Guilherme Duarte. “Cá em Portugal tens muitos humoristas que o que querem é ser pop stars”

Nascido e criado na Buraca, Guilherme Duarte tinha já o kit completo de sobrevivência quando chegou à guerrilha nas redes sociais. Aos 33 anos, como Cristo, está maduro para ser colado com pregos à árvore em cruz por dizer piadas dessas que nos cheiram a ver se temos sentido de humor. O autor do blogue…

Falemos do humor português. Pode-se? Ou já é também um assunto muito sensível, um faroeste maricas? Entrámos já definitivamente no reino das princesas que passam mal a noite por causa de uma ervilha debaixo do colchão e de manhã enchem o saco a meio mundo nas redes sociais? O que parece certo é que temos já a nossa conta no que toca a humoristas que se deixam confundir com os padrecas das aulas de moral. Comediantes sem colesterol que também dão aulas de canto coral na escolinha do Bom Senso. Guilherme Duarte só cabe nesta sala se o metermos numa das filas de trás, a fazer chacota de todo este policial moralista. Ao contrário do que acontece nos clássicos, neste ninguém morre, mas todos se dizem vítimas.

Nascido e criado na Buraca, Guilherme Duarte tinha já o kit completo de sobrevivência para a guerrilha das redes sociais, e ao contrário de tantos outros comediantes, não se queixa dos insultos nem das ofensas. Em vez da outra face, assegura-se de que dá ele a última chapada. Para tempos de neo-moralismo, vamos tendo uns neo-rebeldes, com os melhores traços do comediante marginal, já com canhão integrado e outras partes de cyborg. Este apareceu no mundo digital, cresceu sem pedir licença a ninguém, e tornou-se perigoso a escrever num blogue – “Por Falar Noutra Coisa” – muito depois dos blogues se terem tornado meros resquícios de um passado em que a internet prometia fazer evoluir o debate público. Além de um dos bloggers mais lidos em Portugal, tem com o escritor Hugo Gonçalves um dos únicos podcasts imperdíveis entre nós, com uma mistura ideal de javardice e análise inteligente dos temas que vão dando sopa à nossa hiper-excitada sociedade da indignação. Chama-se “Sem Barbas na Língua”. Acaba também de publicar o seu segundo livro, “Chapadas à padrasto”, recolhendo uma selecção de textos do blogue, e está a meio de uma digressão de stand-up, com o público a esgotar várias das principais salas de espectáculos deste país, de norte a sul, ilhas também.

Quando começou a ouvir-se falar mais de stand-up em Portugal, com programas como o “Levanta-te e ri”, que idade tinhas?

Nem sei em que altura é que isso foi… 2002, 2001? Devia ter uns 18 anos, talvez 20.

Que idade tens agora?

33.

Mas tornas-te conhecido sobretudo como blogger. Como é que isso arrancou?

Eu gostava de ver o “Levanta-te e ri”, mas, sinceramente, nunca me imaginei a fazer comédia nem, muito menos, stand-up. Ainda hoje sofro imenso antes de entrar em palco. Criei o blogue num dia em que me apanhei em casa e tive a ideia de fazer uma página no Facebook e um blogue, só porque sim. Pensei que seria coisa para lá escrever duas ou três vezes, e que acabaria por largar aquilo. Mas foi ficando, fui ficando, começando a escrever, depois fiz um curso de stand-up só pela vertente escrita. Queria aprender a escrever para stand-up… Aquilo tinha uma atuação no fim e eu avisei logo que não a ia fazer. Mas acabaram por me convencer e fiz.

Eram comediantes que respeitas?

Não os conhecia bem. Mas acabei por fazer o stand-up e, depois disso, acabei por fazê-lo regularmente… vá, de 15 em 15 dias atuava nalgum barzito. Mas sempre numa perspectiva de hobby. Não se ganhava dinheiro, não era por aí. A malta era porreira. Atuávamos, depois íamos beber uns copos, ficávamos na conversa. Era por aí.

