Palestra acaba em peditório

Isabel Mota, presidente da Gulbenkian, trouxe um cuidadoso discurso sobre o papel do Estado na sociedade, mas o debate transformou-se em sessão de pedidos à fundação que dirige. Houve bolo.

Não costuma ser assim. Os jantares/debate organizados pelo Clube da Imprensa, presidido por Dinis de Abreu, no segundo andar do Grémio Literário primam precisamente pelo nome: ótimos jantares, ótimos debates. Esta semana, sem demérito da convidada, do anfitrião ou da ementa, não foi  exatamente assim. Depois de palestras tão variadas quanto as de Nuno Crato ou Proença de Carvalho sobre temáticas europeias, o ciclo mudou e a questão também. O Estado e o seu papel na sociedade. E foi da sociedade que veio a oradora inaugural. Isabel Mota, a primeira mulher a presidir à Fundação Calouste Gulbenkian, falou sobre o Estado de hoje e sobre o que este poderá ser amanhã.

A ex-secretária de Estado de Aníbal Cavaco Silva, administradora da distinta instituição desde 1999, partilhou mesa com Abreu, Guilherme d’Oliveira Martins, que saudou a sua presença, com a também ex-ministra Isabel Alçada e com o embaixador Francisco Seixas da Costa.

Mota foi apresentada com a elevação a que os encontros acostumaram quem convidam e revelou-se até ‘surpreendida’ pelo denso elogio. Enumerou a questão e elaborou resposta. Falou na importância de decifrar «o papel do Estado nas sociedades modernas» na necessidade da «sua adaptação», na medida em que, para Mota, há hoje «uma deficiente alocação de recursos em áreas essenciais».

«Há responsabilidades que não podem ser de outros, mas que também não estão a ser respondidas por ele [o Estado]», aponta a jurista, que defende a necessidade de estabelecer concretamente um «perímetro» para que a entidade estatal guie seriamente a sua ação.

Para Isabel Mota, a dimensão do Estado social deve também ter em conta uma noção de «justiça intergeracional», acrescentando até um toque pessoal ao discurso. «É muito habitual nos almoços de domingo aquela conversa do ‘não vamos ter reforma’».

A enumeração passou, então, para os desafios do país: «Competitividade, investimento e segurança social» – aqui próxima das habituais prioridades de governação do ‘centrão’.

Mota passou depois o foco para as «crescentes desigualdades» e para o facto de «a crise financeira ter gerado uma quebra nos rendimento das famílias». «Há uma acumulação de riqueza no topo da distribuição», salientou, defendendo que «não é assim que se constrói um país coeso» e com «igualdade de oportunidades». Nesse sentido, a revolução digital, tecnológica e da inteligência artificial exigirá à sociedade civil que se mova por um bem-estar que «chegue a todos» e preserve a «dignidade da pessoa humana». Sobre como resolver o problema da acumulação de riqueza num mundo em que as fronteiras abertas ajudam a saída de capital, Isabel Mota propôs o combate à corrupção e uma política fiscal estruturada como respostas.

«O mundo está em transformação», observou a presidente daquela que é a maior instituição filantrópica em território nacional. Desde a sua fundação, nos anos 50, que Portugal se democratizou e se europeízou e a Gulbenkian procurou acompanhar o país também como «agente de mudança, de produção de conhecimento, de ensaio de soluções».

No setor público, Mota, que tem experiência governamental, sugere uma maior transparência e sustentabilidade, até a nível ambiental. No setor privado, «mais responsabilidade».

«Há uma perda de confiança nas elites, nas instituições democráticas, que leva a uma perda de esperança no futuro». Uma solução? A cultura «como base de uma sociedade aberta, inclusiva e tolerante». «Há inconformismo nos mais novos para forjar um novo contrato social», vê Isabel Mota.

Chegou, finalmente, o jantar. O menu foi constituído por uma posta de garoupa cozida – bem fresca, como prato principal -, havendo direito a tinto ou branco conforme preferência, e a uma entrada de queijo gratinado, prontamente rejeitada. O SOL é alérgico à lactose.

Na mesa redonda em que nos sentaram, os temas e as personalidades variaram. Um músico, uma historiadora de arte que estudou na Alemanha – «Mais à esquerda que um socialista; menos à esquerda que um comunista», seja lá o que isso for – e uma funcionária do Ministério da Saúde que mastigava de boca pouco fechada. Dessa ponta mais vistosa da mesa, conversou-se da «importância da tecnologia nas mamografias» ao hipismo, o que levou o SOL a inquirir-se se alguma vez uma égua se submetera a semelhante processo. «Eu também monto», disse uma vizinha do lado. Ora bem. No entretanto, o número de bolas de ouro entre Messi e Ronaldo normalizou o serão.

Chegaram as perguntas, que desta vez começaram mais como novos discursos do que como verdadeiras dúvidas sobre o antes dito. Uma senhora contou à sala que já tentara obter uma bolsa de doutoramento na Gulbenkian mas falhara na intenção, apesar «de Marcelo Rebelo de Sousa» se encontrar no local. O SOL reparou que, de facto, se encontrava demasiada gente no Grémio Literário para Marcelo não ter ainda surgido. Da negada ao doutoramento passámos para uma candidata a colaboradora. Outra pergunta, outra reivindicação orçamental à Gulbenkian. Era preciso um estudo-piloto e o inquiridor queria fazer parte da equipa.  Um autêntico peditório de fato e gravata. Isabel Mota sorriu diplomaticamente para o auto-convite. Os chavões estavam todos lá: trabalhar «em rede» e «no terreno».

No fim, o relógio bateu as badaladas e as pessoas bateram palmas. Um velho conhecido do SOL despediu-se num abraço e riu. «Foi nas noites do Grémio que nasceram os ‘vencidos da vida’ – do Eça – e não é por acaso que um deles se matou». A sobremesa foi bolo de chocolate.​