A IMPRENSA portuguesa nunca foi intrusiva na exploração de escândalos amorosos. A imprensa inglesa, por exemplo, pela-se pelas histórias de traições, adultérios, amores proibidos, e já não têm conta os ministros de Sua Majestade que tiveram de renunciar após a divulgação de escândalos sexuais. E na América a vida íntima dos candidatos presidenciais é passada a pente fino.
Em Portugal, não.
Os jornais, mesmo os assumidamente tabloides, não têm essa tradição. As figuras públicas podem dormir descansadas. As fofocas que chegam às redações – o ministro tal que anda com a secretária, o político tal que foi apanhado pela mulher em plena relação homossexual, o presidente do clube tal que organizou uma festa com prostitutas – não passam às páginas impressas. Mesmo casos notórios que poderiam ser mais explorados jornalisticamente – como as sucessivas relações de Pinto da Costa, que chegou a casar duas vezes com a mesma mulher -, são tratados de forma discreta e contida.
É muito saudável este comportamento da imprensa portuguesa, pois todos (pessoas públicas e não públicas) têm direito a ter vida privada.
HÁ DUAS SEMANAS rebentou um escândalo envolvendo a presidente de uma instituição de apoio a doentes mentais raros. A senhora apresentava despesas incompatíveis com a natureza do cargo, desde gastos para ir para o emprego num carro de luxo (alugado pela associação) a viagens duvidosas e até a roupa para vestir.
É óbvio que a senhora achava que a instituição era propriedade sua e, portanto, podia gastar o dinheiro como se fosse seu.
Mas no meio de tudo isto o mais chocante, para muita gente, terá sido a publicação de uma fotografia onde a dita senhora aparecia abraçada numa praia do Brasil a um senhor secretário de Estado.
Alguns comentadores discordaram da publicação da foto, dizendo que umas linhas sobre a relação eram suficientes.
Teriam razão?
COMO COMECEI por dizer, a imprensa portuguesa não tem tradição de explorar escândalos sexuais – e, se não houvesse mais nada, ou seja, se a fotografia se limitasse à revelação de um romance entre um secretário de Estado e a presidente de uma instituição de solidariedade (ambos casados), a sua divulgação seria condenável.
Acontece que o senhor era consultor da dita instituição – e aparentemente bem pago.
Ora, a presença de ambos no Brasil abraçados numa praia, levantava dois tipos de questões:
1. Se a contratação do senhor (e o valor da avença) não resultaria do facto de ter uma relação com a senhora;
2. Se algumas viagens da senhora ao estrangeiro, pagas pela instituição, não teriam por finalidade proporcionar momentos a sós com o parceiro, longe do país e num cenário idílico.
QUER ISTO dizer que a história de amor se interliga com os abusos na gestão da associação, fazendo todo o sentido que seja divulgada.
Não é uma questão lateral: está no centro do enredo.
‘Mas a publicação da fotografia era dispensável…’ – insistem os críticos.
Não penso assim.
Tendo a relação amorosa uma posição central no caso, é legítimo que seja noticiada de forma expressiva, ou seja, com texto e imagem.
A imagem reforça a credibilidade da notícia, e por isso a sua inserção não é gratuita. É uma ‘prova’ visual do que se afirma. Uma coisa é um jornal dizer que há uma relação amorosa entre duas pessoas, outra coisa é mostrá-las abraçadas.
É um pouco o que acontece com as escutas. É completamente diferente um jornal dizer que Sócrates queria afastar Manuela Moura Guedes da TVI – ou revelar a escuta de uma conversa entre Sócrates e Vara em que falam explicitamente do assunto.
Uma escuta, tal como uma imagem, tem essa virtude sobre um texto escrito por um jornalista: não é suscetível de desmentido. É uma prova irrefutável.
CLARO QUE não sou ingénuo e sei que os jornais querem vender – e a publicação de fotos ‘escandalosas’ ajuda a vender. Isso é óbvio.
E também sei que não há nenhum diretor de jornal no mundo que não queira vender mais – e por isso no jornalismo há sempre um pouco de voyeurismo, um toque de sensacionalismo. Um jornal procura vender da forma mais atrativa possível a matéria que tem.
A questão está em saber, em cada situação, se determinadas opções editoriais (neste caso, a publicação de uma foto) se justificam ou não. Se acrescentam valor ou são gratuitas. Esse é o ponto. Ora, aqui, é óbvio que a foto acrescenta valor e dá crédito ao que se noticia.
O JORNALISMO é feito na corda bamba. Se escorregar para o sensacionalismo, perderá credibilidade; se cair para o cinzentismo, não se venderá.
Os jornais não podem ser papeis asséticos. Têm de ter um pouco de sal, de agressividade, de appeal – e o segredo está em conseguir compatibilizar isso com o respeito por certos princípios e valores.
As pessoas que fora das redações analisam ‘moralmente’ os trabalhos jornalísticos, fazendo por vezes aceradas críticas, têm um problema: se algum dia ascendessem à direção de um meio de comunicação não vendiam nada. E um jornal que não se venda está morto. Assim como uma televisão que não tenha espetadores.