Mas antes já davas por ti no centro das atenções, tipo palhaço da turma?

Não, era o oposto. Era o gajo que nem ao quadro queria ir. Corava, tremia… Nunca gostei muito de ser o centro das atenções. No meu grupo de amigos mais chegado, aqueles quatro ou cinco que me acompanham há muitos anos, aí sim, sou capaz de ser. Mas quando estava fora do meu elemento, não, era sempre o tímido, o caladinho que ficava no canto, mais a observar.

Desde quando estás no Facebook?

Criei o blogue e a página no Facebook ao mesmo tempo, vai fazer quatro anos.

E estás hoje com 300 mil seguidores?

297 mil, acho eu.

Houve alguma circunstância que despoletou isto?

Fazem-me muitas vezes essa pergunta e nunca consegui dar uma resposta satisfatória. Houve um texto inicial, logo o terceiro ou quarto, que era sobre os professores e que teve muito mais visualizações do que o que estava habituado. Nos primeiros tempos tinha 100, 200, e esse teve duas mil. E foi crescendo gradualmente, não houve nada de exponencial. Onde notei diferença foi com um Facebook falso do Sócrates, que teve 200 e tal mil visualizações, quando eu tinha umas 10 mil pessoas a seguir a página. Depois foi acontecendo regularmente. Uma vez por mês tinha um post que batia nos 200 ou 300 mil. E isso ajudou a trazer mais pessoas. Mas foi tudo gradual, e não houve um momento Eureka!, em que percebi que estava ali qualquer coisa que podia vir a ser o meu trabalho no futuro. Simplesmente, fui começando a pensar que aquilo também podia ser uma fonte de rendimento. Mas era o meu hobby. Chegava a casa e fazia-o por gosto, como continuo a fazer.

Ainda és engenheiro informático?

Não, despedi-me em Fevereiro e agora estou nisto a tempo inteiro.

De onde que vem o dinheiro?

Das crónicas semanais que escrevo para o Sapo24, da publicidade no blogue, o que é sempre incerto… Tanto posso ter um mês razoável como outro em que só me fica dinheiro para pagar um jantar fora. Depois vem dos livros, e agora tenho patrocínio também da Vibrolândia, para o Doutor G [personagem fardado de médico e que dá conselhos sobre sexualidade].

Vibrolândia?

Sim, uma sex shop que patrocina o Doutor G. 

E o comediante já ganha mais do que o engenheiro?

Num mês bom, sim.

E nos meses piores?

Fui poupando. No último ano, poupei algum a pensar que um dia poderia despedir-me. Isso dá-me esse fundo de maneio para um mês pior, se o carro avariar ou tiver alguma despesa extra. Mas até agora tem compensado, até porque estou mais disponível. Antigamente, se tivesse um evento de stand-up em Coimbra, às seis da tarde… não dava, estava a trabalhar. Agora já posso aceitar esses pedidos e, assim, acaba por compensar.

Uma coisa que é muito normal com os músicos ou os escritores é obrigarem-se a uma disciplina diária quando vivem disso, forçando-se a tocar ou escrever não sei quantas horas por dia. No teu caso, qual é o tipo de pressão a que estás sujeito?

Quando me despedi tive muito medo disso: agora vou ficar refém das visualizações e dos likes… E isso vai levar a que eu escreva sobre temas que sei que vão bater mas nos quais não me apetece meter-me. Acontece, mas tento não ceder muito a isso. Tenho uma pressão que vem do gosto de tentar escrever todos os dias qualquer coisa – alguns textos maiores, outros dias mais curtos – mas que sou eu que a ponho, porque gosto e porque sei que melhora a própria escrita. Quanto ao stand-up, só dá para treinar fazendo. Não vale a pena ensaiar em casa.

