João Gil: ‘Já senti muito medo, mas nunca me sentirei velho’

Diz de si próprio que é um homem com pressa. Pressa até a falar, o que faz com que use mais pontos do que vírgulas no seu discurso liso.

Diz de si próprio que é um homem com pressa. Pressa até a falar, o que faz com que use mais pontos do que vírgulas no seu discurso liso.

É um mundo de ideias. E um entusiasmo contagiante quando se lança na procura de novos projetos, quando conta a vida que há de vir.

O homem fala com pontos de exclamação. Embora assuma que tem dificuldade em terminar as respostas porque fica sempre com a sensação de que há mais qualquer coisa para contar.

Contar: é o verbo correto. João Gil conta e não descreve. Nem se prende a refrões.

«40 anos de Canções»? Sentes-te velho?

Não!

Nem um bocadinho?

Mesmo quando estiver muito velho, tenho a certeza de que não me vou sentir velho.

Essa agora…

Trabalho com matéria que não tem idade. Uma substância que não tem idade – a música não tem idade! É como a literatura. Está permanentemente a ser revitalizada. Basta que alguém oiça para ganhar vida. De cada vez que tiras um livro da prateleira, ele ganha vida. Com a música é precisamente igual. As artes são assim.

Bem, mas já lá vão 40 anos sobre o teu primeiro projeto – Soviete do Areeiro. À distância, como o vês? Uma brincadeira?

Brincadeira! Total! As coisas só começaram a ser sérias quando aparecem os Trovante. Isso sim, tomou conta das nossas vidas. Repara que toda aquela época do pré e pós 25 de Abril nos apanha com 16, 17 anos. Uma idade de grande disponibilidade para tudo. Ao contrário do que acontece hoje, era um tempo de imprevisibilidade. A revolução lançou-nos numa rotura total de um dia para o outro. Nós vivíamos no espectro da guerra. De embarcar para a Guiné de um dia para o outro.

Sentiste isso profundamente?

Nós tínhamos medo! Medo! Sabes o que é medo?! Para quê esconder a palavra? A guerra na Guiné era a sério, levámos muita cacetada na Guiné. Do meu ano havia muita gente a ir para lá. O 25 de Abril acordou-nos. Para tudo!

A revolução também interior?

Olha, como falávamos há bocado, antes da entrevista, se nós hoje abebezamos muito os nossos filhos, se lhes atrasamos o crescimento, se lhes facilitamos a vida, se aumentamos a sua dependência, naquela época não havia alternativas. Veio a liberdade e a nossa geração explodiu.

Ia falar disto mais à frente, mas entra já – vivemos um momento curioso na música portuguesa: vocês estão a comemorar os vossos 40 anos de carreira ao mesmo tempo que a geração do Paulo de Carvalho, do Carlos Mendes, do Fernando Tordo, comemora os 50. É, no mínimo, uma fase com muita vida revivida.

Acho que sim! Cada um com os seus impulsos.

Mas cantando muitas vezes músicas uns dos outros.

Estamos a fazer uma espécie de ponto da situação. Uns mais velhos, com outra rodagem, com outra sinalética, e nós com outro tipo de linguagem. Eu sou um produto do 25 de Abril e da grande mudança que houve em Portugal. O meu percurso corresponde ao percurso dos anos que se passaram a partir do 25 de Abril e a minha linguagem musical reflete isso.

Corrige-me se estiver errado, mas vejo-te sempre mais como um músico de conjunto, chamemos-lhe assim, do que um músico a solo.

Sou um gajo de equipa. Gosto de construir jogo. Faço parte de uma equipa e, como em todas, cada um tem o seu papel. Isto mais debruçado sobre os Trovante – todos têm o seu lugar na equipa e todos sabem o que fazer. Uns têm jeito para produzir, outros para cantar, outros para escrever… Distribuímos tarefas. Gosto de trabalhar assim. E mesmo quando componho coisas mais sozinho, vamos lá, prefiro trabalhar com equipas. É em conjunto que descobrimos que o nosso trabalho vai mais longe. Se eu não tivesse estado rodeado de grandes vozes, o meu trabalho não teria tido o valor que teve. Por isso tiro o chapéu ao Luís Represas, ao Nuno Guerreiro, ao Rui Veloso, ao Jorge Palma, ao Tim, a todos os que trabalharam comigo em grandes equipas. Claro que compor é sempre uma tarefa mais solitária…

E tu és, essencialmente, um compositor?

