Ricardo Baptista Leite: “Hoje no Bairro Alto ninguém sente que canábis é ilegal”

Ricardo Baptista Leite, médico e deputado, é um dos autores da proposta de legalização do consumo de canábis que vai ser discutida no congresso do PSD. Chamaram-lhe ‘Legalize’, para que não restem dúvidas. 

O PSD ter uma proposta temática a congresso com o tema ‘Legalize’ é algo histórico, não?

Tenho de ser honesto e dizer que sempre tive fortes reservas em relação a esta matéria. A minha formação como médico, os relatos de surtos psicóticos, sempre me deixaram algum receio. Hoje a evidência permite-nos perceber o que condiciona esses episódios, até os quadros de esquizofrenia em jovens adultos. O que fazemos é apresentar uma proposta a congresso com o objetivo de lançar a discussão do tema.

Saiu esta semana na revista científica da Ordem dos Médicos um estudo que compara as diferentes realidades de legalização da marijuana a nível internacional. Foi a preparação desta proposta?

Sim. Olhámos para os vários países onde já foi feita a experiência da legalização, desde logo Uruguai e depois, nos EUA, Colorado, Washington, Oregon e Alasca. Na Europa, não sendo uma legalização plena, temos em Espanha os clubes sociais e, na Holanda, as coffeeshops. A conclusão é que, do ponto de vista regulamentar, há lições a aprender: os riscos são mitigados se pudermos controlar o ambiente em que o consumo é feito. E é o consumo de grandes quantidades, com elevada concentração de THC, que está a associado a um maior risco de surtos psicóticos e quadros de esquizofrenia, sobretudo se consumidos numa idade muito precoce.

Propõem a legalização do consumo sem distinguir uso terapêutico ou recreativo, mas só para maiores de 21 anos. É uma proposta realista tendo em conta que muitos jovens consomem canábis mais cedo?

Neste momento o que temos é um cenário em que toda a gente tem acesso no mercado negro a produtos que não se sabe bem o que são e cuja potência tem vindo a aumentar. Podemos alegar que ter sido estabelecida a idade mínima de 18 anos para consumo de álcool também não impede que os jovens tenham acesso de forma ilegal…

Mas não são sobretudo os jovens que consomem canábis?

Aquilo que nos dizem os dados é que o grande consumo se faz entre a segunda, terceira e quarta década de vida. O que propomos é, garantindo-se o controlo da cadeia de produção – com as embalagens com alertas de saúde tal e qual como o tabaco -, um ambiente de consumo mais controlado. E antevemos isto num contexto em que há sensibilização associada, com linhas de apoio. Acreditamos que, assim, as pessoas começarão a encarar o mercado ilegal como tal. Hoje em dia uma pessoa vai ao Bairro Alto e ninguém sente que a canábis é ilegal, basicamente há um mercado não controlado. Há turistas que relatam comprar folha de louro prensado.

Propõem a venda nas farmácias. Os turistas também poderiam adquirir?

Defendemos um modelo de registo central. Qualquer pessoa poderia adquirir estando registada.

Previamente ou na farmácia?

Previamente. Teria de haver um portal online. E a razão do registo não é para controlar o consumo individual, é para garantir que a pessoa não compra mais do que é permitido pois haveria uma dose diária limite. Para início da discussão, poderemos ter como ponte de partida o que está previsto na legislação de descriminalização do consumo. Outra vantagem dessa informação seria, do ponto de vista analítico, perceber se há padrões de consumo que fogem à média, o que poderia guiar intervenções de saúde.

Como se compatibiliza esta proposta com o uso terapêutico que tem estado em discussão?

O uso terapêutico é, a meu ver, uma não questão. Se a questão é usar canábis como princípio ativo de medicamentos, há uma indústria do medicamento que já está regulamentada. A empresa submete o produto ao Infarmed e este aprova a entrada no mercado.

Mas foi esse o debate iniciado no Parlamento.

Estamos a assistir a um fingimento parlamentar do Bloco de Esquerda. Apresentam uma proposta quando o que querem é uma coisa completamente diferente.

A vossa proposta, ao admitir o uso recreativo, acaba por ir mais longe que as do BE e PAN.

Naturalmente que há pessoas que entendem que esta é uma questão de liberdades individuais. Para nós, é uma questão de evidências científicas, saúde pública, impacto económico e social. O que dizemos é ‘deixemo-nos de uma conversa de surdos e, se a legalização é o fim último, não vamos estar aqui com rodriguinhos e discutamos de forma fundamentada’. Há evidência que sustenta esta via da legalização, desde que muito bem regulamentada. 

