Júri privilegiou currículos televisivos em concurso público de apoio ao cinema

O setor está perplexo com os resultados do programa de apoios à produção de documentários cinematográficos, em que vê um ‘um take-over das televisões sobre o financiamento’. Mais um capítulo na polémica da nomeação dos júris, na semana em que o Governo aprovou uma revisão à Lei do Cinema que, para muitos, continua insatisfatória.

Os resultados provisórios do concurso para o apoio à produção de documentários cinematográficos estão a gerar perplexidade no setor. Isto porque, notam árias fontes com acesso aos resultados, na sua avaliação o júri valorizou sistematicamente percursos na área televisiva, sobre a do cinema. Uma incongruência que, apurou o SOL, levou alguns dos realizadores e produtores candidatos a requererem a anulação do concurso e a substituição dos jurados para uma nova avaliação das candidaturas, alegando um incumprimento grosseiro dos regulamentos, que estabelecem uma distinção clara entre as áreas do cinema e do audiovisual.

A polémica surge numa altura em que o Governo aprova a há muito prometida revisão ao decreto-lei n.º 124/2013, que define os procedimentos para a nomeação dos júris dos concursos para os apoios do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). Durante o Governo de Passos essa responsabilidade fora transferida do ICA para a SECA (Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual), um órgão consultivo do Conselho Nacional de Cultura em que têm assento representantes do setor mas também os operadores de televisão e de distribuição. Desde que entrou em vigor, o decreto-lei tem vindo a ser contestado por realizadores, produtores e estruturas do cinema, que continuam insatisfeitos com a revisão agora aprovada, uma vez que a SECA se mantém como órgão consultivo no processo.

A revisão ao diploma foi aprovada na quinta-feira, um dia depois de ter terminado a fase de audiência de interessados para o concurso em questão e em que o SOL questionou a tutela sobre os resultados do concurso em questão. O gabinete do secretário de Estado Miguel Honrado remeteu qualquer esclarecimento para o ICA, que respondeu apenas que, dada a fase em que se encontra o concurso, não considerava «oportuno fazer quaisquer comentários».

O problema dos resultados

Acácio de Almeida, Susana Sousa Dias e Catarina Mourão estão entre os realizadores que conseguiram apoio para as suas obras de cinema documental. Mas a análise das avaliações do júri, a que o SOL teve acesso, mostra que outros realizadores com percursos no cinema internacionalmente reconhecidos foram prejudicados na avaliação dos currículos, em relação a candidatos sobretudo ligados ao audiovisual.

Perante a indignação de realizadores e produtores que apresentaram algumas das 78 candidaturas avaliadas, Luís Urbano, presidente da PCIA (Produtores de Cinema Independente Associados), mostrou-se «muito preocupado» com os resultados, vendo neles um «take over por parte das televisões sobre o envelope de financiamento do ICA destinado a apoiar a produção cinematográfica».

Sublinhando que em nenhum outro país ou concurso público em Portugal, a legislação entrega a partes interessadas a nomeação dos jurados, Urbano, também representante da designada ‘plataforma do cinema’, que desde a tomada de posse da atual tutela vem exigindo que se devolva ao ICA o poder de escolha dos jurados na totalidade, refere-se à SECA como um «colégio em que têm assento todos os empreiteiros ligados à quase-indústria do cinema e do audiovisual português».

O que dizem os regulamentos

Os critérios estabelecidos para a avaliação das obras a concurso preveem pontuações distintas para três aspetos: qualidade e potencial artístico do projeto, currículo do realizador e currículo da entidade produtora. Nestes dois últimos devem ser tidas em conta as «obras anteriormente realizadas, com indicação das obras estreadas comercialmente; seleções oficiais, prémios e menções especialmente relevantes obtidos pelas obras anteriores do realizador em festivais de cinema» e a «experiência profissional anterior na área do cinema ou áreas conexas». No caso das produtoras, este último ponto é substituído pelos resultados de exploração «nacionais e internacionais de obras cinematográficas anteriormente produzidas».