Sou um compositor. E o disco que acabo de fazer é um disco de afirmação. Passei por muitas fases, mas o que resta são as canções. Têm uma alma antes de serem cantadas. Há uma folha em branco que eu preencho e assino no fim.

Mesmo correndo o risco de essas canções ficarem mais ligadas a quem as canta do que a ti, que as compuseste?

Não me interessa! Isso faz parte! É tudo pacífico.

Não mexe contigo?

Não. Não tenho essa paranoia. Seria uma insegurança. Ficarei como o tipo que compôs muitas das canções que fazem parte da história recente da música. Que ficaram na memória das pessoas. Mas sempre com as vozes, a par das vozes.

E tu fizeste muito por muitas vozes com as tuas composições…

Ainda bem! Haja saúde e cá estarei para mais.

Isso é tudo desprendimento?

Escuta, eu não sou desprendido do meu trabalho! Sou muito rigoroso! Reconheço todas as minhas canções, sei onde elas estão, tenho-as na memória. Pode acontecer, de repente, pensar – é pá!, fui eu que fiz isto! Mas é um momento. Eu não perco o rasto aos meus filhos. Sei das suas referências, a época em que foram compostas, sei do seu envolvimento, da sua história. Consigo localizar tudo, tudo, tudo… A minha memória dos sons é profunda e é perfeita. E até sou perigoso nisso porque facilmente apanho as vozes, os tons das vozes, mimetizo tudo… O Rui Veloso também é assim.

Uma espécie de esponjas…

O Rui ainda é pior do que eu. Estou sempre a apanhar pormenores da fonética das pessoas, sons ao longe. Entro na sonoridade dos locais. E tudo isso me encanta! É o ruído do mundo! É o que me faz escrever canções. Junto coisas daqui e dali, da vida, afinal. E depois prossigo na minha própria criação… Desculpa porque eu tenho sempre dificuldade em terminar as respostas. Vai sempre surgindo mais alguma coisa…

Por isso é que conversamos, em vez de andarmos aqui com perguntas e respostas. Depois arrumo tudo.

Antes de vir ter contigo, estive a trabalhar numa coisa nova que tenho de compor para o filme da minha irmã, Margarida Gil. O filme chama-se Mar. Adoro esse tipo de trabalho! Não é só fazer músicas para irem aos palcos. Adoro o estímulo. Fazer uma música para um bailado, para cinema, para uma exposição de pintura. A música é muito grande. Não se fica por algo de específico que depois vai aparecer no Coliseu ou na Ovibeja.

Li outro dia, talvez numa entrevista, que sentias que o fim dos Trovante foi um erro.

Vou corrigir essa resposta que dei: foi e não foi. Por um lado foi porque, agora quando nos juntamos para tocar, é maravilhoso. Nesse aspeto foi um erro. Mas, se não tivéssemos terminado naquela fase, as sensações de hoje não seriam iguais. Portanto, se calhar não foi erro nenhum. Também seria um erro deixarmo-nos arrastar para algo que se tornasse claustrofóbico. 

Ou seja, quando se reúnem é uma descoberta.

É. É a descoberta de que aquilo é muito bom! Vejo os Trovante de uma forma simples – e acrescento que não fui o único compositor dos Trovante, o Luís também compôs, o Artur também compôs, fizemos coisas em conjunto – quando alguém nos convida, agora, para irmos tocar, vamos com um entusiasmo enorme. Estivemos agora na Amadora e foi lindo! E em Loures: foi lindo! Porquê? Porque aquilo foi sincero e continua a ser sincero! Não nos deixámos arrastar. Soubemos parar. Tocamos ainda hoje exatamente como no momento em que fizemos as músicas.

Uma reconstituição histórica?

Uma reconstituição histórica. Ao pormenor.

Natural?