O PSD esteve contra as propostas de uso terapêutico, embora Rui Rio tenha assumido ser favorável. Santana Lopes, pelo contrário, falou de uma ditadura moral de esquerda. A vossa proposta, que admite o uso recreativo, tem o apoio de Rio?

Não tivemos oportunidade de falar ainda. O congresso do PSD será o local ideal para iniciar esta discussão. Mas a posição do PSD no debate que já decorreu mantém-se: em termos medicinais, já existe uma entidade reguladora e, como tal, não se compreende a discussão. Há um consenso alargado, incluindo da Ordem dos Médicos, do uso para fins terapêuticos. Penso que este consenso deve ser usado para discutir o que pretendemos no longo prazo, até por uma razão, que é o que aconteceu na Califórnia. 

Houve abusos no uso terapêutico?

Sim. Legalizaram para fins medicinais há pelo menos uma década, porque pensaram que a sociedade não estava preparada para uma legalização plena. Isso deu origem a uma série de práticas abusivas, até médicas. Vi em Venice Beach pessoas que iam a uma consulta, diziam que andavam mais ansiosas e por 40 dólares recebiam o cartão que  dava acesso à compra. Portugal deve aproveitar estas experiências e não cometer os mesmos erros.

O cultivo em casa tem cabimento na vossa proposta?

Não nos pronunciamos. Eu não sou favorável: os modelos que melhor funcionaram foram os que regulamentaram toda a cadeia, da produção, à distribuição e venda. Com o autocultivo perdemos o controlo do primeiro passo. A evidência não nos permite ainda defender isso, o que não quer dizer que no futuro não possa ser diferente. Uma coisa que defendemos é que os impostos que viessem ser cobrados sobre este produto fossem usados para financiar mais investigação, além de campanhas de dissuasão.

Propõem a venda ao preço de rua. Porquê?

Propomos que a canábis, já taxada, deve ter o preço da canábis vendida na rua, que era 2,50/grama em 2015, de acordo com os estudos do SICAD. Mais uma vez isto decorre de lições de outras experiências: o Colorado fez as contas de modo a que o preço de custo mais o imposto estivesse ao nível do preço de rua. Washington achou que o consumidor estaria disponível a pagar mais pelo mercado legal. No estado de Washington, as pessoas continuaram a comprar no mercado negro, não se resolveu o problema. No Colorado, conseguiu acabar-se com a venda ilegal. Há quem defenda que o preço deve ser mais baixo, mas aí há o risco de promover o consumo. A nossa estratégia não é essa: é prevenir o consumo sempre que possível e mitigar os riscos para quem consome.

Não há o risco de, legalizando, as pessoas procurarem outras coisas pela simples ideia de que o fruto proibido é o mais apetecido?

O que nos diz a experiência é que quem consome canábis adquirida no mercado ilegal mais depressa evolui para ecstasy, sintéticos, heroína e cocaína. Em vez de ir comprar  a uma farmácia, num ambiente regulado, está a comprar à mesma pessoa que quer vender outras coisas. E depois há uma escalada de sensações. O que o nosso estudo demonstra claramente é que, no equilíbrio entre dependência e efeitos nefastos, a canábis é menos gravosa em muitas circunstâncias do que o álcool e tabaco, que são legais. Enquanto ecstasy, cocaína e heroína são sempre piores.

Admite que algum dia essas drogas possam ser também legalizadas?

Com a evidência que existe hoje seria uma profunda irresponsabilidade. Isto ao mesmo tempo que se verifica que, do ponto de vista judicial, as apreensões de canábis têm vindo a aumentar, mas são menores nas outras drogas. Com a legalização e mais impostos arrecadados, seria possível reforçar as forças policiais para que pudessem concentrar-se naquilo que de facto está a ter um impacto negativo na sociedade.

Calcularam quanto poderia valer este mercado?

Saiu há pouco tempo um estudo que apontava para 3,5 milhões de euros/ano em termos de impostos, sem ser muito claro se contabiliza apenas o mercado medicinal ou ambos. Serão seguramente vários milhões.

Na vossa proposta lembram que a canábis representa metade das receitas do mercado ilegal da droga.

Em 300 mil milhões, 150 mil milhões resultam da venda de canábis. Ao legalizar, teremos uma indústria nova que também ela pagará impostos ao Estado.

Estão a mexer num mundo que movimenta muito dinheiro. Já teve alguma ameaça? 

Até agora não tive nenhum contacto dessa natureza embora tenha tido alguns alertas de profissionais das áreas de segurança para ter algum cuidado, porque de facto é um espaço com muitos interesses instalados. 

Foi contactado pela PSP, PJ?

Prefiro não entrar em detalhes. Quem tem funções como deputado ou no partido, não pode aceitar que criminosos continuem a sua atividade. Estou plenamente convicto de que não podemos ter medo. 