Antes de virmos para aqui, notei que tinhas publicado um texto sobre a WebSummit e a polémica do jantar no Panteão. Dizes que não sabes se ainda vais a tempo de meter o pé numa procissão que já vai no Adro… Sentes que a janela de oportunidade está a fechar-se cada vez mais depressa para um comediante reagir neste tipo de controvérsias?

Sim, sim. Mas gosto de esperar um bocadinho. Prefiro não ser dos primeiros. Acho que quando se é o primeiro diz-se as coisas mais óbvias. E não há nada de pior para um comediante do que ir ver os comentários do “Correio da Manhã” e estarem lá cinco gajos que fizeram a mesma piada. Quando vejo que muita gente o fez e no mesmo ângulo que vou fazer, prefiro ficar calado apesar de saber que me ia render em termos de visualizações. Para ser mais um não vale a pena.

És um comediante antes de tudo na escrita, antes de o seres enquanto performer… Que literatura é que te serve de inspiração?

Sou um péssimo leitor, leio muito pouco. Do ponto de vista da escrita o comediante que mais me influenciou foi o George Carlin. Tenho os livros dele todos e acho que aquilo na escrita funciona. Muitas vezes dizem que o stand-up é a arte mais pura da comédia, porque és só tu e o microfone… Eu acho que não, acho que a escrita é a mais pura porque não podes fazer vozes ou caretas, não tens expressão corporal. Se consegues fazer alguém rir só com a escrita… Acho que aí sim, encontras a arte mais pura da comédia. Cá temos o Ricardo Araújo Pereira, o João Quadros, o Pombares, o Markl, gajos que escrevem e que são também guionistas e de quem gosto muito.

O Carlin tem um percurso muito singular, bastante errático, começando por uma vertente mais certinha, na televisão, depois meteu-se nas drogas e fez parte do movimento de contra-cultura dos anos 60 e 70, acabando a fazer uma comédia muito politizada e irascível, com espetáculos que chegam a ser comícios com um forte sentido anarquista ou libertário, e uma fortíssima componente crítica da cultura consumista norte-americana. Parece-te que hoje o papel do comediante assume mais impacto se ao invés de se limitar a fazer rir procurar tocar o público onde mais lhe dói?

Acho que esse é o dilema constante dos humoristas: limitarem-se a ter piada ou passarem também uma mensagem. No blogue não tenho muito essa pressão porque não assumo em lado nenhum que é um blogue de humor, é um blogue de opinião, onde tanto faço um texto puramente nonsense com piada como a seguir faço um texto mais lamechas que tem zero de piada. Já ao vivo tenho de puxar pelo riso do público, mas gosto de misturar um pouco as coisas. O Carlin tinha muitos aplausos sem risos, que é o que acontece quando as pessoas concordam com o que ele está a dizer – não teve piada, mas concordam. Mas um espetáculo só disso, lá está, torna-se um comício. Já num do Louis CK, que se calhar até me faz rir mais, no fim não levo tanto. Não fico a pensar naquilo. O Carlin era um filósofo com sentido de humor, é assim que eu o vejo. Gosto de misturar essas duas coisas e o meu espetáculo explora essa vertente. O que é sempre uma presunção, porque não acho que vou mudar a opinião de ninguém, nem estou ali para ensinar nada a ninguém ou para fazer intervenção, estou ali para entreter as pessoas. O que acho é que aquilo também entretém.

Nos EUA começa hoje claramente a surgir uma linha no stand-up de comediantes que estão ali para levar o público ao limite. Cá em Portugal a sensação que se tem é que os comediantes querem ser uns queridos, e acaba a parecer um concurso de popularidade. Talvez seja por questões de sobrevivência, porque têm de segurar o lugar na rádio, na televisão, a coluna semanal aqui e ali…

