Miguel Guimarães está a poucas semanas de completar um ano à frente da Ordem dos Médicos. Vê poucas mudanças, menos do que as que defende serem necessárias para o Serviço Nacional de Saúde não se tornar uma resposta só para que os que não têm possibilidade de ir ao privado. Sobre a atual época de gripe, diz que revela mais sobre as fragilidades do SNS do que sobre a doença. E avisa que os hospitais e as urgências precisam de ser repensadas e não só quando há picos de afluência.
O caos de que temos ouvido falar nas urgências é a realidade ou uma “perceção da realidade” como disse no parlamento António Costa?
As grandes dificuldades que existem neste momento nos hospitais portugueses são uma realidade. Uma realidade que facilmente o primeiro-ministro conseguiria visualizar in loco se visitasse alguns hospitais sem avisar com muito tempo de antecedência. Infelizmente, as urgências não têm mudado muito apesar de antecipadamente sabermos que nesta altura do ano existe uma maior afluência, mas não é só por causa da gripe. Temos uma população cada vez mais envelhecida, com doenças crónicas como diabetes, hipertensão. Temos um conjunto de patologias que já não são as mesmas que ocupavam as urgências há dez anos, a que se associam depois questões sazonais.
Mas a situação está pior do que noutros anos?
Não sei dizer se está pior em termos de números absolutos.
A afluência em relação ao ano passado não está especialmente pior.
Sim, mas em termos de confusões, da desorganização dos serviços, ou pelo menos de alguns serviços de urgência, é semelhante a anos anteriores. Tive oportunidade de ir ao Hospital de Gaia e fiquei impressionado com o número de doentes internados no serviço de urgência, na sala, nos corredores, em macas, homens ao lado de mulheres, situações que não são dignas. A situação está longe de ser a ideal e tenho a certeza de que nem o ministro da Saúde nem o primeiro-ministro a validam. Quando o Hospital de Gaia reclamou a ativação do plano de contingência – que consistia na abertura de 25 ou 30 camas com os respetivos enfermeiros e assistentes operacionais para cuidarem dos doentes 24 horas – isso não foi logo autorizado, tivemos uma situação dramática.
Quanto tempo foi preciso para desbloquear a situação?
Andámos ali uma semana em que o hospital pedia e Saúde e Finanças não autorizavam.
Não havendo uma afluência muito maior do que noutros anos, o que explica estas dificuldades?
Há menos recursos.
O governo diz que há mais. Costa disse que há mais 2 mil médicos, mais 2.800 enfermeiros, mais 200 técnicos de diagnóstico em relação a 2015.
Aquela afirmação do primeiro-ministro é completamente descontextualizada. Quando se diz que, neste momento, temos mais médicos do que no ano passado, que médicos é que temos? São médicos de família ou são médicos hospitalares? Tem-se contratado mais médicos de família, mas os médicos de família não fazem urgências.
Os 700 médicos que concluíram o internato em especialidades hospitalares no ano passado ainda não foram contratados. Encontra explicação para a demora nestes concursos?
A explicação é económica. São as Finanças. Quando eu procuro junto do Ministério da Saúde aprofundar mais esta questão tem sido sempre essa a conclusão. Já falámos destes concursos tantas vezes… os concursos continuam por abrir e isto não aconteceu nos últimos dez anos.
Tem indicação de jovens especialistas a emigrar ou a ir para o privado?
Muitos. E isto acontece para se poupar alguns tostões, pensando que, quanto mais tarde se integrarem estes médicos no SNS, menos se paga. Os médicos que são especialistas desde abril/março de 2017, se vierem agora a ser contratados, poupou-se um ano de vencimentos. Os que ficaram no SNS estão até aqui a ganhar como internos.
O Sindicato Independente dos Médicos denuncia que já tem havido contactos informais de alguns hospitais para contratar estes médicos. Faz sentido o processo acontecer assim?
Não podemos continuar a ter concursos paralelos: ou temos um concurso nacional ou concursos locais. O governo tem uma obrigação de ter uma atenção especial em relação às zonas carenciadas.
Foram criados novos incentivos para fixar médicos.
Não chega. O país nunca vai ser todo homogéneo mas, se queremos desenvolver mais as zonas periféricas, temos de ter uma política global. No caso dos médicos, é mais importante dar boas condições de trabalho do que propriamente o tipo de incentivos criados. Quando digo boas condições significa que um médico que fique em Portalegre, em Beja ou em Vila Real tem de ter condições para exercer medicina segundo as boas práticas.