Claro que é natural! Podíamos muito bem ter continuado, afinal, a maior parte do pessoal da música está sempre a tocar as mesmas. Aos meus olhos, por outro lado, se não tivesse saído não tinha feito tudo aquilo que fiz entretanto. Digo com humildade: ainda bem que saí, mas ao mesmo tempo tenho um prazer enorme em saber que faço parte daquela família. E, se há público, embora lá! E por que não fazer o que fazemos, reunindo os Trovante de vez em quando? 

Falas da aceitação da gente mais nova?

Nem estás bem a ver! Pois é! A música não tem idade. Trovante era bom e será sempre bom. É uma reconstituição histórica, se quiseres, e é o estado puro. Quando tocámos agora na Amadora foi exatamente como se estivéssemos na Festa do Avante! em mil novecentos e oitenta e tal. Ou no Coliseu em oitenta e seis. Estamos mais velhos, claro, mas acredita tu e acreditem os nossos leitores, se os Trovante tocarem mais vezes, os mais novos vão descobrir a extraordinária riqueza daquela música. Daquela fórmula de som. Mantém-se viva e será eterna. Porque tem qualidade e foi sincera.

É moderna.

É eterna. Será sempre moderna! Não me cabe a mim louvá-la como um clássico. Até me ficava mal. Mas aquilo é muito sincero, muito verdadeiro. Enquanto estivermos vivos e quisermos fazer Trovante, faremos sempre. E eu tenho tanto prazer em fazer uma versão da ‘125 Azul’ com a Luísa Sobral ou uma do ‘Perdidamente’ com a Carminho, neste olhar que quero dar sobre algumas das minhas composições em 2017, como voltar ao estado puro.

Queria voltar àquele ano em que chegas a Lisboa vindo da montanha, da Covilhã. Como era essa tua Lisboa?

A minha Lisboa já começava a ter cor, já não era só a preto e branco. Mas era uma cor assim um bocadinho farsola das televisões dos anos 70. Eu trazia comigo muitas cores da província. Foi um choque. Cheguei com 14 anos e nunca mais me esqueço da primeira vez que comecei a ver os prédios dos Olivais e da Portela. Vinha daquele bocado de autoestrada que começava em Vila Franca. Tenho essa imagem muito nítida. E agora estamos aqui, no Bairro Alto, a comer uma rica comida indiana, e estamos a ver os turistas a passar com os tróleis atrás, e sabemos que Lisboa tem outro ruído. Nesse tempo o ruído da cidade era menos cheio. E eu já compus muita música a ouvir o ruído de Lisboa. Quando vivia na Graça, nas Escolas Gerais, adorava abrir a janela e sentir o ruído do mundo, desta Lisboa diferente, nova…

Com mais ou menos loucos?

Eu dei-me conta dos loucos de Lisboa quando saí da Ajuda e nos mudámos para as Avenidas Novas. O Júlio de Matos, ali ao fundo da Avenida de Roma, surgiam os loucos pela cidade…

Pedindo cigarros nos semáforos…

Pedindo cigarros nos semáforos, a dizerem adeus aos carros, a pedirem beijinhos às meninas… 

Lisboa…

Lisboa é uma cidade apaixonante!!! E uma cidade de pessoas apaixonadas! Uma cidade de pessoas como eu. Foi isso que percebi muito cedo. Os de Lisboa eram muito poucos. Havia gente vinda da Beira Alta, da Beira Baixa, de Trás os Montes. Os do Alentejo ficavam mais na Margem Sul, às vezes para os lados da Amadora. E eu começava a tomar o pulso à cidade. Repara. Tenho 14 anos, acabado de chegar, e um dos meus tios, que tinha o brevet, foi-me mostrar Lisboa do céu, de avioneta. Vê o luxo! Eu vinha da montanha, levantava os olhos via Espanha, baixava os olhos via Portugal, e o meu tio leva-me lá acima – aquilo é o estuário do Tejo; LINDO!; aquilo são as areias da Caparica; LINDO!; estás a ver ali, o Bugio, Cascais, a Marginal; LINDO! -, Lisboa a meus pés, aquilo foi único. Depois vem o 25 de Abril. E a vida ganhou um sentido fantástico.

A montanha, a infância, está presente na tua composição.

Está!

Ainda hoje?

Sim, sim, sim! Infância e, leia-se, também os antepassados.

