Rangel e a sombra de Sócrates

Os processos de Rui Rangel e José Sócrates parecem tirados a papel químico. Os mesmos esquemas de ocultação do dinheiro, a utilização de testas-de-ferro, o recurso aos ‘serviços’ das ex-mulheres ou de companheiras, o pagamento de despesas pessoais por terceiros. É isso que confirma o despacho do Ministério Público a que o SOL  teve acesso.

O parto da filha mais nova de Rui Rangel foi pago pelo filho de José Santos Martins, o advogado que os investigadores da Operação Lex suspeitam de ser o testa-de-ferro do juiz desembargador.

A atual companheira de Rangel, Rita Figueira, teve a criança no Hospital dos Lusíadas, em 2012, mas a conta – €3.230 euros – acabou por ser paga pelo advogado via transferência bancária. Em 2012, para além do pagamento do parto de Rita, Bernardo pagou ainda as faturas da TMN de Rui Rangel e prestações do seu BMW.

Aliás, foi Rita Figueira que, numa conversa com o pai, acabou por denunciar o alegado esquema do magistrado que, segundo o Ministério Público (MP), se servia do cargo para influenciar decisões judiciais a troco de contrapartidas.
Rita Figueira, ela própria jurista na Câmara Municipal de Lisboa, não seria, assim, alheia à vida financeira de Rangel. Em 2017, com a investigação em curso e as escutas ativas, acabaria por resumir numa conversa com o pai, Albertino Figueira, o modus operandi  do juiz – que recorreria ao sistema eletrónico de distribuição de processos no Tribunal da Relação de Lisboa através de «um juiz de sua confiança». Durante a conversa, a mulher deu aos investigadores as coordenadas do guardião do dinheiro: «Todo o dinheiro do Rui está nas contas do filho de Santos Martins».

900 mil euros de clientes

Para os investigadores da Operação Lex, este tipo de pagamento de despesas da esfera doméstica do juiz desembargador através de Santos Martins fazia parte dos expedientes a que a dupla recorria para camuflar a origem criminosa do dinheiro. O MP suspeita que, entre 2007 e 2017, Rui Rangel recebeu cerca de 900 mil euros de ‘clientes’ a contas com a Justiça e a quem garantia a absolvição nos respetivos processos.

Um dos peões fundamentais do engenho seria um oficial de justiça, Octávio Correia, do Tribunal da Relação de Lisboa, suspeito de ser um dos intermediários entre o juiz e os angariadores de clientes. 

A análise financeira do MP centra-se, por enquanto, nos anos de 2012 a 2015. Só em 2012, nas contas de Octávio Correia – mais conhecido por ‘Otavinho’ e que juntamente com a esposa tinha um rendimento anual de pouco mais de 20 mil euros – foram depositados em numerário 55 mil euros. No ano seguinte, recebeu outros 40 mil euros na sua conta e em 2014 e 2015 um total de 100 mil – 50 mil euros em cada ano. Já Rangel, só em 2015, recebeu um aconchego financeiro de quase oitenta mil euros, apenas em dinheiro vivo.

Esquema para não deixar rasto

Para não deixar rasto, a forma de liquidar os préstimos do juiz obedecia a um esquema bastante pueril para quem fizera carreira a lidar com a pequena e alta criminalidade. 

Os 16 arguidos suspeitos de terem beneficiado do esquema montado pelo juiz faziam chegar as rendas paralelas de Rangel diretamente à esfera de Santos Martins. Este, por sua vez, passava-as em notas ao magistrado ou a pessoas da sua confiança, como as suas ex-companheiras. Ou então eram os próprios arguidos quem lhe pagava as despesas correntes, como a mensalidade da casa, água, luz e outras miudezas.

O amadorismo do grupo acabou por traí-los. A 30 de maio, Santos Martins conversava com um dos supostos ‘clientes’ quando decidiu desabafar um pouco sobre o que se estava a passar: o advogado confidenciou que Rangel tinha «a vida toda enredada» e, se caísse, também ele cairia. Ia ser «uma grande confusão», asseverou Santos Martins.

Para a investigação, esta escuta telefónica é considerada fundamental para perceber que este esquema era sistemático e retratava um autêntico mercado e tráfico de influências.