Pois, acho que o problema é esse. O Rui Sinel Cordes, que é quem foi mais longe nessa linha, traçou o caminho dele e já sabia o que lhe ia acontecer. Não tem nenhuma marca nem nunca fez um evento corporativo. Ninguém o quer, e é aí que está o dinheiro quase todo. Portanto, gabo-lhe a coragem de ter seguido esse caminho sabendo que isso ia fechar muitas portas. Por outro lado, tem um público que é, se calhar, o público mais fiel de stand-up. Podem não ser muitos, mas vão a todos os espetáculos. Também não gosto de fazer apenas humor negro, sendo que as pessoas já me conotam com o humor negro quando às vezes só 10% do que eu faço é que toca em temas mais sensíveis. Mas também não gosto do humor baunilha, de ficar bem com tudo. Cá, muita gente queria ter popularidade, e como não sabia cantar nem representar, foram para comediantes. Um Jeselnik não precisa de programas de televisão porque se tiver um milhão de pessoas que o queira ver ao vivo faz na boa dois ou mais por ano. Cá essa pressão faz-se sentir porque se tens as portas fechadas num canal de televisão ou na rádio ou por parte das marcas, passas a depender do rendimento que tiras exclusivamente dos espetáculos ao vivo. E, mesmo aí, há muitos teatros e promotores de eventos que não querem esse tipo de humor lá, mesmo que esgotes salas…

Em Portugal, no humor, vivemos sob uma espécie de reinados… Tivemos o Raul Solnado, depois o Herman, que dominou durante uma série de anos, e só havia espaço para aqueles que trabalhavam com ele. Agora a coisa está um pouco mais plural, mas ainda temos uma figura como o Ricardo Araújo Pereira que funciona como um secretário de Estado do Humor. Parece-te que no humor continuamos a viver sujeitos a uma espécie de regime, com o humor a ter de ser sancionado pelas instituições? Já te sentes enquadrado no humor português ou sentes que tens ainda de criar um espaço para te afirmares nele?

Sinto que não só eu, como quem surge a partir das plataformas online, está a ir de volta, a contornar o percurso que se era obrigado a fazer até aqui. Começavas a escrever uns guiões de borla para aqui e para ali, depois eras integrado numa equipa de escrita, depois começavas a fazer stand-up na televisão. Vais crescendo, depois arranjas o teu programa de televisão ou de rádio, tens a tua crónica… Quem vem do online, ganha o público primeiro e aparece já à frente dos outros em termos de visibilidade ou de esgotar salas. “Como é que este tipo aparece aqui? Se ele vem montado nas visualizações na internet deve ser uma merda.” Há muito este preconceito, portanto, é preciso criar o espaço e já não será tão fácil que voltem a surgir esses monstros do humor como foram o Raul Solnado, o Herman, o Ricardo Araújo Pereira e o Bruno Nogueira porque o público vai estar mais fragmentados. O público mais jovem já não está colado à televisão, as televisões também já não apostam no humor, e o que vai acontecer é que em vez de teres um RAP com três milhões de público, vais ter vários gajos mais pequenos que se calhar chegam a 500 mil. E muitos deles partilhando aqui e ali os mesmos públicos, porque isto não é como o futebol. Os humoristas às vezes pensam que é. Mas eu gosto tanto do RAP como do Bruno Nogueira e quem me dera que estivessem os dois na televisão a escrever, a produzir e a fazer rir, mas muitos humoristas acham que a concorrência é má. Como isto é um meio muito pequeno há muito acotovelanço, muito diz que disse nas costas, mas faz parte e também dá uma certa piada à coisa.

Não sei bem como está o ranking dos comediantes em termos de seguidores na internet… O Markl, por exemplo, que desaparece e aparece para contornar o mau ambiente nas redes sociais, quantos seguidores tem?

Não faço ideia. Uns 600 mil, 700 mil.

Então ainda é bem maior que tu.

