Actores. Agora sem máscaras

Personagens são eles nesta história. Bruno Nogueira, Carolina Amaral, Miguel Guilherme, Nuno Lopes e Rita Cabaço, que esta noite sobem ao palco do São Luiz para um espetáculo que, com Marco Martins, coseram do avesso. E que promete mais angústia do que glória

Rita Cabaço não morre, nem podia. “Uma das coisas mais difíceis para um ator é morrer em cena. Porque, à partida, o público sabe que o ator não está morto, e porque não temos nenhuma memória associada a isso. Nunca morremos antes.” Se a esta cena algum destes cinco atores com que vamos dar neste cenário que há de ser o de um ensaio tiver que sobreviver para contar, que seja então ela, que nunca passou pelo que virá a seguir. Quando um por um já todos tiverem tombado das suas cadeiras da maneira que presumimos que há de tombar alguém de uma cadeira quando morre. 

Quantas vezes morre um ator. Ou quantas chora. Quantas se envergonha ou emociona? Tantas quantas forem necessárias. Talvez mais, que clara há de ficar em “Actores”, que se estreia hoje no São Luiz, em Lisboa, a importância da repetição. E entre “Rosencrantz & Guildenstern Estão Mortos”, de Tom Stoppard, encenada por Marco Martins em 2013 para uma das mortes de Bruno Nogueira, e todas aquelas vezes em que Luísa Cruz teve que morrer em “Um Hamlet a Mais” (2003) será uma questão de segundos. Mas conta disso daremos apenas quando já tiver sido, quando já Nuno Lopes estiver de volta à Cornucópia, 2008, para mais uma vez morrer como em “Don Carlos, Infante de Espanha” para se recordar de que a morte afinal vem depressa. Tempo não sobra nem a ele nem Miguel Guilherme, já em horário nobre TVI. Com Rita Cabaço para a contracena da novela, diálogo sobre homicídios, casamentos e os nós que em “A Herdeira” (2017) se vão desatar ao México para o derradeiro disparo em que já é de Paulo Pires que faz Rita Cabaço. Que não morre, dizíamos, não morre porque nunca morreu.

Não morre mas há de ter sonhos, dos sonhos que têm atores em vésperas de estreia. “Pesadelos”, corrige Marco Martins, que, como os cinco atores, exceto Carolina Amaral (e já explicamos) há também de entrar pelo espetáculo a fazer de si próprio – encenador – que bem lá atrás no tempo encontra a génese deste espetáculo, “projeto bastante antigo” que começou com a constatação de que os atores com quem foi trabalhando — no cinema e no teatro — se viam obrigados a repartir-se entre vários trabalhos. “Estavam a filmar comigo enquanto faziam uma peça de teatro ou uma novela, por exemplo, e para um realizador ou encenador é sempre incómodo, porque encontra o intérprete num estado de exaustão constante, muito cansado, em condições que estão longe de ser as ideais, mas que são ditadas por uma questão de necessidade económica dos atores.” 

A essa primeira ideia inicial para “Actores” Marco Martins começou a dar forma a partir de longas conversas com os atores, num texto que, iminentemente autobiográfico, se foi fazendo por todos até chegar à forma justa. Sucessão de reenactments a revisitar “não os grandes momentos de glória” de Bruno Nogueira, Luísa Cruz, Miguel Guilherme, Nuno Lopes e Rita Cabaço, antes “os momentos de dificuldade, de exposição, de trauma” de um grupo de atores de “várias gerações, com diferentes trajetos, diferentes escolhas e oportunidades, para assim fazer um retrato do que é ser ator em Portugal nestes últimos 40 anos”. 

“O prazer está implícito” Nuno Lopes cita Miguel Guilherme para Rita Cabaço, ele professor, ela a prestar provas para o conservatório. “O prazer está implícito, de facto, o lado positivo as pessoas já conhecem, portanto o espetáculo é acima de tudo uma exposição do que é o trabalho do ator. As angústias, as tristezas, os fracassos fazem parte – tal como a repetição que é uma coisa que usamos muito.” Num espetáculo que Marco Martins vê como o “mais cinematográfico” de todos os seus trabalhos para teatro, a aproximar-se do documentário pela construção que se foi fazendo como montagem de memórias. Que se sucedem, quase atropelam, em vertigem ao longo de quase três horas de um espetáculo em que se esventram cinco atores. “Há aqui coisas que foram um bocadinho humilhantes ou duras de fazer, alturas difíceis da minha vida”, descreve Bruno Nogueira, que encontrou “um lado terapêutico” em “Actores”. 

“Normalmente, quando acabo uma coisa não tenho vontade de a prolongar, vai logo para um sítio que já não é o sítio da memória de fácil acesso. Foi um trabalho de escavar, que foi interessante porque houve coisas que trouxeram outras que já não estavam à superfície. É engraçado perceber este bicho que somos: numa noite podemos estar a fazer uma peça para no dia seguinte estarmos a fazer um spot de rádio… para um supermercado, sei lá. Esta esquizofrenia a que obriga esta profissão.” E por aqui iremos dar à chegada de Carolina Amaral, que Marco Martins recentemente dirigiu com Beatriz Batarda em “Todo o Mundo é Um Palco”, a este elenco, que Luísa Cruz se viu forçada a abandonar a semanas da estreia.

Um diálogo entre atrizes “A realidade a entrar pela ficção”, assim o encarou Marco Martins, num espetáculo que nunca deixou de ser sobre ela. “A Luísa Cruz estava connosco desde o início, já tínhamos desenvolvido uma série de material autobiográfico, tínhamos trabalhado em muitas improvisações, mas a determinada altura estava a gravar uma novela e a fazer ensaios e estava muito cansada. Precisava de descansar, de desistir, e eu tinha duas opções: ou tirava todo o material que tínhamos desenvolvido com ela ou arranjava uma atriz para a representar.” Para o que já não será uma representação da representação, sorri, mas “uma representação da representação da representação”. 

Das histórias com que chega a “Actores”, a Carolina Amaral falha a memória que não tem porque não é sua. “Nem física, nem psicológica, nem emocional. Não são as minhas histórias. Nem sequer as vi, porque de todas as peças que vi da Luísa nenhuma está aqui – tenho 24 anos, a Luísa tem 55.” E explica como quis fugir da imitação: “O que faço aqui é mais uma apropriação do trabalho de uma outra atriz para o reinventar, pensá-lo de uma forma que a Luísa não poderia ao trabalhar sobre si mesma. Para mim foi um privilégio, também uma honra ter um espaço em que posso dialogar com ela de outra forma, receber o material dela e perceber quais são os ecos que isso tem em mim. Vou atrás dela como se fosse atrás de um lastro, de um símbolo, de uma imagem. Vou à procura dela e ela está a guiar-me de uma forma real, apesar de não estar aqui comigo.”

Sonhos, no final tudo irá dar aí. Mais ou menos por onde começou, que aquilo era mesmo um casting.