‘Deposita €1 300 na conta do Rui’

Fátima Galante, com quem Rui Rangel ainda é casado, é outra das peças fundamentais neste esquema. Sendo juíza numa secção civil do Tribunal da Relação de Lisboa (neste momento já foi promovida ao Supremo, embora com o cargo suspenso), é suspeita de ajudar o magistrado a redigir acórdãos e a dissimular o dinheiro vindo dos ‘clientes’, já que as quantias eram depositadas numa conta conjunta titulada por ambos. 

Vários telefonemas e mensagens entre os dois magistrados comprovam este entendimento, que era compensado com contrapartidas monetárias. «Papi, já enviei relatório do 2.º acórdão», lê-se numa SMS enviada por Galante a Rangel, no início de julho do ano passado. E no final desse mês, a juíza manda uma mensagem a Santos Martins a exigir o depósito de mais de 1000 euros na conta do seu ex-companheiro, para fazer face às despesas domésticas: «Urgente. Deposita 1 300 euros na conta do Rui porque vêm contas para trás incluindo a eletricidade». Galante pede ainda outro depósito de 3500 euros, para poder pagar «o empreiteiro da casa do Algarve. Ambos têm de ser feitos hoje».

E no final do ano passado, mais precisamente em novembro, Santos Martins liga à companheira de Rangel e diz-lhe que tem estado empenhado em conseguir 2.600 euros junto de clientes, «para lhe pagar a empregada, a renda e o telefone». E acrescenta: «Até lhes forneci a sua referência de Multibanco para que paguem o seu telemóvel».

Os clientes e angariadores

Este mercado tinha diversos intermediários. Havia vários ‘clientes’ a quem Rangel garantia absolvição ou a aceleração de determinados processos. 

Um dos mais conhecidos é o empresário José Veiga, o homem investigado na Operação Rota do Atlântico. E terá sido justamente durante esta investigação que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) encontrou indícios de crimes que envolvem Rui Rangel. 

Os investigadores encontraram milhares de euros provenientes de Veiga na conta do também arguido Bernardo Santos Martins, filho de José Santos Martins. A investigação acredita que este dinheiro tinha como destino Rui Rangel. Como refere a imprensa, os momentos em que são feitas as transferências de Bernardo Santos Martins para a conta do magistrado coincidem com duas situações: a altura em que Veiga envia a Santos Martins o recurso que ia apresentar na Relação e a absolvição do empresário pelo tribunal superior. Para o MP, até 2014, as quantias depositadas nas contas de Octávio Correia e Rangel estão relacionadas com Veiga.

Outro dos principais clientes é Luís Filipe Vieira. O presidente do Benfica, segundo o MP, terá pedido a Rangel que intercedesse pelo filho, que tinha uma decisão pendente no Tribunal de Sintra, oferecendo-lhe em contrapartida cargos no clube da Luz. Pedro Sousa, ex-assessor do Sporting e atual comentador da TVI, e Natércia Pina, dirigente do PSD Oeiras, são outros dois nomes conhecidos que fazem parte da carteira de clientes do magistrado.

Mas estas pessoas não pediam ajuda diretamente a Rui Rangel – o papel dos angariadores era precisamente fazer a ponte entre o magistrado e as pessoas que queriam recorrer aos seus serviços e ver os seus processos agilizados. Para além de Sousa Martins, o ex-presidente da Federação Portuguesa de Futebol e advogado, João Rodrigues, o dirigente desportivo responsável por fazer a ligação entre Rangel e Luís Filipe Vieira, Fernando Tavares, e o advogado Jorge Barroso são suspeitos de desempenhar o papel de angariadores neste esquema.

A investigação ainda vai no adro. A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou na semana passada a realização de buscas ao empresário Álvaro Sobrinho, no âmbito desta operação. Segundo a imprensa, o ex-banqueiro é suspeito de ter subornado Rui Rangel através do seu advogado João Rodrigues, mas ainda não foi constituído arguido.

Rangel vs. Carlos Alexandre

Em causa está um caso de 2015, em que o juiz Rangel devolveu a Sobrinho 30 imóveis no valor de 80 milhões – que tinham sido arrestados num processo de branqueamento de capitais. A decisão do arresto tinha sido tomada pelo juiz Carlos Alexandre, na sequência de uma investigação do DCIAP.

A apreensão dos seus bens foi ordenada neste processo quase uma dezena de vezes, mas diferentes coletivos do Tribunal da Relação acabaram por confirmar o primeiro acórdão refutando qualquer indícios de crimes e revogando os arrestos. 

Numa das decisões, o tribunal superior considerou mesmo que os fundamentos do MP eram «repetidamente idênticos» a outros já decididos.