Tens músicas nas quais consegues definir: isto veio da minha infância?

Vem tudo da infância. Para mim. Não há volta a dar. Já disse várias vezes e repito: a infância é uma âncora da nossa vida. Lanças-te ao mar da tua vida e a âncora está lá, na tua infância. Se as coisas correm mal, já sabes, tens de mudar de mar, se tiveres essa capacidade. Podemos muitas vezes ficar agarrados a uma infância mal sucedida. Aí precisamos de saber largar a âncora e mudar de mar. O fundo do meu mar é feito do basalto e do granito da Serra da Estrela. É daí que venho. A minha família é muito forte. As minhas irmãs, a Cecília, a Teresa, a Margarida, o meu irmão e os meus pais que já cá não estão… Foram e são rochedos!

É daí que tem vem o gosto por essa reserva que costumas ter?

Para te ser sincero, nunca pensei muito nisso.

Mas não gostas de dar nas vistas.

Mesmo que tivesse uma larga exposição mediática – se estivesse a fazer televisão, por exemplo – e entrasse em casa das pessoas, iria defender a minha vida privada como se de um tesouro se tratasse. Sempre procurei proteger-me. Às vezes é inevitável, não é? Mas não ando a fugir de nada. Não me escondo da vida nem do mundo. Adoro os portugueses e acho que eles gostam de mim. Não tenho nada a esconder, agora não tenho de partilhar tudo… Era uma seca…

Ser reconhecido?

Não. Eu não acho uma seca ser reconhecido. Antes pelo contrário. Mas gosto de ser reconhecido como sou. Num diálogo afável e cordial. Aquela coisa do «É pá! Ei, ei, ei!!! Atão!? Olha! Olha!» não me apetece lá muito. Mas se tiver de ser também é. Cá estarei para lidar com isso. Nunca tive problemas com ninguém. 

Achas que tens algumas músicas que te representem mais a ti próprio, que reflitam mais quem tu és?

Dou por mim a fazer um esforço para te responder a isso. Todas as minhas músicas têm muito de mim. Todas são extensão de mim mesmo.

Mais íntimas?

Bem, há canções que nascem de momentos telúricos. E aí o processo é rápido. Quase que sirvo de médium, esotericamente falando, entre um além qualquer e a realidade. Como se o anjo da criação pousasse no meu ombro. Aí eu diria que ‘A Saudade’ nasceu assim. Diria que a canção ‘Timor’ nasceu assim. Ou um genérico que fiz para uma peça de teatro O Ano do Pensamento Mágico, representada pela Eunice Muñoz no Dona Maria – quando levantei os olhos depois de ter estado a pensar no drama que se desenrolava, porque era um drama, entrei em abstração, fixei o horizonte, estava em casa da Ana, na altura, em Oeiras, via-se o mar… quando voltei a mim a canção estava feita.

Qual é a sensação?

O que é que te hei de dizer? Entro em hipnose. O Rio Grande foi todo composto em hipnose. Na fase criativa, sou possuído pelo texto e pela ideia. Depois o corpo vai atrás…

O Lobo Antunes diz que lhe pegam na mão com que escreve.

Acho que ele tem razão. A história toma conta! Há um magma na tua cabeça que toma conta de nós. Com as canções é assim também.

Rio Grande: eis algo de verdadeiramente original.

Original em vários aspetos. Mas tenho de reconhecer que me limitei a tentar perceber qual era a música que estava por detrás daquelas palavras, daquele povo que nasceu entre o Guadiana e o Tejo. Que veio lá das margens do Guadiana e acantonou nas margens do Tejo, à procura de melhores condições de vida. Os alentejanos são únicos! Um povo admirável! Extraordinário! Passei a ser um filho do Alentejo. Quando me encontrei com as palavras do João Monge entrei em hipnose e comecei a escrever aquilo… A música é um ato iminentemente físico, explosivo… Depois, claro, é preciso aparafusar…

O aplainar, como diz o Manuel Alegre.

Exatamente. Uso a chave de parafusos, o fio de prumo, aplaino. Vou à procura das vozes, dos atores, outro trabalho depois da criação em si. O Rio Grande deu muito trabalho, mas foi fantástico! Límpido como a água clara de um rio que desce das montanhas. Tornou-se fácil. E depois ficou grande. Quando saiu de nós era apenas um riachozinho. 