O que falta hoje?
A maior parte dos serviços dos hospitais mais periféricos estão completamente depauperados em termos de equipamento. Imagine que tem um cálculo renal e eu tenho de operá-la. Sou um jovem urologista e fico num hospital mais periférico onde provavelmente tenho de fazer uma cirurgia aberta quando podia fazer uma cirurgia laparoscópica se tivesse material adequado. Não tendo, tenho de fazer a cirurgia como se fazia há 20 anos. É um retrocesso para o doente e para o jovem médico não é atrativo, o que quer é fazer uma cirurgia minimamente invasiva.
A ideia de que vai ser médico num local onde é mais necessário não é motivadora? Como dantes se falava do serviço médico à periferia…
Também e o serviço médico à periferia era uma ideia que podia ser, de hoje para amanhã, recuperada pelo governo. Mas a questão é que, quem tem de tomar decisões, não está a pensar nas coisas desta forma mais ampla: pensa-se nos incentivos, paga-se mais algum dinheiro, dá-se mais um ou dois dias de férias aos médicos, mas isso não chega. E depois há uma discriminação negativa no que querem fazer agora com o internato. Dizem que quem ocupar uma vaga carenciada em Portalegre, em Beja, onde for, tem de ficar naquele serviço durante três anos quando for especialista, se não ficar não pode trabalhar em mais nenhum sítio do SNS. Está-se-lhes a apontar o caminho. Mesmo que tenha feito um bom internato, tem de ficar ali. Enquanto os que ficaram em Lisboa ou no Porto podem concorrer onde quiserem.
Existe como contrapartida um acréscimo salarial.
Sim, mas se houvesse boas condições de trabalho associado a essa recompensa de ficar a trabalhar em locais onde se é mais necessário e há mais reconhecimento da população, seria mais motivante. Obrigar os médicos a ficar é estar a abrir-lhes as portas da saída, porque os médicos felizmente têm boas perspetivas de emprego, seja no privado, seja noutros países.
O ministro chegou a avançar a ideia de haver um período de fidelização ao SNS após o internato e que para sair os médicos teriam de pagar a formação, o que a Ordem contestou.
E o ministro desistiu. Foi a pior ideia que ele lançou nos últimos anos. O pressuposto que o ministro apresentou foi a coisa que caiu pior aos médicos nos últimos anos. Foi a ideia de que os médicos devem ao Serviço Nacional de Saúde e que por isso têm de permanecer no SNS.
A formação na especialidade implica um investimento do Estado, não?
Um investimento que não sabemos qual é. Sei que o meu antecessor, o professor José Manuel Silva, chegou a dizer que formar cada médico custava 500 mil euros. O único estudo que existe diz que a formação nas escolas médicas custa entre 60 mil e 100 mil euros e é variável. Portanto, quando acaba o curso de Medicina, o médico custou 100 mil euros ao Estado. A partir daqui entra no internato do ano comum. Neste ano comum, além do vencimento, tudo o que é custos que possa ter tem de ser imputado à formação, está basicamente a aprender. Depois, na especialidade, os custos são menores: os internos da especialidade produzem mais do que os próprios especialistas.
Representam um terço dos médicos do SNS.
Sim, fazem parte das equipas. Quando vou para o bloco operatório vai um interno comigo. Se o interno não fosse tinham de ir dois especialistas. Na urgência temos um interno e um especialista – nem haveria especialistas para assegurar todo o trabalho nas urgências. Portanto, os internos têm um vencimento mas estão a trabalhar e foi isso que eu disse ao ministro. Têm um vencimento que se justifica plenamente e até são mal pagos. Obrigá-los a ficar no SNS com o pretexto de que foi feito um investimento neles não faz sentido. Ainda que fosse para ajudar o país… mas a forma como se apresentam as coisas é importante, não estão devedores de nada. De resto, se o governo quer fixar os médicos no SNS, tem de abrir os concursos. Se tenho 700 médicos e quero que eles fiquem no SNS, abro o concurso no dia a seguir. Se abrir rapidamente os concursos, podem não ficar todos, mas 500 ou 600 ficam. Se esperar um ano, já só ficam 200 ou 300.
