A aranha – uma história verídica

Qual é a probabilidade de uma aranha nos pousar no braço quando estamos a ler um texto intitulado ‘The Spider’?

primeira coisa que me vem à cabeça quando penso em Máximo Gorki é um comentário que ouvi sobre A Mãe. Embora seja considerada por muitos a sua obra-prima, uma pessoa em cujo juízo confio garantiu-me que não passa de um livro «vulgar». Isso, somado ao facto de Gorki se ter tornado a certa altura o escritor oficial do regime comunista na União Soviética, o que lhe permitiu gozar de benesses só ao alcance de um círculo muito restrito de privilegiados (como férias em Capri), contribuiu para que eu ficasse dele com uma impressão negativa.

Porém, com o tempo (e com leituras que ele me trouxe) a minha opinião foi-se modificando.

A infância de Gorki (nascido em 1868 como Alexei Peshkov) inspira piedade. Órfão de pai, ficou a viver com os avós em Nijni Novgorod, num ambiente miserável marcado pela sujidade, pela brutalidade e pelo alcoolismo. Aos nove anos já tinha de trabalhar, resgatando dos caixotes do lixo tudo o que pudesse ter algum valor. Depois do pai, foi a vez de a sua mãe morrer (de fome), quando ele tinha 11 anos. O avô expulsou-o de casa e mandou-o fazer-se à vida.

«Trabalhou a lavar pratos num barco a vapor, como estivador, como guarda, como ajudante de sapateiro, como aprendiz de desenhador, como pintor de ícones, e finalmente como padeiro em Kazan, onde Romas [ciganos] o encontraram e se apiedaram do rapaz depois de ele ter tentado suicidar-se com um tiro no peito», conta Orlando Figes na sua História da Revolução Russa, A Tragédia de um Povo.

O mesmo Figes recorre frequentemente a textos de Gorki para mostrar como o escritor reagiu com profunda repulsa ao curso dos acontecimentos de 1917, que estariam na origem da ditadura bolchevique e da Guerra Civil.
Citarei apenas dois exemplos.

«Uma revolução só é uma revolução quando se ergue como uma expressão natural e poderosa das forças criativas de um povo. Se, todavia, a revolução é apenas o libertar dos instintos do povo acumulados através da escravatura e da opressão, então não é uma revolução mas apenas um motim de ódio e malícia, é incapaz de mudar as nossas vidas mas apenas pode levar à amargura e à maldade», escrevia Gorki no primeiro aniversário da Revolução de Outubro. Antes disso, já denunciara corajosamente na sua coluna do Novaia zhizn’:«Lenine e Trotsky[…] já ficaram intoxicados com o veneno imundo do poder, e isto é mostrado pela sua atitude face à liberdade de expressão, ao indivíduo e a todas as liberdades civis por que a democracia se bateu».

Outra leitura que contribuiu para a minha mudança de opinião foi ‘Gorky’s Tolstoy &Other Reminiscences’, uma coleção de textos de memórias e de fragmentos do diário do autor. Oque mais me impressionou foi sem dúvida ‘The Spider’, que relata um encontro de Gorki com um peculiar negociante de antiguidades, Makov, num barco a vapor para Kazan.

«‘E onde quer que eu vá ela segue-me, toda peluda, com as suas seis pernas, como uma sombra da lua, e ninguém consegue vê-la a não ser eu, e – aqui está ela! Não a vês, mas está aqui!’

Esticando o seu braço para a esquerda, Makov fez uma festa com a mão a alguma coisa no ar cerca de meio metro acima do convés. Aí limpou a mão no joelho, dizendo:

‘Está molhada.’

‘Queres dizer que tens vivido assim, com a aranha, ao longo destes últimos vinte anos?’ perguntei.
‘Vinte e três. Ele é o meu guarda, e agora está a ficar doente, a aranha.’

Devo dizer que não foi apenas esta história que me impressionou. Li-a sentado numa estação de comboios, à espera de transporte, e assim que afastei os olhos do livro vi na manga do meu blusão uma pequena aranha amarela, quase transparente.

Qual é a probabilidade de estarmos a ler um capítulo que se chama ‘The Spider’ e aparecer-nos uma aranha real pousada sobre a nossa roupa?!

Mas a coincidência não terminou aí. Hoje mesmo, quando me preparava para escrever estas linhas, vi uma aranha descer no ar, passar-me a um palmo do nariz e aterrou sobre o teclado do computador. Daí passou para a secretária e, dando pequenos saltos, trepou alguns livros como se fossem degraus. Acaba de pousar em cima do livro aberto de Gorki. E agora mesmo, enquanto escrevo, passeia calmamente com as suas patinhas peludas sobre as páginas de ‘The Spider’. Oleitor poderá pensar que estou a inventar uma história bonita ou que simplesmente enlouqueci, como o personagem de Gorki. Nem uma coisa nem outra – a fotografia que podem encontrar nesta página não me deixa mentir.