Façamos um paralelo com os Cabeças no Ar: assim, à partida, até se poderia dizer que a estrutura foi similar…

Muito bem. Vou explicar as diferenças entre um projeto e o outro, no meu ponto de vista, coisa que até acho que nunca fiz publicamente. Os Cabeças no Ar foram muito associados ao Rio Grande por vontade da editora e por interesses lógicos. Mas é algo de completamente diferente. As letras do João Monge nascem lá do seu Alentejo, Vila Nova de São Bento, da sua vida em Almada, da convivência com a Lisnave, e isso tudo. Do outro lado temos o Carlos Tê, mais a norte, com um estilo de escrita fascinante, mas com a sua história de escola secundária. Criou uma aventura da qual todos fazemos parte. Todos nós vivemos aquela vida, aqueles momentos. Eu tive a sorte de ter trabalhado com duas das maiores referências da música portuguesa, o João Monge e o Carlos Tê. Por isso faço questão de falar neles. Até porque o Monge é uma peça fundamental na minha vida. O Tê tem uma escrita absolutamente extraordinária, mas trabalhei com ele numa situação mais específica. Fui de comboio ter com ele e disse-lhe: «Tens aqui um musical. Eu estou a ver o Jesus, estou a ver a Sara, estou a ver o Orlando. Estou a ver a Seita». Aquilo é lindo! Ainda hoje estou a ver o professor de português, todo desajeitado. É como o que tive no Passos Manuel. Então, decidi compor. Mas, e esta é a parte nova, num processo radicalmente diferente do Rio Grande.

Vamos a isso.

No Rio Grande andei meses há procura da música para acompanhar aquela vida daquele povo, procurando as suas origens, os seus sons, nos Cabeças no Ar resolvi compor como se fosse um ator, representando o texto e esperando que, ao representá-lo, surgisse a música. E como estava numa altura de fazer muitas viagens com a Ala dos Namorados, decidi ir compondo sempre nos transportes. Dei por mim num avião, vindo de Toronto, acho, a cantar «Quem me dera ir à escola…» aos gritos. Toda a gente a olhar para mim e eu, de repente, envergonhado, a pedir desculpa, a dar uma bandeira. Estava a representar e a compor ao mesmo tempo. 

Recordas-te do dia em que começaste a fazer música? Lá no fundo da tua memória.

Era muito pequenino. Dei-me conta que fazia música sem esforço. A música acontecia em mim. Dava-se em mim. Mas era mesmo muito pequeno.

Mas ainda sem saberes a matemática da música. A pauta.

Claro! Nessa altura da vida ninguém sabe.

Tiveste aulas?

Não. Não tive aulas. Se tivesse tido, poderia sentir mais capacidades. Eram outros tempos. Hoje, os meus pais, que estão lá em cima, teriam pegado em mim com cinco anos e tinham-me posto numa escola de música. Não tenho dúvidas.

Foste um músico sem escola.

És tu a dizer! Atenção leitores! É ele a dizer. Mas sim, não tive escola de música. Mais tarde, tive aulas, para melhorar a minha capacidade. Aulas com professores privados, passei pelo Hot Club, por pouco tempo, mas já era tarde demais. Já não dava para voltar a um grau académico.

És apressado até na música?

Aí sou mais calmo do que noutras vertentes da vida. Mas continuo a ser o mesmo puto de sempre, percebes? Faço tudo depressa naturalmente. Posso pensar nas coisas muito tempo, posso refletir sobre elas, mas na altura de as fazer sou rápido. E na música também. Agora, há muita vida lá atrás.

Por falar em pressa: consideras o fenómeno Salvador Sobral surpreendente?

O Salvador é um grande cantor. Tem uma voz linda. Não me surpreendeu nada ter tido o êxito que teve porque ele é muito bom. Depois, a canção também é muito boa.

Que não é popularucha.