Discute-se por vezes se a divisão dos médicos entre público e privado não contribui para um SNS menos produtivo. A exclusividade podia ser uma solução?
Depois de tomar posse, na primeira reunião que tive com o ministro da Saúde, apresentei-lhe várias propostas. Até hoje a maior parte delas continua sem resposta. É criticado por quase toda a gente que negoceia com ele porque promete, diz que sim, acha a ideia interessante mas depois deixa ficar na mesma. Mas houve duas coisas que eu propus e o ministro disse logo que não, que é assim que eu gosto, não vale a pena dizer que sim e depois nada acontecer. Uma das questões foi a da dedicação exclusiva e a outra foi os diretores clínicos dos hospitais e centros de saúde passarem a ser eleitos pelos pares.
Começando então por essa última proposta, era algo que fazia parte da sua candidatura a bastonário.
Sim e esta situação nas urgências vem ilustrar a necessidade disso. Se nós nos hospitais tivéssemos diretores clínicos que fossem eleitos inter-pares, ou seja que estivessem a zelar pelo cumprimento da medicina e fossem os primeiros defensores dos doentes nos hospitais, sabíamos em tempo real o que estava a acontecer e eram os primeiros a bater o pé ao Ministério da Saúde.
Está a dizer que os atuais diretores clínicos, ao serem nomeados politicamente como os restantes membros dos conselhos de administração, não podem denunciar as dificuldades?
Estão completamente reféns, não tenho a menor dúvida. Já viu algum diretor clínico aparecer publicamente a denunciar alguma coisa? Sabe quantos diretores clínicos falaram comigo por causa da situação que têm vivido agora?
Há uma lei da rolha no SNS?
Não é uma questão de ser lei da rolha, mas a lei da rolha existe, as administrações não podem fazer as declarações que quiserem.
Foi sempre assim?
Já era assim no tempo de Paulo Macedo e não há diferença para este governo. Os diretores clínicos são dos profissionais com mais responsabilidade: são os principais responsáveis pela qualidade de medicina praticada nas instituições mas, ao aceitarem ser membros de um conselho de administração por nomeação, estão obrigados a cumprir o programa do governo e o programa do Ministério da Saúde. Portanto estão sempre a receber instruções sobre o que devem fazer.
O que lhe têm dito?
Contactam-me a pedir ajuda para intervir. Querem melhores condições, queriam que os planos de contingência fossem ativados. O meu último fim de semana foi dramático, não em termos de intervenção pública, mas para que as situações fossem desbloqueadas. É como disse há pouco: o plano de Gaia, que era dos hospitais com maiores dificuldades nas urgências, demorou dez dias.
Estamos a falar de ser necessário autorizar uma despesa de que ordem?
Não vou somar. O que posso dizer é que, se continuarmos neste caminho em que as Finanças controlam tudo, em que os orçamentos de Estado para áreas especificas são cada vez mais baixos, vamos ter cada vez mais problemas. O orçamento da Saúde para este ano são 5,2% do PIB, nunca foi tão baixo, só vai dar mais dinheiro porque o PIB cresceu. Não estamos claramente a investir e não podemos fazer milagres. Com as estruturas atuais e os recursos humanos que temos, a nossa capacidade de resposta é limitada. E portanto quando temos um bocadinho de gripe, porque isto não é o pico da gripe, há logo problemas. Repare, a maior parte das pessoas ainda não tem gripe mas basta que haja uma pequena mudança para que sejam reveladas as fragilidades do Serviço Nacional de Saúde. O SNS está frágil, no limite.
Acha que o ministro da Saúde não vê isso ou o problema está nas Finanças?
Acho que o ministro não tem conseguido exercer a sua influência junto das Finanças, acho que nenhum ministro consegue. Cada vez menos. O governo centrou muito a recuperação do país na Economia e nas Finanças e conseguiu bons resultados. O papel do ministro das Finanças não é a Saúde, a Educação, a Justiça. Não é a Segurança Social, nem a Proteção Civil. O dever do ministro das Finanças é orçamento, défice, por aí fora. Atingiu o objetivo dele.
À custa dos outros?
