A Adoração dos Magos na florença dos médicis

«Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos vindos do Oriente. E perguntaram: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.”  […] E a estrela que tinham visto no Oriente ia adiante deles, até que,…

«Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos vindos do Oriente. E perguntaram: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.”  […] E a estrela que tinham visto no Oriente ia adiante deles, até que, chegando ao lugar onde estava o menino, parou. Ao ver a estrela , sentiram imensa alegria; e, entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, adoraram-no; e, abrindo os cofres, ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra.» (Mateus 2 : 1, 2, 9-12)

A Epifania – por vezes também referida por Teofania – tem o significado de manifestação ou aparição de carácter essencialmente divino e marca no dia 6 de janeiro uma das mais solenes festas do calendário litúrgico. A celebração da Epifania – mais antiga do que a do próprio 25 de dezembro como dia do nascimento de Cristo – confunde-se um pouco ao longo dos tempos com a própria festa do Natal, consoante os ritos. A Adoração dos Magos do Oriente, associada à festa da Epifania, foi um tema dileto dos pintores no final da Idade Média e no Renascimento. Permitiu-lhes expressar pictoricamente o fascínio pelo exótico e pela riqueza, contrapondo esta última, por antinomia, à extrema pobreza de «o Deus Menino, em palhas deitado».

Não poucas vezes, os encomendadores foram representados no papel de Magos do Oriente ou, pelo menos, assumiram lugar destacado na comitiva de Gaspar, Melchior e Baltazar. Com efeito, a coberto de um ato de humildade, ajoelhando-se perante o Deus Menino, de que melhor justificação poderiam dispor os patrícios de uma república – pensa-se já nos Strozzi, bem como nos Médicis, abastados, mas refinados, também, banqueiros da Florença de Quatrocentos – para «ascenderem à realeza»?

O tema ganhava uma relevância particular naquela cidade pois uma confraria de elite, a Compagnia de’Magi,  a mais prestigiosa de Florença, organizava uma sumptuosa procissão todos os cinco anos no Dia de Reis. Nela tomavam parte os corpos dirigentes e a oligarquia financeira, encenando a viagem dos Magos que o Evangelho descreve ter ocorrido entre Jerusalém (no caso, o Palácio da Senhoria) e Belém (no caso, a Igreja de S. Marcos, onde a confraria estava sediada).

Façamos deste Dia de Reis de 2018 um bom pretexto para revisitarmos três pinturas do Quattrocento florentino com o tema da Adoração dos Reis Magos e nelas reconhecermos figurados Palla Strozzi (1372-1462), Cosme de Médicis (1389-1469), ou o seu neto Lourenço, o Magnífico (1449-1492), quando não mesmo, adventiciamente, os próprios autores daquelas obras de arte.

Pouco mais de cinquenta anos separam a feitura da mais antiga, assinada e datada por Gentile da Fabriano (c. 1385-1427), em 1423, da mais recente, obra de Sandro Botticelli (1445-1510), executada entre 1475  e 1478. De data intermédia é uma pintura a fresco realizada cerca de  1459 por Benozzo Gozzoli (c. 1421-1497), para decorar a capela dos Magos, no palácio desenhado pelo arquiteto Michelozzo para Cosme de Médicis, o fundador da dinastia.

Se, por um lado, a pintura de Fabriano pode ser considerada como um dos pontos altos do Gótico Internacional – estilo então no seu ocaso, e que, na procura de formas alongadas e na ênfase que colocava no precioso, prezara de sobremaneira  a elegância cortesã -, a Adoração de Botticelli, por outro lado, é já um produto refinado do espírito humanista que florescia na corte dos Médicis. As artes plásticas têm o condão de revelar num relance o nível civilizacional da sociedade que as viu nascer. Não requererá uma análise prolongada reconhecer-se quanto evoluiu o microcosmos florentino no relativamente curto período de cinquenta anos, tempo, afinal, comensurável com a vida adulta de um ser humano.

O milagre florentino

Mas que anos viveu Florença naquele  meio século, que corresponde ao segundo e terceiro quartéis do Quattrocento! Banhada pelo Arno, a capital da Toscana era uma urbe que teria então uma população da ordem de cem mil habitantes. Ela compartilhou com muito poucas cidades ao longo da história da nossa Civilização Ocidental – pensamos de imediato na Atenas de Péricles, na Roma de Augusto,  na Paris de S. Luís e, meio milénio mais tarde, na mesma Paris do reinado de Luís XV,  na Londres Vitoriana e logo nos tornamos hesitantes em acrescentar a lista – o raro privilégio de terem apontado o caminho ao resto da Europa e, finalmente, ao Mundo.

