Arons de Carvalho. “Seria um erro colossal discutir agora o período de José Sócrates”

Fundador do PS defende que o partido não deve comentar os casos de José Sócrates e Manuel Pinho. “Deve aguardar serenamente pela decisão da justiça”

Arons de Carvalho é o mandatário nacional da terceira candidatura de António Costa ao cargo de secretário-geral. O fundador do partido confessa que teve dúvidas sobre a aliança do PS com os partidos à sua esquerda, mas ficou “agradavelmente surpreendido” com os resultados da geringonça. Não esconde, porém, que o PS deve bater-se pela maioria absoluta nas próximas legislativas e que se a conseguir esta solução política não é repetível. O ex-deputado socialista responde a Ana Gomes e considera que seria um “erro colossal” discutir, no próximo congresso, que se vai realizar no final do mês de maio, os casos que envolvem José Sócrates e Manuel Pinho. “O PS não deve pronunciar-se sobre questões que estão na justiça. Nem a favor dos acusados, nem contra eles”, afirma. Arons de Carvalho, que foi o primeiro líder da Juventude Socialista, conta ainda como é que se deu a entrada de António Costa no partido com apenas 16 anos.

Foi um dos fundadores mais novos do PS. Que idade tinha ?

Tinha 23 anos

Como é que se dá essa aproximação ao PS?

Deu-se por várias razões. A minha família conhecia a família do Mário Soares. O meu pai e a minha mãe [Joaquim Barradas de Carvalho e Ruth Arons] eram muito amigos dele. Eram colegas de faculdade do Mário Soares e da Maria Barroso. O meu pai foi exilado político em Paris. Eu interessei-me desde cedo pelas questões políticas, mas a aproximação ao PS deu-se por mero acaso, porque na altura em que o Mário Soares regressou do exílio em São Tomé e antes de partir novamente para o exílio [em França] o “Financial Times” publicou um artigo em que dizia que ele estava a aproximar-se do Marcelo Caetano. Eu, naquelas coisas de jovem ingénuo, escrevi uma carta ao “Financial Times” a desmentir e a dizer que não havia aproximação nenhuma. Não sei se a carta terá sido publicada algum dia, mas a minha mãe contou esta história à Maria Barroso e uns dias depois recebi uma chamada telefónica do Pedro Coelho, que era na altura dos principais organizadores da Acção Socialista Portuguesa, a convidar-me para integrar um grupo de jovens socialistas.

Foi o primeiro líder da JS. Logo a seguir ao 25 de Abril

Sim. A Juventude Socialista foi criada logo a seguir ao 25 de Abril. Talvez no dia 30 de abril.

Como era o ambiente entre os jovens do PS?

Era de grande entusiasmo. Era espantoso para nós todos podermos reunir à vontade, falar à vontade ao telefone…

A JS era mais à esquerda do que o partido?

Essa questão só se colocou com maior importância em 1975 quando houve uma fratura na esquerda portuguesa entre aqueles que defendiam a linha revolucionária e aqueles que queriam uma democracia europeia pluripartidária. O PS estava entre os que defendiam uma democracia pluripartidária contra o PC e a extrema-esquerda. Os jovens socialistas, integrados num contexto juvenil muito radical, muito desejoso de fazer tudo ao mesmo tempo e de mudar a sociedade num instante, era mais propenso a apoiar movimentos radicais. E, portanto, a Juventude Socialista viu-se ali numa situação complexa. Na altura, a JS adotou uma ideologia que era um socialismo autogestionário, mas no dia a dia a nossa preocupação era a organização dos jovens socialistas à escala do país inteiro e também tratar dos problemas dos jovens. As questão do ensino, dos jovens trabalhadores…

Foi nessa altura que conheceu o António Costa?

Sim. O António Costa tinha uma grande vontade de fazer política  e de estar na política. Suponho que terá sido através da Maria Antónia Palla [mãe do primeiro-ministro], jornalista, que fui apresentado ao António Costa. Ele queria aderir à JS. Fui eu que propus a sua inscrição. Foi ele que quis e eu talvez tenha formalizado a adesão e acompanhei os primeiros passos. Eu estava já na fase final do meu mandato como líder da Juventude Socialista com 27 anos e ele devia ter quase 16.