Sim. Mas em termos de likes, entre aqueles que não estão na televisão ou na rádio, acho que sou aquele que tem mais visibilidade online. Tenho mais likes que o Bruno Nogueira. Mas isso vale o que vale: neste caso não vale nada. Ele tem menos presença online, escreve menos para o online, portanto isso é normal. Às vezes tem mais a ver com a recorrência da escrita do que propriamente com a qualidade. Mas estou, portanto, nesse patamar que me obriga a passar para o mundo real, e é por aí mesmo que começo o espetáculo. Até porque estou muito dependente do Facebook. Se o Facebook fecha a torneira eu desapareço. Acho que toda a gente que está no online vive um pouco com esse receio, de ser despejado. Se eu meter agora um vídeo da minha cadela a fazer cocó aí no mato, isso tem mais visualizações do que um programa na SIC Radical ou na Fox Comedy, apesar dos senhores da televisão não gostarem de admitir isso. Mas as marcas dão muito mais valor aos canais tradicionais: preferem cinco mil visualizações na televisão do que 100 mil na internet. Apesar das 100 mil na internet serem de pessoas que quiseram ver aquele conteúdo ao passo que, na televisão, muitas estavam a fazer zapping enquanto aquilo estava a dar em fundo. As televisões estão a lutar contra a internet em vez de se aliarem a ela… Algumas já estão a criar programas híbridos que estão no online e na televisão, procurando a interação com o público, o que funciona sempre bem. Mas ainda há muita gente que manda e que está com muito medo.

Porquê?

Têm medo porque já viram que 50% do orçamento das marcas vai para o online. Não sabem como é que vão sobreviver mas continuam a bater-se como se fossem muito importantes, quando, para a minha geração e para aquela mais nova, a relevância está perto do zero, porque já ninguém vê televisão.

Tens tido propostas para fazer alguma coisa na rádio ou para escreveres piadas para outros comediantes?

Nunca tive propostas nem para rádio nem para televisão nem para escrever para outras pessoas. Também nunca fui bater às portas. Às vezes uma pessoa fica à espera que o telefone toque, e o que é certo é que os outros que se mexem, chegam lá com um piloto e acabam por entrar. Portanto a culpa também é minha. Na verdade, estou bem aqui. Começo agora a sentir que o passo seguinte passará por fazer alguma coisa na rádio ou na televisão, para ter aquele carimbo de qualidade que me permite depois fazer dinheiro. Mas se tenho uma rubrica diária na rádio e ninguém me ouve, e fico sem tempo para alimentar as redes, acho que isso pode ser um tiro no pé. Ou se vou ter um programa na TVI ou na SIC ou na RTP e apanhar o público das novelas, provavelmente a grande maioria não vai achar piada ao que eu faço. “Olha este palhacito.” Isso seria um tiro no pé, porque depois, como as audiências são más, tiveste um programa cancelado na generalista, e isso acaba por poder dificultar-te a vida em projetos futuros. De qualquer modo, ainda é cedo. Talvez para o ano possa começar a acontecer isso.

Nós temos um conjunto de comediantes, que às tantas é difícil perceber o que é que eles são… Se são mesmo comediantes, ou apresentadores de televisão, rádio, se são entertainers, mestres de cerimónia disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana… Não te parece que essa falta de fronteiras entre as diversas artes gera uma certa indistinção, em que os comediantes surgem como os trolhas do entretenimento?

Isso acontece em muitos casos. Querem fazer tudo… Parece-me que é uma questão monetária. Em Portugal tens uns que ganham muitíssimo bem, depois a maioria tem de andar a esgravatar o terreno para um lado e para o outro. Para quem está a começar, como eu, percebo isso como um desafio. Quero tentar experimentar o máximo de registos. Por isso é que tenho o podcast [“Sem barbas na língua”, com Hugo Gonçalves], a série de sketchs, o stand-up, a escrita no blogue, os livros… Quero testar-me ao máximo, mas acho que o mais natural será, daqui a três ou quatro anos, perceber onde é que sou melhor e aquilo que me dá mais gozo fazer. Se calhar é na engenharia informática, e volto para lá… (risos). Se calhar é na escrita e fico-me por ali. Se calhar isto do stand-up até evolui bem, as pessoas querem ver e até já me sinto mais confortável, então posso fazer isso também. Mas acho difícil fazer tudo ao mesmo tempo e fazer tudo bem.

