Meu rico Dostoiévski!

Cheguei a casa por volta das 11 da noite depois de um dia extenuante. Parecia tudo calmo, luzes apagadas, não se ouvia um ruído. Certamente estavam todos a dormir. Mas ao olhar para o chão da sala deu-me um ataque de fúria. Fiquei com vontade de estrangular a primeira pessoa que me aparecesse à frente!

Não era a primeira vez que alguém – o elemento mais novo da família, para ser mais exato… – tirava alguns volumes das estantes e os deixava espalhados ao deus-dará. Como ninguém se dera ao trabalho de os apanhar do chão, um deles tinha a capa dobrada sob o seu peso, o que deixara um vinco impossível de disfarçar.

Ainda bastante irritado, contei até dez e comecei a arrumá-los novamente um a um para me recompor.

Que livros são estes de que falo? Trata-se da primeira edição da obra completa de Fiódor Dostoiévski em francês, publicada entre 1931 e 1940 pela NRF (Nouvelle Revue Française, fundada em 1911 por André Gide, Jean Schlumberger e Gaston Gallimard, que mais tarde daria origem à Gallimard). Devido à pequena insígnia na capa que representa um punhado de flores silvestres ou de espigas, esta é conhecida no meio como ‘edition à la gerbe’. Não se tratam de livros excecionalmente valiosos no mercado, ainda assim é bastante raro encontrar os 17 volumes todos juntos.

Comprei-os em Lisboa há alguns anos por um bom preço – em parte, devido ao facto de os livros em francês terem pouca procura em Portugal –, numa altura em que já lera alguns dos clássicos do ‘demónio russo’. Mas esta edição, além de títulos óbvios como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov, O Jogador ou O Idiota, incluía outros menos comuns, como a sua Correspondência ou Niétotchka Niézvanov, o seu último romance, que ficou inacabado.

Quando os comprei, alguns encontravam-se com as páginas ainda por cortar, um aspeto que entusiasma os colecionadores e que resulta do facto de a impressão ser feita em folhas de grandes dimensões (A2, por exemplo) que depois eram dobradas, neste caso, três vezes, de modo que uma folha multiplicava-se por oito – o chamado in-octavo.

A esta particularidade, a dita edição das obras completas de Dostoiévski somava uma outra: cada volume tem uma folha de papel vegetal a envolvê-lo. Acontece que não é só a mim que esse pormenor agrada: foi precisamente a delicada película que, por mais de uma vez, atraiu a atenção (e os dedinhos) dos destruidores de livros lá de casa. Assim, em vez de proteger os livros, acabou por fazer com que se estragassem.

Um esclarecimento final: apesar da minha fúria, acabei por acalmar-me e felizmente não estrangulei ninguém. Isso sim, seria digno de um romance de Dostoiévski.