À cabeça de uma das duas ou três entrevistas que Herberto Helder concedeu ou de que se encarregou, saída em 1990, ele faz saber que a obra que produziu ao longo das décadas e que foi alcançando uma virulenta coesão era a de “um autor de folhetos”, alguém que para chegar ao poema o fazia seguindo a suspeita de que, ao escrevê-lo, algo fosse ser desencadeado, um acontecimento, “uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará tudo”.
É difícil hoje pedir muito a um poema, esperar grandes coisas quando os poetas são, tantas vezes, os primeiros a aliviar-se de responsabilidades, já nem digo trocar expetativas, baralhar os horizontes do leitor, emaranhar-lhe as paisagens, mas começam logo por avançar o disclaimer: aqui não se vai passar nada. E para frustrar de antemão aqueles que vêm com grandes naus, trocam o mar por um chafariz, desatam a abandalhar o ambiente. Mesmo que as coisas estejam muito mal, ainda é como o outro dizia: “Somos cada vez menos. E não nos restam munições. Mas eles não sabem.” (Federico Williams) Ao menos isso: um mínimo de tática, um grão último de pólvora usada com estratégia, nem que seja a dignidade que se respira entre majestosas ruínas, para arrancar delas “uma forma de meditação sobre uma sociedade que já não se considera a si mesma vivendo num tempo de continuidade, antes num tempo de contingência” (María Gainza). Isto para que se possa resistir mais algum tempo. A quem possa interessar; ganham-se vidas nisso.
Em tempos, por questões de rigor, de empenhada e extrema autovigilância, coube aos poetas descobrir a quantidade em que (para cada um deles) haveria de esgotar-se a qualidade. Como Herberto num outro texto, uns anos mais tarde, referia, dos dois ou três poetas maiores em que fora averiguar – esses exemplos bastante satisfatórios mas intransferíveis –, “os não muitos poemas chegavam para encher o mundo, e com eles os seus autores esgotavam-no, ao mundo, e esgotavam-se a si mesmos no mundo”. Era uma questão, primeira e finalmente, de intensidade. Isto, claro, adiantava o poeta, nesses casos em que a escrita é “empreendida com total atenção do ser”.
Hoje há outras razões, que não vamos aqui esmiuçar, mas dessas mais de ordem da tal contingência, das facilidades, do em vez de se mostrar disposto a conquistar posições, vir raspar o tacho, safar-se das migalhas que a toalha posta à mesa de outros tempos solta se a sacudirmos.
E isto da quantidade de poemas permitida a um autor, apuramento que cumpre ao poeta, e em que o editor não deve deixar de ser tido como corresponsável, vem a propósito de um folheto publicado faz pouco entre nós e que nos diz da intensidade que devíamos exigir de tais coisas. A dita plaquette, como hoje lhe chamamos, a fazer biquinho à francês, ganhou enorme preponderância, tanto pelo modo como hoje os editores se mostram avessos ao risco de edições mais dispendiosas como pela pululante urgência dos poetas que, feitos pombos, gostam de cobrir bem a praça e cagam sem particular denodo, com uma periodicidade que cansa. Vai tudo, ou quase, como é óbvio, parar muito longe, a um deserto a que, anos depois, nem grandes expedições conseguem ir lá dar.
“Ao Largo de Delos” é outra coisa. O seu autor, Ramiro S. Osório, pouco tem feito para encher a praça. Boa parte da vida nem por cá andou. E tem um percurso curioso, desses que não pretendem ombrear com os 12 trabalhos de Hércules, trocando o lado heroico pela fúria do rato de bibliotecas, mas que deixa pontos luminosos à superfície de um desconchavo que, por si só, tem mais aspeto de vida do que de projeto, carreira e mais horrores assim.
Publicado em janeiro, o caderninho agrafado fica perto das 50 páginas, e lê–se como quem leva à boca uma máscara de oxigénio e chupa golpes de ar com um alto débito desse elemento vital. Bastante breves, os poemas surgem emparceirados, com os que se dão a ler à esquerda, e em itálico, traficando arrebatamentos bruscos e reparos ternos com raiz na “noite grega”, trazendo lembranças da zona dos mitos, traçando uma simetria ardente com a sua própria biografia, e os que se nos dão à direita jogam mais pela confidência melancólica, alusões intimistas, questões delicadas, mas também o tipo de achados líricos que soam como ardorosos pontos finais ou, até, orações fúnebres. Em tão poucas páginas, com recursos aparentemente tão escassos, há, na verdade, de tudo.
Da direita: “entraste-me pela janela/ assobiando poetas renascentistas/ ingleses// o que eu vivi não tem tradução// voos de longo curso para lá e para cá/ crepúsculos de caracacá/ fulgor de tuas sardas// fechados no imenso casarão/ magnanimamente sem nada que fazer// senão amor e amoras/ durante um verão inteiro/ eterno”. E da esquerda:“faltam-nos da grécia notas do banal// simples anotações anódinas/ do dia a dia/ alheias a toda e qualquer posteridade// e no entanto/ só elas poderiam ensinar-nos quem somos”.
Este livro não tem uma chave única, nem só uma entrada e percurso, é uma descoberta dos ecos que fazem da casa do fim um despertador de evocações sensíveis, simetrias compassivas: “renasce a noite/ morna/ na morte// seu sintoma é a flor/ vermelha/ entre tuas oferecidas/ pétalas”. Damos pela morte como esse lugar apercebido que já nos obriga a alguns preparos, mudanças pouco ruidosas, mas ainda assim. E há o desdobrar daquilo que ficou sem tempo, a doce lamentação desses percalços que aos imortais talvez nem ocorram: “já morrerei sem saber/ de onde nasce/ no deserto/ o barulho do vento”. Há tempo para a vida propriamente dita, que talvez não possa ser reconhecida senão nesses frames que sobreviveram ao desgaste do filme: “tu foste a primeira/ a lançar-me a primeira flor// estávamos a passear à beira do canal/ em corinto/ ajoelhaste sem avisar/ e arrancaste para mim um narciso// ninguém conseguiu inventar nada mais bonito/ do que roubar uma única flor// pálida/ grega/ adolescente”.
O livro é uma beleza, um assombro, uma coisa fácil de perder. Do que antes já nos dera a conhecer, persiste aqui “a fluência da descontinuidade” que Jorge Listopad detetou já no primeiro livro de Osório (“Superstrass”, editado na Moraes, em 1976). Mas acabou-se a relação deformadora, grotesca por gosto, entre sujeito-objeto, e a “histeria tranquila”, os bamboleios lúdicos dão agora lugar a esse compromisso final de um homem consigo mesmo, com a sua virtude mais despretensiosa, e que nos soa como se tivesse “sotaque divino”. Diz-nos Osório que a única poesia que frequenta é essa, a que tem sotaque divino. Diz-nos também que “a verdade tem um cheiro/ que não engana”, e que é isso o que distingue a poesia de outras formas ornamentadas de mentir. “[S]ou íntimo dos deuses”, diz–nos ainda. E, por uma vez, das tantas que já o ouvimos, não nos soa a gabarolice, a um dito que padece de mera afetação “poética”.