Precisamente. Conseguiu uma boa consolidação orçamental, que não houvesse orçamentos retificativos, uma bolsa de conforto à conta das cativações, conseguiu recuperar a imagem externa do país e até ser eleito para um cargo importante a nível europeu, agora isto foi feito à custa do resto das áreas. As outras áreas ficaram todas um bocado depenadas, paradas no tempo. As reformas que precisavam de ser feitas no SNS não foram feitas.
Chegados a meio da legislatura, antecipa que essas mudanças que considera necessárias vão acontecer?
Já não acredito muito em grandes mudanças com este governo. E há muito por fazer. A reforma dos cuidados primários está parada. Quantas USF de modelo A passaram para o modelo B em 2017? Zero. É o primeiro ano em que isto acontece. Toda a gente criticava o Dr. Paulo Macedo por ele estar a restringir esta passagem, porque só deixavam passar umas poucas… Em 2017 não passou nenhuma. A reforma hospitalar também está completamente parada.
Vão agora avançar os Centros de Responsabilidade Integrados (CRI), serviços hospitalares com mais autonomia.
Mas a reforma hospitalar não são só os Centros de Responsabilidade Integrados. Qual é o maior problema do SNS, o que todos os anos faz a capa dos jornais? O serviço de urgência. É preciso repensar os hospitais, temos de ter os hospitais do futuro e não do passado, mas neste momento temos hospitais do passado. A forma como os hospitais estão organizados tem 30 ou 40 anos.
O que tem de mudar?
Precisamos de ter hospitais com uma flexibilidade maior, precisamos de mais espaço de internamento fora dos hospitais, mais unidades de cuidados continuados. Estamos na cauda da Europa nisso. Temos camas muito mais caras de agudos em hospitais como Santa Maria e S. José ocupadas por doentes que deviam ter saído do hospital há dias ou há meses, com uma probabilidade grande de levar mais tempo a recuperar, de ter uma infeção hospitalar. Este paradigma tem de mudar e com ele muda o serviço de urgência.
Como?
Temos de ter um fluxo de resposta em que os cidadãos percebam claramente quando têm de ir à urgência do hospital e quando não têm. Isto tinha de começar amanhã: pegava-se em cinco exemplos, da gripe aos sintomas de AVC, e divulgava-se na televisão, em todo o lado.
Defende que, para que funcionasse, tinha de haver centros de saúde abertos todos os dias não só nesta altura da gripe.
Sim. Não digo todos os centros de saúde mas dois centros de saúde por agrupamento estarem disponíveis e até com um corpo reforçado até à meia-noite e ao fim de semana para as pessoas se habituarem a ir ao centro de saúde, com hipótese de análises, de um eletrocardiograma. Hoje as pessoas vão para as urgências quando não existe razão para isso porque não estão habituadas e porque só lhes é pedido para recorrerem ao centro de saúde em horário alargado nestas alturas do ano. Isto implica investimento, custa dinheiro? Custa.
Regressa-se sempre ao mesmo ponto?
Pois e por isso é que não se reforma. Mas isto era essencial para melhorar a resposta no serviço de urgência, eventualmente com equipas dedicadas e indicadores de qualidade, que hoje não existem. Provavelmente também temos de mudar a atual triagem de Manchester. As pessoas que vão à urgência não são as mesmas que iam há dez anos, as doenças não são as mesmas, as idades não são as mesmas. Por fim, garantindo um melhor funcionamento do sistema, conseguia-se aumentar as vagas para formação de médicos na especialidade, seguramente para todos os que tiram o curso em Portugal.
E para reforçar a resposta, os médicos a trabalhar em exclusividade no SNS não seria uma ajuda?
Foi a segunda questão que coloquei ao ministro da Saúde na tal primeira reunião em que a resposta foi não. Mais uma vez acho que as pessoas não têm de ser obrigadas, mas o que propus foi que fosse dada de novo a hipótese de os médicos poderem optar por trabalhar em dedicação exclusiva. A minha sensação é que uma parte muito grande dos médicos, se pudesse optar por dedicação exclusiva, provavelmente optava.
Porquê?
Porque estão cansados de andar a correr de um lado para o outro. O stress é grande e não é só no SNS, também é grande na medicina privada. As pessoas para ganhar mais algum dinheiro acabam por estar a trabalhar quase permanentemente até às onze, meia-noite, andam a correr de um lado para o outro. A partir de uma certa altura as pessoas começam a sentir que querem estar num sítio, participar mais na vida do serviço, se também houver abertura para isso. De maneira que foi o que propusemos e o ministro disse que não.