Sente-se uma certa sobranceria de figuras que usam os diversos canais tradicionais como se fossem estes a sua rede social deluxe? Como se pertencessem à Câmara dos Lordes e mostrassem altivez em relação à Câmara dos Comuns?

É, e irrita-me um bocadinho isso. Eles não têm redes sociais porque não precisam, e porque já eram grandes antes destas aparecerem. Porque senão tinham redes sociais como os outros. Eu também não tenho Facebook porque adoro, tenho porque é uma ferramenta de trabalho. Como em tudo, é preciso ser-se relativamente inteligente a lidar com aquilo. Tenho uma carapaça, talvez por ter crescido ali, que leva a que não fique minimamente afetado com os comentários negativos. Se calhar esses que dizem mal das redes sociais, quando vão ler os comentários ficam todos enxofrados quando lhes dizem que não têm a menor piada ou que são maus naquilo que fazem. E as marcas também têm esse preconceito ainda, além de que não gostam muito de pessoas com opiniões. Preferem um humorista que faz uma coisa completamente inócuaJá tive marcas que me disseram que gostavam de ter o Doutor G mas sem as piadas, sem a parte do humor. Só me apetecia mandá-los para um certo sítio.

Sem piadas como?

Diziam-me que queriam ter o personagem, por causa das visualizações, mas não queriam a parte do humor misturada com o consultório sexual e sentimental, muito menos um humor mais explícito ou agressivo. E eu disse-lhes: “Vocês então não querem o Doutor G, querem um sexólogo. Vão falar com a Marta Crawford ou assim. Nem eu quero desvirtuar o que andei a construir por dinheiro nem vocês vão ficar satisfeitos. Para o meu público vou parecer um vendido porque mudei o conteúdo, e não vai ter visualizações, portanto vocês não vão ficar satisfeitos. E eu não vou ficar satisfeito porque esse dinheiro não me dá para viver para o resto da vida. Se me dessem 5 milhões de euros, opá!, então vamos lá fazer isso”. As marcas são burras, porque quem está nos departamentos de marketing é pessoal da velha guarda que ainda não percebeu que a polémica é boa. A não ser que se seja uma coisa mesmo agressiva e puramente ofensiva, a polémica é sempre boa. É a velha máxima: que falem mal, mas que falem de nós. E as redes sociais estrebucham e dizem: eu vou deixar de consumir a vossa marca, mas a seguir a marca dá-lhes 10% de desconto e eles vão comprar. O público fala muito mas também é um vendido.

Antes de teres ganho carapaça no Facebook já trazias uma de teres crescido na Buraca?

Pois, acho que se calhar vem daí. A partir do momento em que me assaltavam na rua, dizerem-me que eu sou uma besta na internet não me chateia muito. Mesmo em termos profissionais acho que isso se refletiu. Havia pessoal que se deixava explorar e que permitia que lhe respondessem mal no trabalho e eu nunca aturei isso. Já passei pela minha dose de bullying na Buraca e agora já não tolero muito isso.

Tenho a sensação de que a maioria das pessoas que estão a fazer humor em Portugal formam bando de meninos que na maioria são uns queques que fazem umas piadas sobre sair à noite, os engates e um tipo de humor à volta de códigos e etiquetas próprias de gente beta. Nos EUA, por exemplo, o humor é muito mais a voz dos marginais, dos que cresceram à margem da classe mais privilegiada. De resto, há uma série de negros que dominam esta arte há décadas: Richard Pryor, Bill Cosby, Eddie Murphy, Dave Chappelle…

E o Chris Rock, o Kevin Hart agora…

Nesse sentido, achas que falta ainda reclamar esse olhar de uma cultura marginal?