Partindo destes critérios, o SOL identificou vários exemplos que justificam as críticas aos resultados, em que Urbano vê «o desvirtuamento completo» dos regulamentos para a atribuição de dinheiros públicos à produção cinematográfica.

Os argumentos dos jurados

O caso de Salomé Lamas é um dos que deixarão menos dúvidas. Presença recorrente no Festival de Cinema de Berlim e em vários outros conceituados festivais internacionais, a realizadora obteve, na alínea correspondente à avaliação do currículo, a pontuação de 6,5 (em 10). Que o júri justifica com a realização «de documentários com exibição em televisão nacional», sobrepondo esse critério à seleção de obras da realizadora para «vários festivais de referência donde se destaca a Berlinale».

Já no currículo da realizadora Cristina Ferreira Gomes é destacada a «experiência no audiovisual» e a realização de documentários, «alguns selecionados para festivais» e exibidos na RTP.

O júri avaliou também em 6,5 o currículo de Filipa César, cuja mais recente longa documental foi selecionada para Berlim, de novo, e que tem marcado presença noutros reputados festivais nacionais e internacionais, com um prémio de melhor filme no Curtas de Vila do Conde. Mariana Gaivão, que possui «currículo na montagem de filmes de relevo» (como São Jorge, de Marco Martins) ou o prémio de Melhor Curta-Metragem Internacional no Festival du Noveau Cinéma de Montreal, teve na avaliação do seu percurso a pontuação de 4,5.

Já o realizador António Borges Correia, que teve um filme premiado no IndieLisboa em 2015 mas conta, sobretudo, com experiência na realização de telenovelas e telefilmes também obteve 6,5.

As candidaturas apresentadas por estes últimos mereceram avaliações globais que as colocam em posições elegíveis para receber apoios à produção dos seus projetos. Salomé Lamas, Filipa César, Mariana Gaivão não.

«Júris nomeados pela SECA dão nisto. É importante sublinhar que o que temos neste concurso são júris em grande parte ligados às televisões, sendo este um concurso de apoio a documentários cinematográficos», comenta ainda Luís Urbano, produtor de filmes como Tabu ou As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes. «Quando vemos que autores com uma reputação incontornável a nível internacional como a Filipa César ou a Salomé Lamas não servem porque a sua obra não tem grande historial de venda para canais de televisão, percebemos que há aqui um enorme equívoco, que vem não só de um desconhecimento do que é o documentário cinematográfico mas também de um desrespeito aos próprios regulamentos».

O júri do concurso em questão é composto pela investigadora Helena Santos, Luís Marques, ex-jornalista e ex-administrador da RTP e da SIC, Maria São José Santos Ribeiro, diretora de produção, conteúdos e grelhas do serviço internacional da RTP, e Maria Teresa de Almeida Maia e Carmo, jornalista e professora universitária.

Confusões de conceitos

À falta de coerência das pontuações atribuídas aos currículos há que juntar repetidas confusões entre os conceitos de cinema e de audiovisual, denunciam Luís Urbano e outras fontes ouvidas pelo SOL. Sobre a Newtalks – Comunicação Lda, escreve o júri tratar-se de uma «produtora de conteúdos, incluindo cinema (para televisão)». Já a Fredericos é referida como uma «plataforma de conteúdos média e audiovisual», com «alguma experiência no trabalho documental e de registo vídeo e cinematográfico institucional, sobretudo no âmbito regional».

Note-se que, independente do programa de apoio ao cinema, que consigna a este subprograma de documentários cinematográficos 800 mil euros a atribuir a um máximo de dez projetos, existe um programa de apoio específico do audiovisual e multimédia que contempla a produção de obras de ficção, documentários (estes sim, destinados ao formato televisivo ou audiovisual), séries e animações.