Salta à vista que estão em mudanças. No n.o 34 da Avenida da República há caixotes e ainda muito por embalar no dia em que tocamos à porta para falar com o novo presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, eleito na véspera. Luís Graça, professor na Faculdade de Medicina de Lisboa e investigador no Instituto de Medicina Molecular (IMM), assume com orgulho o desafio. Aos 45 anos, é o mais novo de sempre no lugar e há muito trabalho pela frente, de revitalizar a sociedade médica mais antiga da Europa – que em dezembro completa 195 anos – a resolver o tal problema de terem de mudar de casa. Desde os anos 70, ocupavam um andar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a título gratuito, mas não foi possível chegar a acordo para continuar a haver a cedência de espaço e os 3 mil euros pedidos de renda, o custo do mercado na zona, era incomportável para a associação, que não recebe donativos da indústria farmacêutica para a gestão corrente e não tem conseguido renovar a base de sócios e chegar aos médicos mais novos. Luís Graça admite que parte do problema resulta de, nas últimas décadas, não terem conseguido encontrar um lugar na vida pública. É isso que espera ajudar a fazer. Por enquanto, mudaram-se no fim de outubro para uma sala no Hospital Curry Cabral, e o espólio – incluindo uma das bibliotecas mais completas na área da medicina – está encaixotado à espera de uma morada mais definitiva.
Como é estar numa cadeira que foi ocupada por Ricardo Jorge, Egas Moniz, Miguel Bombarda e, mais recentemente, João Lobo Antunes, vultos da medicina no país?
É uma grande responsabilidade poder fazer algo para manter uma sociedade tão antiga e com o prestígio que teve ao longo de quase dois séculos. Nunca imaginei, e sinto que o desafio será fazer com que consiga ter um papel que se aproxime desse passado.
Surgiram em 1822. São uma sociedade das ciências médicas porque deve abranger todos os médicos ou para promover a componente de investigação na medicina?
Inicialmente, julgo que tinha a ver com a afirmação de que a medicina tinha de ser baseada no rigor científico, em alternativa a outras práticas mais tradicionais. A promoção da investigação nas áreas médicas foi sempre importante na história da sociedade e é algo que pretendemos reforçar.
Antigamente era mais fácil um médico fazer investigação? Havia menos preocupação em pedir permissão ao doente, com o consentimento informado…
A natureza da investigação era diferente. Sim, havia esse lado negativo mas, no fundo, a investigação era um esforço quase individual e hoje é impossível fazer ciência que seja relevante e com impacto de forma individual. Os artigos científicos que no início dos anos 20 tinham um ou dois nomes como autores agora têm equipas de dez pessoas. É preciso combinar muitas técnicas diferentes, da ressonância magnética à anatomia patológica ou à estatística.
O que torna também a investigação médica mais cara.
Sem dúvida. Se quisermos ligar uma doença e as suas causas aos genes é preciso sequenciar o ADN. E isto em todas as áreas. Trabalho em imunologia e para fazer investigação é preciso identificar as proteínas das células. São técnicas muito dispendiosas.
Consegue ver doentes ou, a certa altura, a investigação tem de ser uma opção?
No meu caso foi uma escolha dedicar- -me exclusivamente à investigação. Mas há quem consiga combinar as duas coisas. Tenho agora um estudante de doutoramento que está a fazer um projeto clínico e que combina ver doentes com atividades de laboratório. É possível.
Para alguém que quis ser médico, optar só por investigação é uma escolha fácil?
Não foi nada fácil, mas muitas destas escolhas acabam por não o ser – somos levados numa determinada direção. Quando estava a fazer o doutoramento tinha muita saudade daquele sentimento de feedback quase imediato que temos quando vemos doentes, a recompensa das nossas ações. Quando estamos num serviço de urgência vemos o resultado quase imediato do que fazemos, para o bem e para o mal. Na investigação é muito diferente: só conseguimos ver ao fim de algum tempo.
Agora vai passar a dividir a investigação com a presidência da sociedade. Quais são os objetivos do mandato?