Qual é a perspetiva depois da apresentação no congresso?

Se houver uma votação favorável, que é imprevisível, o próximo passo será apresentação à direção de bancada. Digo ‘se’ porque o PSD é um reflexo da sociedade, reflete os receios que eu próprio tinha antes de ler a evidência científica. 

E não pode haver a ideia de alguma cedência à esquerda?

Não vejo isto como uma questão ideológica. Sendo o PSD o partido que melhor reflete a sociedade, terá em parte aquela ideia histórica, que foi muito marcada pela guerra às drogas de Ronald Reagan, de que a via proibicionista é a única. Nuns casos é, noutros não. Se a proposta for aprovada, o presidente do partido tem uma base e pode trabalhar nela, mesmo se não for pode. Não é obrigado a fazer nada. Em 2007 apresentei uma moção ao congresso que foi aprovada: previa a criação de uma disciplina de cidadania e educação para a saúde e não se concretizou.

Não há autonomia para apresentar um projeto de lei no parlamento?

A meu ver, o melhor seria o presidente do partido lançar o debate, ouvir a sociedade em geral, os peritos, potenciais consumidores, pessoas  contra e havendo consenso de avançar, apresentar-se um projeto de lei.

Admite um projeto de lei esta legislatura ou a inclusão da medida no programa eleitoral do PSD?

Entre fazer-se este debate de forma séria e chegar-se ao ano de eleições, que é já em 2019, pode não dar tempo para haver um projeto de lei. No limite pode fazer parte do programa eleitoral, se houver concordância alargada no partido. Dependerá do líder partidário e da direção de bancada.

Os partidos mesmo quando estão de acordo, podem não estar de acordo por questões autorais. Imagina a esquerda a apoiar um projeto do PSD neste sentido?

O PCP claramente tem uma posição contra, mas mesmo em relação ao Partido Comunista o apelo é para que leiam a proposta do início ao fim. Até os mais conservadores verão que há aqui uma posição conservadora do ponto de vista regulamentar. Creio que há espaço para todos se sentirem confortáveis, mesmo o PCP. Já PS e o Bloco e os que têm apoiado este tema até agora, não vejo razão para não serem favoráveis. Não devemos fechar a porta à discussão. Mais importante do que quem fez a proposta é o resultado. O que para mim seria negativo era a abertura desta porta dar origem a uma legalização desenfreada sem regulamentação.

Não seria mais seguro para todos os consumidores acederem a drogas controladas?

Em termos de perigosidade e risco para a sociedade, a cocaína, o ecstasy e os sintéticos são de longe muito mais prejudiciais do que o álcool, tabaco e canábis. A legalização plena da canábis baixando-se a idade, não limitando as concentrações do produto, permitindo o autocultivo, também está demonstrado na ciência que teria uma perigosidade individual e social enorme e temos a obrigação de precaver esses riscos. É até aí que o Estado deve ir. 

O mercado da canábis legal tem estado a crescer em todo o mundo. Não tem receio que isso seja apontado como um dos motivos para um partido mais à direita se interessar agora por estas matérias? 

Francisco Sá Carneiro quando apresentou o PSD anunciou um partido de centro-esquerda. Eu quando aderi ao PSD, já estudante universitário, li antes todos os manifestos partidários, do PCP ao CDS, só não havia ainda o BE. E aderi por me identificar com essa visão do mundo. Hoje vejo-me como pessoa de centro, se houver ideias úteis à esquerda, fantástico. 

Mas admite que o Estado assumisse a produção?

Poderia ser um caminho, foi o seguido pelo Uruguai. Mas contraria o que já está a ser seguido no país: já há pelo menos duas empresas privadas a produzir canábis em Portugal para exportação. Aquilo que a experiência nos tem demonstrado é que a iniciativa privada consegue, por via da inovação, encontrar mais rapidamente soluções do que haver um produtor único, neste caso o Estado, sem concorrência. Creio que é neste equilíbrio entre esquerda e direita que a social-democracia pode atingir o seu esplendor.

Não poderá haver a leitura de que o partido pode estar a ser populista, a agradar aos mais jovens?

Seria a primeira vez que se usava a ciência para ser populista. Tipicamente os populistas usam dados falsos, pseudociência, fake news para afirmarem as suas posições. O nosso caminho foi procurar a melhor evidência e construir uma solução política com base nisso. O timing é este porque só agora começa a haver evidências suficientes dos países que já legalizaram a canábis para fins recreativos. Há três anos não havia dados tão robustos. E levamos esta questão agora a congresso porque a discussão está em cima da mesa e avançar-se com uma legalização medicinal pode ter efeitos nefastos como na Califórnia.