Sim, sempre me pareceu curioso criticares a sociedade do interior do teu Ferrari. E isso acontece muito. Tens uma vivenda em Cascais e estás a criticar… Esses comediantes que vêm de condições privilegiadas, quase todos são filhos de boas famílias… E acho que há uma razão para isso, que é o terem podido dedicar-se ao humor sem terem de ir trabalhar. Enquanto eu tive de ir trabalhar, eles puderam não acabar o curso, ou acabá-lo nas calmas e indo-se metendo no meio da comédia, e estar um ou dois anos sem ganhar dinheiro porque tinham a fonte de rendimento dos pais. Portanto, acho que é uma consequência natural. Alguns poderão ser só uns parvinhos que querem dizer umas piadas, mas muitos que vêm daí são bons humoristas. Só que depois falam do mundo deles. Não podem estar numa vivenda em Cascais e depois estar a criticar a vida nos subúrbios… Já tive conversas com alguns humoristas em Portugal que me dizem que o racismo cá não é um problema assim tão sério… E eu: pois, na Quinta da Marinha se calhar nunca viste um preto, não é? Se calhar, só viste na televisão. E provavelmente nunca viste um preto a ser mal tratado na rua. Na minha zona o racismo é realmente um problema grave. Acho que às vezes é essa falta de noção que leva a que não falem desses temas mais fraturantes. E portanto, sim, acho que faz falta humoristas que desafiem o sistema, que não façam parte dos privilegiados. Isto apesar de eu fazer parte dos privilegiados, por ser branco, ter ambos os pais… não é? Também sou privilegiado nesta sociedade. Não sou é tanto como esses. Depois há outra questão: é o público desses que tem mais poder de compra. É público que tem 14 anos e os pais dão-lhes uma mesada de 500 euros, e eles vão ver os espetáculos todos e compram tudo. As marcas sabem isso, por isso é que apostam muito mais nesses. Mas não desvalorizo esse tipo de humoristas que fazem só piadas com o Urban e com o Instagram. Conheço muitos deles e são gajos porreiros. Gajos que às vezes me dizem que não fazem piadas com religião nem com futebol, porque o fizeram uma vez e receberam muitas mensagens de ódio. A minha resposta é: se deixas que isso dite o teu caminho não és bem um humorista, és um cata-vento, um megafone das massas, porque tens medo de te desafiar. Para mim, não. É quando recebo mensagens de ódio que percebo que um assunto está a mexer com as pessoas e, por isso, é fértil para continuar a escavar o terreno. É isso o que quero, porque se toco num assunto sensível e não tenho pessoal ofendido não fiz bem o meu trabalho. Percebo-os do ponto de vista da gestão de carreira, e se calhar é mais inteligente não te meteres nesses temas, mas acho que não tens amor a isto; só queres ser conhecido, uma pop star.

O que estamos a passar hoje com esta onda de acusações por assédio dá a sensação de que o público sente que lhe foi vendida alguma coisa e de que foi enganado, e que as celebridades deviam cumprir uma espécie de sacerdócio ético. Como é para ti ver um comediante como o Louis CK a ser julgado a partir de critérios que não têm nada a ver com arte nem com comédia, a qual, de resto, sempre pintou uma imagem muito mais negra e suja do mundo?