São três anos e o grande objetivo será aproximar a sociedade sobretudo dos jovens médicos que estão a começar a sua vida profissional, e muitos com interesse na área da investigação. Aquilo que vamos procurar fazer é dar-lhes informação e conhecimento transversal sobre diferentes áreas da medicina, para que quem está interessado em fazer investigação em cardiologia, por exemplo, contacte com o que está a ser feito em diabetes e noutras áreas.
Uma excessiva compartimentação tem atrasado respostas para os doentes?
Não sei se tem atrasado, o que acho é que, eliminando essas barreiras, o progresso poderá ser muito mais rápido. E vejo isso a acontecer não só entre áreas da medicina. Dou-lhe um exemplo: trabalho com o sistema imunitário, mas beneficiei muito do contacto com físicos que criaram modelos em computador que ajudam a perceber como as interações entre as células do sistema imunitário podem ou não funcionar, o que nos permite programar as experiências que fazemos em laboratório de um modo mais eficaz.
É um tempo de aumentar a colaboração, mas também se ouve dizer que a competição na ciência é cada vez maior, com a pressão para publicar artigos científicos, obter financiamento…
Dizem que uma percentagem muito significativa dos cientistas que alguma vez viveram – 80%, por aí – estão a trabalhar neste momento. Isto significa que há muito mais gente a fazer ciência agora do que há 20, 50 ou 100 anos. De certa forma, isso vem pôr em causa a estrutura de investigação que tivemos até aqui, piramidal, com o líder do grupo, investigadores de pós-doutoramento, investigadores de doutoramento e por aí fora. Discute-se se será viável isto manter-se assim para todos terem oportunidades e creio que, provavelmente, terá de haver uma reflexão sobre para onde devemos ir. No que diz respeito às publicações científicas, de facto há uma competição feroz e ninguém está contente. Ninguém exceto as empresas que são detentoras dessas revistas, porque é uma indústria extremamente lucrativa.
Os investigadores pagam para publicar os artigos científicos?
Sim, pagamos para publicar, pagamos para ler, pagamos para tudo.
Se pagam para publicar, como se garante a isenção?
Existe o processo de revisão por pares que é independente do pagamento pela publicação do artigo, há essa garantia. Mas um dos problemas que temos é que uma fração significativa da investigação é feita com fundos públicos ou com fundos de donativos, de pessoas que doaram para a investigação do cancro, por exemplo. E no meio disto é um bocadinho estranho utilizarem-se fundos públicos para publicar resultados e depois esses resultados não estarem disponíveis para a comunidade, porque para ler o artigo é preciso subscrever a revista. A maior parte das agências de financiamento já está a obrigar a que quem publica – os grupos de investigação – tenha de manter o artigo disponível sem barreiras. Muitas das revistas dizem, “tudo bem, se quiserem podem fazer uma publicação open access”. E aí, se a taxa normal era mil ou 1500 euros, em open access é 3 mil euros.
A SCML vai mudar de casa. É uma saída forçada?
Estávamos neste edifício desde 1970. Não conseguimos comportar o custo de mercado de uma renda na Avenida da República e vamos ter de sair. O espaço foi- -nos cedido pela Santa Casa nas últimas décadas e a história até é engraçada. Em 1970 ocupámos o andar e, nessa altura, a Fundação Calouste Gulbenkian tinha disponível um valor para pagar à Santa Casa e ficarmos com esta sede. O problema foi que o edifício estava em propriedade total e não horizontal, e por isso não era possível destacar um andar. Quando a sociedade se mudou para cá foi nessa expetativa, mas isso nunca chegou a acontecer. Neste momento, a Santa Casa quer viabilizar os rendimentos do edifício e teríamos de pagar 3 mil euros por mês, o que para nós não dá.
As quotas não chegam?
Temos poucos associados e os médicos mais velhos estão isentos, que é o que achamos justo.
Acha que este desfecho resulta também de a sociedade não ter conseguido encontrar, nos últimos anos, o seu caminho?
