Matrioska diplomática

1. Will Durant, um historiador americano e Pullitzer, entendia a diplomacia como a arte de não dizer nada, especialmente quando se fala. Por esta medida, a aparição de Augusto Santos Silva na SIC foi uma demonstração exemplar da arte diplomática.  O não alinhamento português com os seus parceiros tradicionais do espaço euro-atlântico no caso Skripal…

1. Will Durant, um historiador americano e Pullitzer, entendia a diplomacia como a arte de não dizer nada, especialmente quando se fala. Por esta medida, a aparição de Augusto Santos Silva na SIC foi uma demonstração exemplar da arte diplomática. 

O não alinhamento português com os seus parceiros tradicionais do espaço euro-atlântico no caso Skripal é uma novidade que Santos Silva não conseguiu justificar. É preciso abrir a matrioska com que o MNE entreteve a opinião pública.  

Que fatores que podem ter influenciado o racional de decisão do MNE? (1) O Governo não é autossuficiente (também) em matéria de política externa pelo simples facto de a sua sobrevivência depender do PCP e do BE – ferozes opositores da NATO e da UE. (2) A objetiva falta de provas que atribuam a autoria do ataque à Rússia e a memória do erro cometido na intervenção no Iraque. (3) A instabilidade dos aliados: Boris Johnson é um conservador adorável mas a confiabilidade não é o seu forte; o mesmo para a diplomacia americana, conduzida a partir do Twitter do Presidente. (4) António Guterres é secretário-geral da ONU e isso influencia o posicionamento português. (5) Portugal quer fazer de António Vitorino o presidente do Observatório para as Migrações e, em Fevereiro, foi esse o principal tema tratado por Santos Silva e Sergei Lavrov em Moscovo. 

2. As insuficiências políticas internas, associadas às condicionantes externas e aos objetivos de curto prazo do governo português terão concorrido para o desenho de uma nova posição diplomática. Nela, Portugal ensaia-se como mediador entre o bloco ocidental e Moscovo. A diplomacia exige que se mantenham canais abertos e espaços de manobra para evitar pontos de não retorno. É na manutenção desse espaço que Portugal está a apostar. É uma jogada de alto risco, patrocinada pelo Presidente da República, que só pode ser mantida se não sacrificar irremediavelmente a opção Atlântica. 

3. As medidas retaliatórias de Putin ainda não são conhecidas. O Kremlin deve subir a parada. O perfil de Putin, a circunstância de se encontrar em início de mandato e a visão que Moscovo tem da política internacional indicam que Moscovo pode responder de forma não proporcional. Mais do que o número de diplomatas que a Rússia expulsará, é interessante olhar para a evolução da situação político-militar em algumas geografias amparadas pelo longo braço russo. Não deve constituir surpresa para ninguém se os americanos tiverem (ainda) mais dificuldades em cenários como o Afeganistão e o Iraque (com arriscados atos eleitorais marcados em 2018) ou mesmo a Coreia do Norte.

4. As ações da Rússia devem ser entendidas no contexto das suas condicionantes estratégicas. Moscovo continuará a achar-se vulnerável e a expansão é um movimento reflexo de defesa. Os russos continuarão a acreditar no seu excecionalismo. E Putin continuará a defender que «o fim da URSS foi um desastre» e que «os autoproclamados vencedores da Guerra Fria» moldam o mundo «de maneira a que ele sirva exclusivamente os seus interesses». Para Moscovo, o poder, a força e o cinismo são instrumentos que devem ser usados para garantir o interesse nacional. Que, neste caso, passa pelo reequilíbrio do sistema que não reconhecem como justo.  

5. Lê-se que a Guerra Fria está de volta. O recurso a esta simplificação torna a análise simplória. Ao contrário do que aconteceu até à década de 80, o mundo não é bipolar, a luta entre o capitalismo e o socialismo terminou com a vitória do primeiro por KO e o mundo não vive suspenso no cataclismo nuclear. A Rússia, sendo absolutamente decisiva, não é uma superpotência – embora saiba usar o poder de todas as formas. Falar em Guerra Fria não é só errado. É imprudente. Porque concede a Putin o papel que ele hoje manifestamente não tem (mas procura): o de uma Rússia com estatuto, poder e influência equiparados aos do seu principal antagonista ocidental.