Recorda-se da conversa que tiveram quando ele aderiu?

Não me recordo, mas sei que a adesão à Juventude Socialista só era possível com 16 anos e ele, quando manifestou essa vontade, ainda não tinha 16 anos. Teve de esperar uns meses para formalizar essa adesão. Desde muito novo teve essa vontade de fazer política.

Era de prever que fosse fazer este percurso?

Era um tipo muito inteligente e muito capaz. Uma pessoa invulgarmente preparada, com uma formação de base muito grande, muito organizado e com uma grande capacidade de federar pessoas. Isso é indiscutível. Acabou por não ser líder da Juventude Socialista, mas esteve perto. Na altura em que podia ser o candidato apoiou o Luís Patrão, que perdeu as eleições contra a Margarida Marques.

Com uma tendência mais para a esquerda?

Ele esteve próximo do Jorge Sampaio que era de uma ala mais à esquerda do PS.

Acreditou, desde o início, que o PS com António Costa seria capaz de fazer uma aliança à esquerda?

Digo-lhe com toda a sinceridade que, na noite das eleições, quando vi o resultado, tive receio que o António Costa, não tendo conseguido o resultado que era desejado, se demitisse. Tive receio que estivéssemos numa situação de grande incapacidade de obter uma solução de governo. Na altura vi as diligências com o PCP e o Bloco de Esquerda com grande ceticismo. Não que eu fosse contra a opção política que estava a ser feita, mas pensei que ela não tinha futuro. Achei que o PC e o Bloco de Esquerda iriam puxar o tapete ao PS. Não foi, da minha parte, uma oposição por motivos ideológicos…

Não acreditava,…

Não acreditava que fosse viável, mas fiquei agradavelmente surpreendido com a possibilidade que houve de haver esse entendimento.

Embora as divergências entre o PS e os seus parceiros sejam muitas.

Sim, mas esses dois partidos também percebem que deitando o governo abaixo estão, no fundo, a aliar-se à direita. O aspeto decisivo para o sucesso desta solução não é uma questão ideológica. A verdade é que a economia recuperou, os salários  das pessoas melhoraram e o desemprego caiu brutalmente. Pode dizer-se, como costuma dizer o Presidente da República, que foi o governo anterior a traçar o percurso que este governo seguiu, mas a verdade é que o pais está claramente melhor do que estava há três ou quatro anos. E, neste contexto, é muito difícil dizer que vamos acabar com esta solução. Ela tem mostrado resultados. Recordo-me que quando vi as primeiras  intervenções públicas do ministro Mário Centeno pensei: este fulano, que eu não conhecia de lado nenhum, não tem aptidão, não sabe falar em público… A verdade é que ele rapidamente conseguiu adaptar-se e a nível de política económica os dados falam por si. E ganhou um prestígio internacional evidente.

Estes resultados da economia não levam o PS a pensar na maioria absoluta e a ter a tentação de acabar com a geringonça?

O  PS terá sempre a tentação de ter o melhor resultado possível e o melhor resultado possível pode ser a maioria absoluta. O PS já teve sozinho maioria absoluta.

É possível?

Não acho que seja provável, mas acho que é possível. Tudo depende do contexto económico, mas ainda falta muito para as eleições. Os dados económicos e sociais são importantes, mas em todos os governos há sempre coisas que não correm bem. Os governos estão sempre sujeitos a um desgaste. É muito difícil prever o que vai acontecer, mas penso que o PS deve legitimamente preparar-se para ter o melhor resultado possível e depois logo se verá. Se tiver maioria absoluta não deve abdicar de fazer acordos estratégicos com quem queira e esteja disponível para eles. Desde o PCP e o Bloco, até ao PSD

Isso já não seria aquilo a que se chama a geringonça.

Sim. Se o PS tiver maioria absoluta já não será uma geringonça.

Acaba a geringonça?