Creio que sim. Acho que o que condicionou não termos mais médicos jovens tem a ver com isso e com o facto de as iniciativas não se terem alinhado com as mudanças da sociedade atual.
Uma das vossas apostas tem sido a promoção de prémios que, no fundo, são bolsas para investigação.
Sim, temos os prémios Pfizer, que vão na 61.a edição, e os prémios com a Merck Sharp & Dohme na sétima edição, e cujas inscrições terminaram em outubro. Acreditamos que é a melhor forma de atribuir prémios que são apoiados pela indústria sem haver conflito de interesses. A indústria dá o valor monetário do prémio, mas toda a seleção das candidaturas e dos avaliadores corre de forma independente.
Ainda se retratam por vezes os médicos como uma classe elitista, corporativa, com muitas quintas. Tem essa perceção?
Dentro da medicina, nos últimos anos, houve uma progressiva especialização para várias áreas e isso também explica a evolução da sociedade: quando surgiu, havia medicina no geral, não havia as outras especialidades. Tudo interessava a todos. A partir de determinado momento foi necessário haver especialização de conhecimento, técnicas e práticas. Dentro desta sociedade começaram secções, no fundo, grupos de interesses das diferentes áreas. Muitas das secções autonomizaram-se e foram criar outras sociedades, o que foi puxando muitos dos nossos associados.
Mas, no geral, como retrata hoje a classe médica?
Sendo uma organização compartimentalizada, acho que existe uma rivalidade saudável entre instituições médicas – os médicos que trabalham no hospital x vestem a camisola desse local. Mas é uma coisa saudável.
E o lóbi médico é muito forte?
Acho que perdeu muita importância. Em 1900 e poucos, esta sociedade chegou a ser proibida porque os médicos conspiravam contra o Estado. Os médicos eram muito influentes politicamente e creio que essa influência na política e nas coisas do Estado tem vindo a perder-se muito.
Porque o médico deixou de ser visto como um ser todo-poderoso que sabia mais do que a generalidade?
A relação entre o médico e o conhecimento era muito respeitada. Houve muitos erros da comunidade médica, por exemplo, a promiscuidade com a indústria farmacêutica, congressos que não eram bem congressos, que trouxeram uma certa descredibilização. O que me parece um problema neste momento é que a associação do conhecimento médico aos médicos está algo abalada.
Por exemplo?
Esta sensação de que, se repetir muitas vezes que determinada coisa é a causa de outra, então é porque é verdade. Isto é um perigo e já se viu que na saúde traz problemas graves, como é o caso dos receios em torno das vacinas.
Preocupa-o a desinformação?
Pois. Há essa boa prática no jornalismo de, quando se trata um assunto complexo, dar o mesmo peso ao contraditório que à tese contradita, mas a discussão, nalguns casos, devia ser mais sobre fundamentos do que sobre opiniões. Na discussão científica, não interessa quantas pessoas falam e acham que as alterações climáticas são isto ou aquilo, mas a qualidade dos dados que fundamentam determinada tese.
Mas isso também não terá decorrido de os médicos e investigadores, durante algum tempo, não falarem tanto para o público mas entre si?
Isso é muito verdade e nos últimos anos tem havido um esforço grande para resolver o problema. Falar-se do esternocleidomastoideu é um bom exemplo: até a linguagem era uma barreira ao entendimento e não era importante que o doente percebesse o que se estava a passar. Se há uma posição que não se consegue perceber e há, do outro lado, uma opinião sedutora, a nossa tendência natural é mais concordar com aquilo que se percebe e que é sedutor do que com aquilo que não é explicado convenientemente. Daí ser cada vez mais importante haver boa comunicação dos factos e reforçar a medicina baseada na ciência.
Onde é a nova casa da sociedade?
Por agora vamos para o Hospital Curry Cabral, para manter a atividade. O que nos entristece neste momento é que grande parte do espólio e da nossa biblioteca, que é muito usada por investigadores na área da saúde, ainda não tem um lugar definitivo para ir. Temos livros antigos, o espólio de Reynaldo dos Santos, que nos foi doado. É mais um objetivo para o mandato.