Porque implicava um aumento de vencimento?
Sim. Em relação aos diretores clínicos acho que a recusa é estratégica, mas qualquer coisa que implique custos não avança.
Estratégica?
Quando faço a proposta, o senhor ministro deve pensar: “Se forem nomeados por mim, estão comigo, se forem escolhidos pelos médicos, estão com ele”. O diretor clínico é de longe o médico mais importante no hospital, o que tem mais poder, mais responsabilidade e o que pode determinar o sucesso ou insucesso. Em relação à exclusividade, o que posso dizer é que não são os médicos que se opõem a um regime opcional de dedicação exclusiva.
Se houvesse mais médicos em exclusividade, o SNS era mais eficiente?
Tinha de ser avaliado. Também posso pôr-me do outro lado. Um médico em dedicação exclusiva não significa ter um horário muito mais alargado, neste momento os médicos que têm dedicação exclusiva tem 42 horas de trabalho, são mais duas horas.
Podia haver por exemplo mais atividade à tarde?
Hoje já não há hospitais que não operem à tarde e não há assim tanto mais espaço. Continuo a dar consulta à quinta-feira em S. João mas quando por vezes tenho de passar para outro dia não imagina o que passo até encontrar um gabinete livre, normalmente só à sexta-feira a partir de meio da tarde. Os hospitais estão cheios e a rentabilidade foi levada até ao limite.
Quer dizer que são precisos mais hospitais?
Não creio, é a tal mudança de paradigma de que falava. Se calhar estamos a fazer consultas de mais nos hospitais e precisamos de maior coordenação e interligação entre medicina geral e familiar e medicina hospitalar. Existem experiências de algumas especialidades hospitalares irem aos cuidados primários e acredito que o caminho será mais por aí. Quando estive em Viana do Castelo, o meu serviço dava apoio a sete ou oito centros de saúde no Porto. Os doentes referenciados para Urologia eram reunidos numa manhã ou tarde e ia lá eu ou um colega. Isto vai sendo feito pontualmente mas ainda não existe uma regulação. Tanto nas áreas mais periféricas como nos grandes centros melhoravam muito a qualidade da resposta: a maior parte dos doentes não precisava de ir ao hospital e os que até precisavam de operação ficavam logo inscritos.
Tem a visão defendida por António Arnaut e João Semedo de que o setor de medicina privada tem crescido à conta da degradação do SNS?
Não tenho dúvidas. Olhando para os números, o que se verifica é que nos últimos anos há cada vez mais portugueses com seguros de saúde.
Mas o SNS também faz mais consultas e operações.
Certo, mas esses são números que têm de ser analisados e estamos numa comissão que tem precisamente esse objetivo. A auditoria do Tribunal de Contas que alertou que há dados que não são fiáveis foi muito importante.
Quando é que a comissão vai apresentar conclusões?
No final deste mês. Mas independentemente de se produzir mais ou menos no SNS, a verdade é que os portugueses cada vez gastam mais com saúde. Segundo os últimos dados, 37% daquilo que é gasto em saúde em Portugal sai do bolso dos portugueses, o que é a taxa mais elevada a nível europeu e não tem em conta a ADSE. Desconto 3,5% do ordenado para a ADSE e há 1,4 milhões de pessoas a fazer isso, pelo que a despesa dos portugueses com saúde do próprio bolso deve andar perto dos 40%. Portanto, se os portugueses despendem cada vez mais do seu bolso com saúde, significa que estão a ir mais à medicina privada.
Acredita que há um movimento intencional nos últimos anos para alimentar esse crescimento do privado ou é uma consequência do desinvestimento?
Acho que é intencional. Os últimos dois governos, este e o anterior, têm tido uma estratégia de cada vez mais concentrar os cuidados de saúde nos grandes hospitais, nos grandes hospitais públicos e privados. Disse isto quando Paulo Macedo era ministro. Existe a noção de quem gere a saúde em Portugal que a saúde é algo que as pessoas valorizam muito. Dizia-se há muitos anos que as pessoas tinham sempre um pé de meia para a saúde ainda hoje se acredita que é assim. Por isso é que os governos, quando têm necessidade de fazer cortes, o primeiro sítio onde vão a cortar é a saúde. Primeiro, porque é um dos maiores ministérios. Segundo, porque sabem que se cortarem alguma coisa na saúde, aquelas pessoas que têm mais algumas possibilidades vão acorrer a medicina privada porque podem. Têm aqui uma margem de segurança e vão aprofundando.