 Assusta-me um bocado isso. Cá em Portugal não tanto, mas nos EUA e no Reino Unido, sim. A partir do momento em que banem livros, obras intemporais apenas porque dizem certas palavras hoje consideradas ofensivas, ou porque tocam em temas sensíveis como a violação… O pessoal das faculdades agora são os mais conas e isso assusta-me. Cá em Portugal tens uma ou duas fações a tentar fazer isso, mas não têm conseguido impor-se. Claro que me assusta esta incapacidade para distinguir entre o criador e a criação. O Louis CK pode ser um otário, mas o que ele faz em palco tem de ser avaliado segundo outros critérios. Obviamente que aqui a empatia joga um papel importante, e sabendo-se que alguém é um otário na vida real é possível que percas a empatia e provavelmente já não te rirás tanto. Acho que o Sinel Cordes, por exemplo, sofre muito por essa razão: como faz piadas agressivas, o pessoal tende a achar que ele é um otário. Estive com ele duas ou três vezes, não sei se é ou não, mas não me passou essa sensação. Tenho um bocado de receio disso, que essa colagem entre a comédia e a vida real limite a tua liberdade em palco. Isto apesar de eu achar que essas pessoas representam um fenómeno muito residual, a questão é que fazem mais barulho. Seja como for, as pessoas têm de perceber que se querem ter gajos como o Louis CK e como o Kevin Spacey, que são celebridades à escala mundial, terão de se preparar para que estas pessoas não sejam completamente sãs. É normal que pessoas com aquele tipo de fama e com aquele nível de riqueza acabem por viver numa realidade distorcida. Vivem noutro mundo, noutro filme, e isso leva a que mesmo a noção que têm deles mesmos seja afetada. Um gajo pedir a uma mulher se se pode masturbar à frente dela, isso já é indício de ter um pé noutro mundo. Não estou, é claro, a dizer que deva ser desculpável, acho é que tem de ser visto no seu contexto, e não se podem fazer julgamentos sumários sem sentenças judicias. Porque se o Louis CK já admitiu que é verdade, o que aconteceu com o Kevin Spacey é que foi despedido antes de se saber se aquilo é verdade ou não. O que é que impede agora um maluco ou maluca de ir acusar seja quem for? E isso é algo que vai acontecer muitas vezes. Pôr o Louis CK no mesmo saco que o Bill Cosby, que drogava as mulheres e as violava é simplesmente estúpido. Qualquer pessoa pode perguntar a outra se quer ir para a cama com ele, e a verdade é que é muito difícil saber ao certo onde está a linha que separa sedução de assédio. Nesta lógica, um gajo com poder nunca pode meter-se em campo e mostrar interesse por uma mulher ou um homem. Se chegarmos a esse mundo vamos estar num lugar muito estranho. Vamos passar a ser todos assexuados, não sei. Talvez tenha de se celebrar antes um contrato, ou fazer um vídeo de antemão em que a pessoa diz que aceita ir para a cama com a outra… Se calhar é por aí. Agora, não é por o comediante ser uma besta que deixa de ser genial. E – e isto agora ainda é mais rebuscado – se calhar, se ele não tivesse esses problemas, nunca teria sido tão genial. Se queremos genialidade temos de estar dispostos a que os génios sejam algo distorcidos.

Partiste para esta digressão de stand-up sem saber como a coisa ia correr. Estás a ter uma série de salas esgotadas, mas no início aquilo foi um salto no vazio, porque não sabias se ias chegar lá e ter aquilo praticamente vazio. Como é que foi para ti dar esse salto?

É como andar de avião, coisa que eu não gosto de fazer. Mas depois está marcado, olha, siga. Depois sei que vou estar em pânico um dia antes mas até lá não penso muito nisso. Já me tinham tentado convencer a fazer isto no ano passado, mas eu não quis, achei que não estava maduro o suficiente no stand-up para as pessoas ficarem satisfeitas. Isto porque sei que quem segue o blogue vai com uma expectativa alta e que é muito difícil não defraudar essas expectativas. Porque eu escrevo todos os dias e stand-up só faço de vez em quando, portanto, é normal que o stand-up não seja tão bom como a escrita. As pessoas não têm muita noção disso, e às vezes até comparam com comediantes profissionais há décadas. Se me dizem que o Louis CK é melhor do que eu… Óbvio, mal seria se um tipo que tem milhares e milhares de atuações não fosse melhor do que eu, que nem cem atuações tenho. Mas é bom ser comparado a esse nível e não com o Zé da esquina que viram num bar na semana passada.