Vai apresentar a proposta a Rui Rio antes do congresso do PSD?

Se me cruzar com o Dr. Rui Rio, terei todo o gosto de a apresentar em detalhe. Mas penso que quando os militantes têm ideias devem aproveitar os encontros nacionais e congressos. É importante que seja um debate em que todos possam participar e não monólogos. A apresentação de uma proposta temática tem os seus riscos, estamos a expor-nos à votação.

Para mais chamando-lhe ‘Legalize’. Tem um tom quase provocatório.

É um tom que chama a atenção para a proposta mas também deixa claro que esta é uma proposta de legalização plena, para não confundir com o que está em discussão na AR. Queremos que a discussão ocorra. Há uma rede de pessoas interessadas nesta matéria e que estão sedentas de factos. Há dois anos saiu uma capa da Economist sobre a necessidade de legalizar. Na altura não tinha uma posição formulada mas ler os argumentos fez-me ver que não podia ter uma posição cega. Partimos para essa revisão de literatura de forma completamente aberta. Se a evidência tivesse dito não, a proposta seria contra. Mas o que a evidência nos diz é que legalizar é o melhor caminho, desde que devidamente regulamentado. Admito que a nossa proposta possa não ser definitiva.

Mas põe limites?

Uma proposta sem regulamentação, de compra no supermercado, por aí fora, seria contra porque os riscos ultrapassariam muito qualquer benefício de saúde, do ponto de vista económico ou jurídico.

Experimentou alguma vez canábis?

Uma vez e não gostei. E nunca fumei. Sou um defensor de fazermos tudo para mitigar os consumos prejudiciais.

Num mundo ideal, seria a favor de uma proibição do tabaco?

A verdade é que as políticas aplicadas têm sido insuficientes. As diretivas europeias têm ido no sentido de estrangular o consumo e isso faz sentido: grande parte da população sabe que o tabaco faz mal, até que provoca cancro, mas muitas não deixam de fumar ou de experimentar. O que a evidência nos diz é que um ambiente que torne o ato de fumar quase antissocial, como acontece no Canadá, tem um efeito dissuasor mais importante do que a sensibilização.  Creio será muito difícil seguir a via proibicionista e não seria sensato. Quando isso aconteceu, criaram-se consumos ilegais e aumentaram os circuitos de ilegalidade. Mas podemos dissuadir o consumo e canalizar cada vez mais as receitas dos impostos para programas de dissuasão em vez de entrarem no buraco negro do Estado. Há um longo caminho a percorrer num país onde tabaco e álcool fazem muito parte dos usos e costumes.

Lembrou a sua adesão ao PSD. Como vê o novo ciclo de Rui Rio?

Passos Coelho ficará para a história como o líder do PSD que conseguiu liderar uma coligação num dos momentos mais difíceis do país, tirar o país da bancarrota e lançar as bases do crescimento. Dito isto, a saída de Passos Coelho é o fim de uma era. Depois de uma disputa interna com candidatos fortíssimos, o dr. Rui Rio tem uma oportunidade extraordinária para construir, a partir do congresso, uma verdadeira alternativa para o país. Acredito que traz algo em que líderes anteriores não tinham tanta experiência, que é ter sido presidente de câmara. Essa visão do poder local, e de perceber que a política faz sentido quando tem impacto na vida das pessoas, pode ser diferenciadora.

A liderança foi disputada por dois veteranos. Onde estão as camadas mais jovens do partido?

O próprio congresso que aí vem demonstra que há uma enorme vitalidade, com propostas temáticas e de revisão estatutária, muitas apresentadas por gerações mais jovens, nascidas depois da fundação do PSD ou, no meu caso, nascido no ano em que Sá Carneiro foi morto. Há muitos jovens que estão a afirmar-se. Rui Rio, com a experiência que tem, terá aqui uma oportunidade para granjear diferentes gerações. 

Foi sondado para algum lugar nesta renovação de Rui Rio?

Não, tenho estado concentrado na proposta temática para a apresentar da forma mais responsável. Penso que todos temos de estar empenhados e contribuir com os órgãos que saírem do congresso na construção do programa eleitoral e de uma alternativa. 

Já admitindo um bloco central?

O PSD tem de se preparar para ser alternativa à atual governação assumindo a liderança. Falar em cenários pós-eleitorais como esse parece-me despropositado. O foco tem de estar numa visão alternativa para o país. Os portugueses têm de perceber porque é que devem votar no PSD e não no PS. Como se viu no último ato eleitoral, ninguém pode prever nada. Foi aberta uma caixa de Pandora com a criação da geringonça. Todos os cenários podem ser colocados em cima da mesa. A única coisa em que temos de ter firmeza absoluta é nas nossas convicções e ideias.