nos seguintes termos: quer se trate de arrendamento ou de compra, os preços das casas nestas duas cidades dispararam nos últimos anos e passaram a ser incomportáveis para a maioria das pessoas (há até quem fale de «preços estratosféricos»), em particular para os jovens adultos, que assim são forçados a procurar residência acessível em zonas muito afastadas dos centros. Daí que os candidatos às autarquias dêem agora tratos à imaginação, tentando descobrir uma ‘solução’ que pareça apelativa aos eleitores – seja ela exequível ou não.

Repare-se, por exemplo, na ‘notícia’ que a agência Lusa divulgou esta semana: «O Governo vai criar um novo Programa de Arrendamento Acessível com o objetivo de ‘promover uma oferta alargada de habitação para arrendamento a custos acessíveis’.» É claro que isto é mera propaganda, visando favorecer os candidatos do PS; mas como há sempre ingénuos que acreditam nestas coisas, a Lusa terá cumprido a sua verdadeira função utilitária, que é dar uma ajudinha ao partido no poder.  

Nos últimos tempos, muita gente tem associado a falta de casas acessíveis ao facto de o turismo de estrangeiros ter crescido muitíssimo, para níveis nunca vistos, havendo mesmo quem acuse este boom turístico de representar, não um enorme trunfo para o país (em termos económicos e não só), mas sim um mal para a maioria dos portugueses.

O que ninguém diz é que os actuais preços das casas nestas duas cidades, e a preferência cada vez maior dos senhorios pelos alugueres de curta duração (que agora são chamados ‘alojamentos locais’), são uma consequência lógica das sucessivas legislações para o sector feitas desde 1974, todas elas erradíssimas.

Sim, importa não esquecer que, entre 1974 e 2011, os partidos políticos tudo fizeram para que no nosso país deixasse de poder funcionar com normalidade (e com benefícios para milhões de cidadãos, de todas as classes sociais) um verdadeiro mercado de arrendamento; e, além disso, desde meados da década de 80, tudo foi feito para convencer os portugueses (fosse qual fosse a sua idade e situação, profissional e económica) da conveniência em serem donos, e não inquilinos, das casas que habitassem. O regime não hesitou em legislar no sentido de asfixiar economicamente os antigos senhorios (numa época de inflações muito altas), e de fazer com que o crédito hipotecário para compra de habitação própria (e não o crédito a empresas produtivas) se tornasse o negócio prioritário da banca.

Alegadamente, tudo isto foi feito a fim de ‘proteger os mais desfavorecidos’; na verdade, o que essas leis visavam era (até prova em contrário) manter por tempo indefinido os privilégios de que já gozavam muitos dos próprios legisladores enquanto inquilinos, sem acautelar os efeitos perversos que das mesmas pudessem resultar para ‘os mais desfavorecidos’.

E o facto é que, em larga medida, os políticos conseguiram o que pretendiam: Portugal passou a ter uma percentagem de ‘proprietários’ imobiliários muito mais alta do que a que existe nos países ricos (Alemanha, Holanda, etc.), e uma situação bancária globalmente ‘invejável’, como antes nunca houvera…

A situação que existiu para o sector entre 1974 e 2011/12, e mais especificamente desde a nossa adesão à CEE até 2012, pode ser caracterizada, em resumo, do seguinte modo: todos os sectores de actividade puderam funcionar de acordo com as leis e regras de uma economia de mercado – todos, excepto o arrendamento urbano. Todos os agentes económicos puderam beneficiar das vantagens sabidamente decorrentes de estarem a actuar num sistema de sã e livre concorrência – todos, à excepção dos antigos senhorios.

Em 2011, a iminência de bancarrota e a recusa dos bancos em continuar a conceder empréstimos a um Estado endividadíssimo e já incapaz de honrar as suas dívidas forçaram Sócrates a solicitar ajuda financeira aos nossos credores externos – os quais, entre outras coisas, impuseram como condição algo de inédito entre nós: uma reforma séria da lei do arrendamento e o fim das rendas congeladas. Sem essa imposição externa, a ruína progressiva de milhares de edifícios em Lisboa e no Porto teria prosseguido, sem que ninguém mostrasse o menor interesse na sua reabilitação; e só um pequeno número de estrangeiros viriam visitar-nos, tal como acontecera até aí, curiosos que estavam por ainda haver, na Europa e no séc. XXI, um país tão ‘pitoresco’, que deixava arruinarem-se, e ficarem desabitados, os centros históricos das suas principais cidades, sem que as autoridades se esforçassem por resolver a situação – muito pelo contrário.

Também importa lembrar que os políticos do Partido Socialista, e muito em particular António Costa como ministro de Sócrates, foram, ao longo dos anos, os governantes mais apostados em dar cabo do mercado de arrendamento, tendo mesmo havido um, João Cravinho, a afirmar na TV que apenas o passar do tempo (isto é, só a morte de todos os envolvidos na situação, senhorios e inquilinos) tornaria possível acabar-se com as gravíssimas distorções, injustiças e outros efeitos perversos resultantes de tantos anos de rendas congeladas – mas o PS, por si, nada faria para alterar a legislação então em vigor.

Por conseguinte, ninguém deveria surpreender-se, muito menos escandalizar-se, pelo facto de os agentes económicos em causa, que o regime prejudicou e empobreceu durante tanto tempo e de forma tão ilegítima, estarem agora, após todos estes anos, procurando finalmente tirar algum benefício de a intervenção da troika lhes ter permitido, pela primeira vez na vida, funcionar de acordo com as regras de uma economia de mercado, e tentando ressarcir-se em parte das enormes perdas que anteriormente sofreram, impostas arbitrariamente pelo poder político (e que, aliás, constituem um caso de discriminação e exclusão social sem paralelo na nossa história). Também não devia espantar ninguém que esses cidadãos tenham deixado de acreditar e confiar num Estado, dito de Direito, que relativamente a eles foi incomparavelmente mais ‘fascista’ do que o próprio Salazar.

Estas são as verdadeiras razões que estão na base da situação hoje existente, em Lisboa e Porto, no que se refere ao uso que é dado aos edifícios de particulares, aos preços vigentes no mercado, e aos consequentes ‘problemas da habitação’. E só quem seja ingénuo ao ponto de acreditar nas falácias dos nossos políticos (sobretudo quando prometem ‘mundos e fundos’, como agora) pode ainda permitir-se supor que quem foi responsável pela existência desta situação esteja habilitado e apto a solucionar, de modo democrático e decente, os problemas e as dificuldades que hoje em dia se constatam no sector.

Isto, para já não falar dos numerosos edifícios pertencentes à Câmara de Lisboa, que se encontram em vários estados de conservação e desabitados há anos, sem que a ‘opinião pública’ dê sinais de considerar tal situação questionável, menos ainda intolerável. 

António Silva Carvalho