Os ecos que chegaram da revolução na metrópole

As notícias do que acontecera em Lisboa chegaram com atraso, indefinidas. Não se podia adivinhar a libertação que aí vinha para as então províncias ultramarinas portuguesas. Numa altura em que as mensagens circulavam mais lentamente, e ainda para mais controladas, os ecos da revolução tardaram a soar. Pedimos o testemunho a seis angolanos

Adolfo Maria. Foi preso pela PIDE e viveu clandestinamente em Luanda já depois da independência por pertencer à ala “errada” do MPLA.

“Ficámos muito surpreendidos e inicialmente pensámos que era um golpe dentro do próprio regime”

A notícia da revolução do 25 de Abril chegou a Adolfo Maria quando ele estava nas fileiras do MPLA, no Congo. “Ficámos surpreendidos e inicialmente pensámos que era um golpe dentro do próprio regime”, disse ao i, acrescentando que não se sabia se a revolução ia trazer uma posição mais conservadora em relação à política colonial. Adolfo Maria, que foi membro do MPLA desde o início, admite que nunca pensaram que as “coisas iam tomar um caminho tão rápido no sentido da descolonização”.

“Claro que essa hipótese se colocou logo porque era insustentável para Portugal manter uma guerra em três frentes e com fortes avanços nacionalistas na Guiné e em Moçambique”, explicou, acrescentando que, no entanto, não sabiam se o que daí resultaria “era mais um enfraquecimento” ou antes pelo contrário. A dúvida durou algum tempo, se “era para o regime ficar mais duro ou para liberalizar”.

Depois de a notícia chegar e de se perceber que era de facto uma revolução, o que demorou dois ou três dias, começaram as discussões e reuniões entre os órgãos dirigentes. “Os quadros políticos conversaram com os guerrilheiros sobre a iminência de uma mudança de situação que podia exigir inclusive o aumento da guerra ou então a aproximação da paz”, lembra o nacionalista angolano.

Dino Matrosse. Nascido a 30 de dezembro de 1942, foi eleito em 2003 secretário-geral do MPLA. Atualmente é secretário para as relações internacionais.

“Estava a preparar-me para continuar a guerrilha mas, depois, A notícia surpreendeu-me”

“Pensámos que seria o fim da ditadura, não só pelo 25 de Abril, mas também pela contribuição dos movimentos que na altura estavam a lutar contra o regime salazarista continuado por Marcello Caetano”, explica Dino Matrosse, secretário para as relações internacionais do MPLA, que na altura da Revolução dos Cravos estava a concluir o curso de Engenharia.

“Estava a preparar-me para vir para Angola continuar a guerrilha mas, depois, a notícia surpreendeu-me”, lembra Matrosse.

Para o político, a revolução não terminou de repente com a ditadura. “Era um processo que iria espoletar outras situações porque nessa altura falava-se pouco do processo de descolonização”, acrescenta, lembrando que a Guiné-Bissau foi a primeira colónia a declarar independência por ter “a guerrilha mais desenvolvida”.

Sobre a revolução que mudou o regime em Portugal, Matrosse afirmou que na altura, segundo se recorda, “o PCP exercia uma influência muito grande no exército e também na sociedade portuguesa”, uma vez que tinha surgido enquanto partido há muitos anos e tinha estruturas. “Era o PCP que tinha mais comunicação com os movimentos de libertação nacional, sobretudo o MPLA de Angola” e, por isso, não se espantou com a forma como se desenrolou a revolução. “A situação da sociedade portuguesa ia mudar para melhor porque a revolução era progressista”, acrescentou Dino Matrosse, que chegou a ser número três do MPLA.

António Ole. Artista plástico, fotógrafo e realizador, nasceu em Angola em 1951. Foi ainda diretor da Televisão Popular de Angola em 1975.

“Foram anos e anos de autoritarismo, do domínio total e de uma ideia que não resultava”

Apesar de já terem passado 44 anos, António Ole, artista e ex-presidente da Televisão Pública de Angola, recorda essa altura como um tempo de agitação. “Foram anos e anos de autoritarismo, do domínio total e de uma ideia que não resultava”, explicou Ole, lembrando que na altura existiam em Angola quatro exércitos: o exército português. as FAPLA, as FALA e as FENELA.

“Eu era muito novo e isso foi para mim uma altura de grande progresso e até alguma entrega à militância, mas acho que foi uma altura muito romântica e muito bonita.”

A liberdade que o 25 de Abril trazia a Portugal acabou por se sentir também nas ex-colónias. “Começou um país a pensar sem nenhumas amarras coloniais, sem nenhuma potência colonial, e isso foi, de facto, o reflexo que a revolução do 25 de Abril em Portugal deu a toda a gente”, explicou o pintor, uma das maiores referências da arte angolana, que ainda o ano passado teve uma retrospetiva no Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Esta liberdade não chegava apenas aos oprimidos, mas a todos os cidadãos que até então tinham vivido sob a influência da PIDE e do regime salazarista. E depois veio “a insatisfação humanitária de uma guerra que nós tínhamos feito e acho que isso foi o momento-chave para a mudança”, concluiu.