Como pode explicar-se o milagre florentino? Antes de tudo, pelo relativo bem-estar material da comunidade, que ia de par com a riqueza ostensiva de uma elite esclarecida – não se tema reconhecê-lo. Favorável, também, a genética, pois a inteligência corria generosa, a rodos – quem aplicaria o epíteto de florentino a um lerdo de espírito? Não menos significativa terá sido a manutenção das hordas dos beócios fora de muros. É claro que as rivalidades e intrigas entre as várias potências da península itálica fervilharam, como era hábito. No entanto, durante uma boa parte do século XV, Florença foi poupada às angústias mortais de tantas outras cidades europeias. Pensa-se, por exemplo, em Constantinopla, que finalmente soçobraria em 1453 às hordas de Maomé II. Curiosamente, no decurso do segundo quartel do século, a queda iminente de Bizâncio favoreceu o Renascimento em Florença, que se revelou um refúgio de eleição para muitos intelectuais que trouxeram consigo o testemunho de uma civilização muito antiga, mas em vias de extinção. A contribuição deste influxo para a eclosão do Humanismo não pode ser demasiado enfatizada.

Um remate cruel

Mas nem tudo era pacífico intra muros. Muitas das críticas acerbas que Dante (1265-1321) lançara do exílio contra os seus concidadãos – gosto da ostentação  e do consumismo, mas também violência – mantinham plena atualidade. Assim, em 1478, numa conjura urdida por um clã rival dos Médicis, os Pazzi, que ao dinheiro juntavam a sobranceria aristocrática, Lourenço, o Magnífico, viu o seu irmão Juliano cair mortalmente apunhalado junto ao altar da catedral, tendo o próprio Lourenço escapado por pouco. A sua vendeta não se fez esperar e dela resultou uma nova encomenda a Botticelli: um fresco, hoje perdido, onde se representava a cena lúgubre e exemplar de vários Pazzi executados.

Mas o estado de equilíbrio civilizacional é eminentemente instável. Lourenço, assistido espiritualmente por Savonarola, e com Botticelli também presente, morre em 1492, com quarenta e três anos de idade. Esta morte dá o toque de finados para um período que não poderia perdurar muito. Os equilíbrios são rompidos na cidade e à expulsão dos Médicis (1494) segue-se o período da teocracia de Savonarola (1495-1498). Esta, vivida sob um fundo de histerismo religioso, constituiu um remate cruel para o Quattrocento florentino.

A península  italiana tornara-se, entretanto, o campo de batalha onde duas grandes potências, a Espanha e a França, iriam disputar a primazia europeia. Os Médicis  voltariam ao poder na cidade no decurso do século seguinte. Alcandorados ao título de grão-duques da Toscana, acabariam mesmo por inserir-se na linhagem real de França. Na sua pátria, no entanto, não seriam mais do que títeres, à vez, das potências  europeias dominantes. Eis um estado de dependência que desmerecia o orgulhoso espírito dos florentinos de antanho. Dante, certamente, consideraria tal sujeição como um opróbrio. Citemo-lo:

«Nessun maggior dolore
Che ricordarsi del tempo felice
Nella miseria»

(«Não há dor maior
do que recordar-se do tempo feliz
[quando se está] na miséria»)
Inferno, Canto V: 121-123.

Gentile da Fabriano, A Adoração dos Reis Magos

A pintura terá custado trinta mil florins, tornando-se, e bem de longe, a mais cara de Florença. Fabriano esmerou-se para que tal espantosa soma não parecesse mal gasta e o quadro ostenta uma riqueza preciosa, onde o ouro e o azul ultramarino foram utilizados generosamente. Que esta obra se destinasse a decorar o altar da capela familiar dos opulentos Strozzi na igreja da Santa Trindade, um templo de alguma severidade arquitetónica e que estava entregue ao cuidado dos Valombrosanos, um ramo Beneditino especialmente conhecido pela pobreza, só demonstra a maravilhosa inconsistência -¬ Deo gratias, neste caso ¬- do espírito humano.

Benozzo Gozzoli, O Cortejo dos Reis Magos

Este fresco é um dos melhores exemplos das surpresas que os interiores dos edifícios nos podem reservar na incomparável Itália. Sem qualquer dúvida, e para benefício da nossa civilização, os florentinos ganharam no decurso do Renascimento um verdadeiro horror vacui  perante as paredes nuas. Justamente orgulhoso da sua obra, Benozzo retratou-se inserido no cortejo. O seu barrete vermelho ostenta em letras de ouro a inscrição: OPUS BENOTII.