Acho que a Luísa fez uma canção sem pensar em nada. Uma canção com honestidade. Uma canção para si. Não ligou ao caderno de encargos de um festival da Eurovisão. Não fez o habitual – o festival da canção exige: começar baixinho, ao décimo compasso começar aos gritos; a determinada altura, mudar de tom, se possível; e acima de tudo acabar aos gritos porque quanto mais gritos mais sucesso tem; se houver um cabelo e um vestido esvoaçante, melhor; se fores homem e tiveres um visual bizarro, é ótimo, as bizarrias tornam o boneco esquisito; criar factos exteriores à música. A Luísa, pura e simplesmente, pôs uma pedra sobre isso e fez uma canção como ela sabe fazer. Agora, parabéns à RTP que pôs a canção no sítio certo da escalada que lhe permitiu, depois, ser votada, se não dificilmente teria o voto popular. Porque o povo está condicionado pelos parâmetros daquilo que é um festival da Eurovisão.

Aceitarias participar num festival da canção?

Agora que já passou este tempo todo, posso dizer que fui convidado para participar no festival, agradeci, foi uma honra, mas declinei o convite.

Não está dentro do teu estilo?

Não. Não quis ir a votos. Não quero que a minha música vá a votos. Ela é para todos os portugueses que a querem ouvir. Faz-me uma certa confusão entrar em competições de música. Repara, quero dizer isto de forma construtiva. Não estou aqui com caganças. Atenção: estou a agradecer a honra do convite. E acho que os compositores que participaram fizeram bem, a Luísa fez bem. Foi uma vitória do caraças para Portugal! Vivi aquilo como português. Fiquei muito feliz…

Nessa noite, aqui no Bairro Alto, havia gente com radiozinho a pilhas como se estivesse a ouvir o relato de futebol.

É tão legítimo cantar vitória por termos ganho, como é legítimo declinar o convite. Tranquilo. Também escrevi uma música para a Lara Li cantar há muitos anos num festival. Não vou cuspir nesse prato. Ai de mim! Não estou aqui a esnobar. Não! Apenas não me identifico com as regras. Como acho que o festival da Eurovisão já não significa nada para ninguém. Foi uma vitória importante para Portugal, para os portugueses, porque é sempre importante qualquer vitória portuguesa em qualquer campo. Só não imagino o Jorge Palma e o Rui Veloso lá, como não me imagino a mim. Ou o Sérgio Godinho, ou o Fausto… Não levem a mal. Mas fiquei muito feliz pelo Salvador. Fiquei! A música portuguesa precisa dele. Agora estou cético quanto às consequências desta vitória no mercado, mas acontecem fenómenos: olha os ABBA. Tomara eu que o Salvador tivesse esse progresso. Batia-lhe palmas todos os dias. Não entro em invejas parvas…

Sentes que há menos rivalidade entre músicos.

Sinto que já não há essa inveja, invejinha. Vamos aprendendo como os brasileiros. Toda a gente canta Roberto Carlos. Para quê andar em grupinhos? Não temos é de ir para a cama com o Roberto Carlos ou vivermos na mesma casa todos juntos. Acho que isto faz parte de um país que está a crescer, a ficar mais cosmopolita, melhor, que não há razões para termos saudades do passado e, isso sim, ter orgulho no passado e saudades do futuro. O passado foi bom, mas o presente é melhor. Isto não é uma questão de idade – é uma questão de olhar à minha volta: cada dia tenho mais orgulho no meu país. Agora é só fazer como com as canções: pô-lo à maneira. E perdermos uma certa ideia de subserviência e rebelarmo-nos contra isso, como na aldeia dos gauleses.

Consegues dizer-me em que lugar te sentes na história da música portuguesa?

Há bocado estavas a dizer que eu era um tipo reservado – isso quer dizer que ando a olhar pouco para o meu espelho. Quero é olhar para a estrada. Por isso, neste meu novo disco, fiz questão de meter 15 músicas emblemáticas mas de ter também 12 ou 13 originais. 

Não estás preocupado.

Não estou. Nem estou em condições de responder a perguntas desse género. Estou aqui no Bairro Alto, um dia bonito, numa boa conversa, na Lisboa que eu adoro, a pensar no grande concerto que vamos fazer em breve, em princípio no Campo Pequeno, em Dezembro, não tenho feitio para ir por esse caminho. Seria uma resposta a preto e branco. Deixa lá isso!

Já deixei. Ficou respondido.