Mas vão aprofundando para poupar dinheiro ao Estado ou para dar dinheiro ao privado?
Para poupar dinheiro ao Estado. Não acho que o objetivo seja dar dinheiro ao privado, mas é o Estado tirar da sua responsabilidade ter de tratar os portugueses todos e empurrar, sem parecer que está a empurrar, quem pode pagar para o privado.
Não pode haver o efeito perverso de as pessoas, beneficiando menos, não quererem pagar tantos impostos e haver menos dinheiro para financiar o SNS para a fatia da população que não pode ir a mais lado nenhum?
Isso é onde vamos acabar se continuarmos assim. Repare, o Estado tem uma série de serviços que tem de garantir e garante cada vez menos. Basta ver as privatizações. Não é que sejam más, mas o que vejo é que o Estado quer libertar-se do máximo de responsabilidades. No caso da Saúde, não pode fazê-lo, sobretudo num país que tem a tradição de ter um SNS, o serviço mais solidário a nível nacional e que foi decisivo como fator de coesão social. Mas o facto é que estão a empurrar, estão a empurrar dizendo que não estão a empurrar. O nosso atual ministro tem seguido mais ou menos a política de Paulo Macedo e haver mais gente a deslocar-se para a privada é indiscutível. Em termos práticos isto hoje já é perverso: Portugal já está na cauda da Europa em termos de desigualdades em saúde. Quando a OCDE vem dizer que 10% dos portugueses não compram medicamentos por razões de insuficiência económica, isto devia levar-nos a pensar. Estamos a cavar um fosso grande entre as pessoas que têm dificuldades e as que têm menos dificuldades.
Disse no início desta conversa que António Costa devia visitar os hospitais sem avisar. A bastonária dos enfermeiros dizia esta semana ao i que sempre que membros do governo vão a uma urgência escondem-se os doentes em qualquer sítio, até debaixo das escadas. Já propôs mais de uma vez visitas surpresa, é isto que acontece?
É. Acho que neste momento já não se justifica um ministro da saúde ir visitar um hospital, as pessoas não acreditam. O ministro tem de ter a noção de que quando aparece na televisão a dizer que está tudo bem e milhares de pessoas no país percebem que não está porque estão a ter necessidade de recorrer a urgências, uma pessoa fica desacreditada. Um bom governante tem de assumir as fragilidades. Dizer “as coisas não estão bem mas vamos tentar melhorá-las.”
Mas já passou por essa experiência, de ver doentes “debaixo das escadas” como diz Ana Rita Cavaco?
Debaixo das escadas não. Acho que a bastonária usa alguns termos engraçados, mas ela tem razão. Se se souber hoje de manhã que o senhor primeiro-ministro à tarde vai visitar o hospital de Santa Maria, não lhe passa pela cabeça o que eles fazem. As instruções vêm de cima para baixo, a vários níveis. Tudo o que seja doentes na urgência em macas, nem que seja à espera de exames, é imediatamente internado. É prioridade absoluta. Já assisti a isto como médico no Hospital de São João. Ia lá um ministro ou um secretário de Estado e recebíamos instruções, tínhamos de dar alta aos doentes e os chefes de equipa caíam em cima de nós: se nós não internávamos, internavam eles. Foi por isso que logo na candidatura a bastonário comecei a defender as visitas surpresa, é o que faço.
Qual foi a última visita?
Foi a Gaia. Nunca anuncio com demasiada antecedência que vou a um hospital. Eu não sou o primeiro-ministro, mas se o bastonário vai visitar o hospital, tentam tê-lo mais direitinho. Se for o primeiro-ministro não é tentam, tem de estar, não há volta a dar.
A Secção Regional Sul da Ordem dos Médicos recebeu nas últimas semanas 80 declarações de isenção de responsabilidade por parte dos médicos, que alegam falta de meios. A direção nacional da Ordem apoia este protesto?
Estive a analisar os documentos e o que posso dizer é que os médicos são sempre responsáveis pelo que fazem, não entregam cédulas pessoais. O que devem fazer e faz parte do código deontológico é denunciar as situações anormais que estejam a acontecer, seja por falta de recursos humanos, seja por falta de materiais ou equipamentos. Têm de fazer isso não para se defenderem a eles mas para defenderem os doentes. Claro que ao fazerem essa denúncia, denunciam que não estão a trabalhar em condições ideais.