David Borges. Jornalista desportivo da SIC Notícias, nasceu em Angola, onde iniciou a sua carreira como radialista. Veio para Portugal aos 26 anos.

“Em Angola, as restrições impostas pela ditadura não eram tão acentuadas como na então metrópole”

“Estava a comer um churrasco de frango num restaurante situado nos arredores do Lubango, a capital do distrito [atualmente província] da Huíla”, conta ao i David Borges, o jornalista que nasceu em Ondjiva, na altura chamada Vila Pereira d’Eça, no Cunene, bem no sul de Angola. Borges recorda que a notícia demorou a chegar. “A comunicação era pobre, a única referência que nós tínhamos era a Emissora Nacional Portuguesa de Lisboa que ouvíamos em onda curta, e era muito difícil captar a onda curta”, explica, acrescentando que foi preciso “passar algum tempo – mais de 24 horas – até termos a noção de que estava em curso uma revolução”.

No entanto, mesmo com a falta de informação sobre o que se passava na então metrópole, o jornalista acreditou que aquele “seria o início de um processo que levaria à independência de Angola porque já havia um quadro mental que considerava a inevitabilidade, a prazo, de Angola se tornar independente”.

“A população negra de Angola estava num quadro já de luta pela libertação – chamada na metrópole terrorismo – e, por isso, a repressão da PIDE fazia-se muito mais nesse sentido. Portanto, a camada branca que vivia em Angola dispunha de uma liberdade muito alargada e muito superior àquela que se verificava no Continente”, recorda.

Lukamba Gato. Nascido em 1954, no Bailundo, o general Lukamba Gato é formado em Relações Internacionais e deputado da UNITA.

“Fui ter com o meu professor e ele disse: ‘aí está o momento que todos esperávamos’”

“Quando se deu o 25 de Abril lembrei-me do meu professor e fui ter com ele, e ele disse-me: ‘Aí está o momento que todos esperávamos’”, conta Lukamba Gato, deputado e antigo secretário-geral da UNITA, em conversa telefónica com o i. “‘Lembras-te do que eu te dizia?’”, diz, lembrando a pergunta em jeito de afirmação que lhe lançou esse professor com quem tinha tantas conversas em segredo.

“O meu professor dava-nos indicações claras de que nós não éramos portugueses, mesmo sendo essa a nossa nacionalidade”, acrescentou. Quando ouviu a notícia da revolução, Lukamba Gato estava no Huambo, a então Nova Lisboa, a estudar no Liceu Nacional Norton de Matos.

“Tinha na altura 20 anos e bastantes luzes políticas”, refere. “Quando soubemos da revolução, com certeza que acreditámos que seria o fim da ditadura”, lembra Gato, acrescentando que, já na altura, a Revolução dos Cravos “significava um marco que separa o ontem do hoje”, ou seja, que separa a ditadura da democracia. “O 25 de Abril claramente tinha sido um esforço de democratas em Portugal, em conjugação com os nacionalistas nas várias colónias que Portugal controlava”, afirma.

Emanel Lopes. Nasceu no Huambo, passou a infância em Luanda e vive atualmente em Lisboa, onde é representante da UNITA e faz investigação política e consultoria.

“Qualquer coisa que acontecesse no momento era bom, agitava as águas”

Mesmo sem ter a certeza de que a revolução estava mesmo a acontecer em Portugal e com base nos rumores de um golpe feito pelos oficiais das Forças Armadas, Emanuel Lopes não resistiu a contar logo a um primo, que na altura tinha sido considerado desertor do exército. “Ele não acreditou muito que os militares fizessem uma coisa dessas e eu fiquei na dúvida se iria resolver as coisas ou não”, diz, acrescentando que a principal questão na altura era saber “se seria um golpe popular ou se seria um golpe revolucionário de direita.”

Dúvidas à parte, o contentamento com a notícia foi evidente. “Qualquer coisa que acontecesse no momento era bom, agitava as águas”, explica Emanuel Lopes. Se realmente fosse um golpe militar, a libertação de Angola poderia estar mais perto, como aconteceu, mas “mesmo que fosse um golpe de direita haveria contragolpe”, o que poderia ter o mesmo efeito, explicou.

“Depois começaram as movimentações em relação aos movimentos que estavam na guerrilha”, continua. No entanto, estas movimentações e o processo de descolonização não foram pacíficos. Emanuel Lopes lembra-se de duas manifestações que se realizaram em Angola, uma em maio e outra em junho, em que esteve envolvido, e onde foram vários os mortos. “Em junho de 74, o exército português disparou contra uma multidão em Luanda e matou uma série de pessoas”, recorda, criticando o facto de este momento da História ter sido quase apagado da historiografia oficial.