A perda de poder da política

«Os leões têm muita força, mas ela seria inútil se a natureza não lhes tivesse dado olhos».

O título deste texto não dará provavelmente para merecer a atenção devida. Porque não é apelativo para o comum dos mortais. Porque procura abordar uma matéria que, para a esmagadora maioria dos portugueses, não parece prioritária. E atual. Para o regime político, para o sistema político, para os partidos políticos e, sobretudo, para Portugal e para os portugueses em geral. Independentemente das suas idades e das suas condições sociais.

Mas, mesmo contra essa tendência, considero ser um exemplo de um dos muitos bloqueamentos de que o sistema político português enferma, e que não tem procurado interiorizar. Que não tem procurado consciencializar. Por forma a contrariar a onda de demagogia, na sociedade e nos media, contra os políticos, contra os partidos políticos e contra os seus representantes nos diversos órgãos de soberania.

Mas (salvo melhor opinião) julgo que a perda de poder da política, na sociedade portuguesa e no país em geral, é um problema, que deve merecer a melhor das atenções, bem como uma profícua discussão pública sem receio da controvérsia no espaço mediático, impondo-se também a necessidade de fazer a pedagogia devida. Sobretudo tendo em vista a procura da dignificação dos políticos e dos seus principais agentes, protagonistas e representantes.

Nas últimas décadas, com a complexidade dos problemas e o aumento da exigência dos cidadãos, nas vestes de eleitores, num quadro de perda de soberania (nuns casos) e de partilha de soberania (noutros casos, como Portugal)), o cidadão comum não percebeu que os políticos e a política perderam força, importância, ‘poder’, para outros tipos de poderes. Uns, ‘velhos poderes’; outros, ‘novos poderes’. 

Exemplos não faltam. Quase todos à frente do nariz, que não percecionamos nem valorizamos devidamente. Desde o exército das redes sociais e da voragem temporal que adicionam à vida das sociedades contemporâneas inclusivas e temporais, até ao poder da banca.

Estes novos e velhos poderes têm enorme impacto na fragilização da política e no contributo para a sua perda de influência e de poder. 

E existem já em curso, na área do direito, da ciência política e da sociologia, trabalhos de caráter científico sobre várias matérias da anatomia do poder – como o poder e a sociedade, a disfuncionalidade do poder, o direito e a sociedade, o direito das políticas públicas, etc. 

Impõe-se nesta discussão ir contra a torrente mediática (e não só mediática…), porque se está perto de atingir o grau de exagero da diabolização da política, do poder político e do poder em geral. Quem vê a política como atividade nobre, relevante e essencial para um Estado de Direito Democrático sólido e para uma democracia de qualidade, não pode deixar de se esforçar por dar um contributo para que tal seja invertido.

 Hoje existem poderes pouco ou nada legítimos, pouco ou nada representativos, pouco escrutinados comparativamente com o poder político, que têm causado e causam mais impactos negativos nas nossas vidas coletivas e individuais do que a política. 

O exemplo da banca é claro. Os milhares de milhões de euros de dinheiros públicos que têm sido gastos na banca portuguesa, anos seguidos, devem-se a erros de responsáveis não políticos – que acumularam perdas económicas, sociais e de reputação que dificilmente encontram paralelo na esfera política. 

Hoje, tudo o que de mau acontece, mesmo sem especial e atual aprofundamento, é logo assacado ao poder político. Sem possibilidade muitas vezes de comprovação dos factos, dentro e fora do espaço mediático. 
Quem são os responsáveis por este bloqueamento, daquilo a que algumas pessoas chamam de ‘crise do regime político’? Muita gente. Uns de forma ingénua, outros nem tanto. Porque são construtores de novos poderes, à conta da perda de poder da política. 

Isto, a não ser alterado, vai provavelmente estoirar com o Estado de Direito Democrático. 

Para uns, que só querem tirar partido do que a democracia lhes pode dar no curto prazo, tal não é um problema. Até porque não são convictos adeptos da democracia demoliberal. 

Mas para os cultores dos valores democráticos, do Estado de Direito, da separação de poderes, da subordinação do poder económico ao poder político e do reforço da solidez de vários dos elementos-base do sistema político, este é um problema que urge ultrapassar. 

E não é um caminho fácil, antes pelo contrário. É um caminho com muitos obstáculos, muitos ‘poderes não políticos’, que só existem devido à fragilidade da política, da sua diabolização, da sua desconstrução no dia-a-dia no espaço mediático – e consequentemente na percepção da maioria dos portugueses e das portuguesas.
Não é para todos enfrentar este desafio. Até porque não é uma matéria mediática. Não dá audiências e não prende a atenção, pelo não é percecionada como uma prioridade. Correndo alguns de nós o risco de andarmos a falar do que poucos querem ouvir…

olharaocentro@sol.pt