Mas a secção do Sul vai continuar este movimento?
Creio que vão continuar, mas tem de haver algum cuidado na forma como transmitimos a mensagem: os médicos podem ficar a pensar que ficam completamente ilibados de responsabilidades e não ficam.
Está quase a fazer um ano de mandato. O que o surpreendeu mais ao longo destes meses?
O que me surpreendeu mais em termos de política de saúde foi as coisas terem mudado pouco.
Estava mais otimista no início?
Estava. A nível interno conseguimos fazer algumas coisas interessantes, implementar o voto eletrónico, tornar a nossa revista menos onerosa —e tinha um orçamento de 450 mil euros/ano e vai nos 250 mil euros, queremos que seja autossustentável – temos um site novo. Internamente conseguimos renovar. Na nossa relação com o ministério, das questões que não têm impacto orçamental – nas palavras do nosso ministro, as que têm “neutralidade orçamental” – foi possível resolver algumas e outras estão em curso. Depois as coisas que não têm neutralidade orçamental, não andam para a frente porque o Ministério não quer. Fizemos propostas por exemplo para o serviço de urgência e está parada. Para os hospitais também. Para os CRI já saiu legislação mas a verdade é que não estão desenvolvidos. Nos cuidados primários já falámos. Há várias pequenas questões que não avançam.
Tem havido sucessivos apelos a maior financiamento na saúde e agora está lançado o debate em torno da Lei de Bases da Saúde. Sente que vai sair-se desse impasse?
Nós vamos avançar. Um dos planos para este ano é uma discussão ampla quer da Lei de Bases da Saúde quer das carreiras médicas, que têm sido muito maltratadas pelos sucessivos governos e são a base do SNS. Há uma coisa de que tenho obrigação como bastonário: tenho as minhas ideias sobre o serviço de saúde, mas cada médico tem as suas e acho que as ideias devem ser discutidas. Temos de renovar, reinventar, como diz o Presidente da República, significa que devemos pensar em conjunto. Não posso impor as minhas ideias, do debate é que vão surgir ideias.
Não tem havido muito debate?
As coisas em concreto não têm sido debatidas. Mesmo na revisão de Lei de Bases da Saúde, há proposta de António Arnaut e João Semedo, mas não foi debatida publicamente.
Concorda com as ideias como o fim das PPP na saúde, das taxas moderadoras?
Há ideias com que concordo, outras tenho dúvidas.
Por exemplo?
Tenho dúvidas de que de repente se altere completamente o serviço de saúde que existe em Portugal. Temos um serviço de saúde que tem por base o SNS mas que é mais ou menos misto. Imagine que amanhã toda a atividade privada parava. Era uma desgraça.
João Semedo defende que seria possível uma internalização daquilo que atualmente o SNS faz fora do Estado em duas legislaturas.
Acho que temos de reforçar. Se calhar o SNS não pode só cobrir 60% das despesas dos portuguesas com saúde, se calhar devia cobrir 80%, mas não é em duas legislaturas que vai cobrir 100%. O orçamento em vez de ser 5% do PIB passava a 10%. Poria como objetivo maior o reforço do serviço publico de saúde, que chegasse aos 80% e que a medicina privada ficasse complementar nas necessidades que vão existir sempre, mas não como agora, em que mais de 50% das análises são feitas no privado.
O papel de bastonário tem sido mais exigente do que imaginava?
Sim, não imaginei que tivesse tanto trabalho. Há muito trabalho burocrático. No ano passado saíram do conselho nacional cerca de 13 mil documentos. A reforma interna da Ordem também não é fácil, as pessoas são sempre um bocado resistentes às mudanças. Agora quero propor a criação de um fundo e apoio à formação médica. Já temos um fundo de solidariedade que apoia mais de 300 médicos em situação difícil, e penso que é vital avançar para o apoio à formação. O apoio da industria farmacêutica é cada vez menor e está mais limitado, a formação é cara e os vencimentos são mais baixos. É uma ideia simpática mas até as pessoas assinarem não é fácil… Os desafios internos estão complementados pelos externos, que esses são conhecidos e são muitos.