Nós, portugueses, contra eles, os outros

O princípio é basilar e inquestionável: um Estado de Direito democrático rege-se pela separação de poderes – legislativo, executivo e judicial.

Se o primeiro cumpre à Assembleia da República e o segundo ao Governo, o terceiro cabe aos Tribunais – não ao Ministério Público, nem ao magistrado A, B ou C, seja procurador ou juiz.

Os titulares de órgãos de soberania, a começar pelo Presidente da República, a quem a Constituição proclama como mais alto magistrado da Nação, têm por dever, porque sob juramento de honra, pautar o exercício das respetivas funções no estrito e rigoroso cumprimento desse princípio e dos demais que a Constituição e a Lei consagram.
O julgamento do caso Fizz, que se inicia na segunda-feira, e que tanta celeuma tem provocado porque ameaçador das históricas relações entre Portugal e Angola, tem colocado na primeira linha do debate público a questão da separação de poderes. Porque, desde logo, os políticos, alijando responsabilidades que lhes cumprem, têm publicamente reduzido a questão ao conforto da declaração de que ‘à política o que é da política e à Justiça o que é da Justiça’.
Erradamente.

Os Tribunais, no correto exercício da sua função de administração da justiça, têm de subordinar-se à Lei. E, como assim, aos tratados e acordos internacionais a que o Estado português se vincula.

Os Tribunais podem, e devem, interpretar a Lei. Mas não podem alterá-la ou deixar de aplicá-la, a não ser nos termos e no modo próprios que a Constituição consagra (quando, por exemplo, julgam a norma em causa inconstitucional).
Ora, independentemente da matéria de facto – e de falhas da investigação, de depoimentos mais ou menos contraditórios de visados, sejam arguidos ou testemunhas, da proteção que o Ministério Público tenha ou não dado a personalidades que há décadas se movem nos corredores da política e da Justiça portuguesas, e da alta finança e do empresariado, dos pré juízos que parecem evidentes, em abstrato mas também ad hominem, em relação a um titular de um alto cargo político de Angola –, o que está em causa não é a interferência do poder político na boa administração da justiça.

O que está em causa, desde logo e em primeira linha, é o desrespeito por parte do Estado português de um convénio de cooperação judiciária assinado por todos os Estados membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), para além das regras do Direito Internacional concernentes à imunidade de um titular de um alto cargo político de um Estado soberano.

À luz do Direito Internacional, só há uma razão para justificar que o Estado português não cumpra o que o acordo a que se vinculou determina: só pode negar-se ao envio do processo para outro Estado se este não der garantias de boa administração da justiça no caso concreto.

Ora, com os atropelos dos mais elementares direitos de um (presumível) arguido, bem pode até dizer-se que, in casu, a Justiça portuguesa é que não garante boa administração da… justiça. Desde logo pela singularidade de o despacho de pronúncia remeter para julgamento ‘todos os arguidos’, mesmo aqueles que assim são qualificados apesar de não terem sido sequer notificados – ainda por cima com a trapalhada de cartas rogatórias que se alega terem sido enviadas e não o foram.

João Lourenço tem toda a razão em exigir que o Estado português cumpra o convénio da cooperação judiciária a que se vinculou ou, de outro modo, que assuma a denúncia do mesmo convénio.

O Estado português e a Justiça portuguesa acaso se julgam acima dos outros Estados da CPLP?
Já agora, no processo que envolve um arguido da operação Lava Jato, o Estado português parece preparar-se para agir exatamente ao contrário e negar a extradição requerida pela Justiça brasileira de um cidadão que adquiriu agora a nacionalidade portuguesa.

Ou seja, a Justiça brasileira está a um passo de ver-se impedida de julgar o tal cidadão brasileiro, porque o Estado português não lhe reconhecerá esse direito, uma vez que o dito indivíduo a contas com a Justiça no Brasil passou (com uma rapidez inusual) a ter nacionalidade portuguesa.

Extraordinária a dualidade de critérios e a falta de senso da Justiça e do Estado português. Embora coerente com uma linha de pensamento não menos extraordinária, segundo a qual, para o Estado português, só a Justiça portuguesa é verdadeiramente confiável e garante da boa aplicação do Direito.

Será preciso relembrar-lhes uma vez mais o que verdadeiramente está em causa na operação Fizz? Será preciso relembrar-lhes a História e em particular o significado de independência e de soberania?

Angola vive momento histórico de consolidação da democracia, com um novo ciclo após a saída do seu líder histórico José Eduardo dos Santos – que, pelos vistos, tem vindo a aceitar bem melhor as mudanças em curso no seu país do que muito boa gente da chamada elite portuguesa.

Portugal tem obrigação de ajudar neste processo de desenvolvimento e crescimento de Angola.

E de meter definitivamente na gaveta os complexos neocolonialistas ou xenófobos que nunca tiveram razão de ser.
Para o bem de todos. De Portugal, de Angola e da CPLP.

Até porque a justiça só existe quando a balança tem os pratos equilibrados, sem pré juízos nem preconceitos.