Acaba, mas não quer dizer que não haja… O governo tem mostrado uma grande capacidade de diálogo e de concertação. Tem conseguido cumprir os compromissos que estabelece com os seus parceiros. Eu creio que o acordo tem sido escrupulosamente cumprido e isso é muito importante, porque dá uma imagem de que palavra dada é palavra honrada. Isso é muito importante para o futuro seja qual for o resultado eleitoral.

António Costa  fez, há pouco tempo, acordos com o PSD. Criou-se aqui um clima diferente entre os dois partidos. Isso muda alguma coisa?

Sinto que existe da parte do PSD uma inversão. Creio que o PSD está a tentar dizer aos portugueses: “nós já não somos o PSD do Passos Coelho e da troika”. Estão a tentar recuperar algum eleitorado. Penso que o PSD está mais disponível para acordos de regime com o PS, mas não sei até que ponto é que há condições para isso. Depende dos acordos que forem feitos e das matérias que forem discutidas.

De qualquer forma a experiência autárquica do Rui Rio e a relação que tem com António Costa tornará mais fácil o diálogo. Daí a pensar-se que o PS vai abandonar a geringonça e virar-se para a direita vai uma distância muito grande. O PS só ganhará se mantiver alguma coerência e se não fizer aqui um jogo de pingue-pongue. Mas, provavelmente, os parceiros serão mais exigentes na próxima legislatura. É preciso também perceber o eleitorado.

Ficou surpreendido com a forma como o PS se uniu à volta desta solução de esquerda?

O_PS é um partido muito aberto e muito plural. Hoje em dia, quando olhamos para o PS, quem questiona a geringonça são pessoas que se situam à direita da experiência atual.

O_PS moveu-se ideologicamente com esta aliança com a esquerda?

Não creio que o PS se tenha mexido. Teve de negociar e de ser mais sensível aos argumentos do Bloco de Esquerda e do PCP, mas não creio que isso tenha significado uma viragem à esquerda. O que tem transparecido, nestes dois anos e meio de governação, é que foi conseguida uma solução eficaz para os problemas que o país atravessava.

Diria que o PS é, neste momento, um partido ao centro?

Não. É um partido de centro-esquerda. Não acho que o PS seja um partido de centro. O_PS tem a riqueza de poder acolher toda a gente.

O_PS está a comemorar 45 anos. Ao longo da sua história tem sido fiel à sua matriz ou houve alguns desvios?

O PS pretendia, na sua fundação, conciliar o socialismo e a liberdade. É claro que se em 1975 disséssemos que iríamos privatizar esta ou aquela empresa, como acabou por ser feito, ninguém aceitaria. O panorama europeu também se alterou e um vasto setor público foi substituído por um setor público com uma regulação mais exigente. Isso foi uma evolução que é hoje em dia mais ou menos consensual. O_PS, nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, era um partido ainda muito entusiasmado pela revolução. Pouco ciente do contexto europeu e das economias de mercado. Pouco realista em relação a isso.

Não houve alturas em que virou demasiado à direita?

Pode ter havido momentos em que isso tenha acontecido.

A crise veio mudar alguma coisa na forma como as pessoas olham para os partidos tradicionais. Os partidos, que têm exercido o poder, desde o 25 de Abril, não estão a ser penalizados?

Se olhar para o resto da Europa há movimentos populistas e há experiências novas. Se olharmos para vida política italiana e a comparamos com há quinze anos os partidos são outros

Em Espanha também apareceram outros partidos que conseguiram atrair o eleitorado

Exatamente. Há uma grande mudança, mas em Portugal temos mantido uma certa estabilidade.

Não apareceram novos protagonistas e os que aparecerem não tiveram sucesso.

Não. Houve o Bloco de Esquerda que apanhou à esquerda o eleitorado descontente com algum conservadorismo do Partido Comunista e com alguma moderação do Partido Socialista. Apanhou um eleitorado mais jovem e urbano, mas, de facto, não há novos partidos com sucesso. O que me assusta um pouco é ver muita gente, quando olho por exemplo para as redes sociais, que partilha coisas disparatadas e de um populismo evidente.

O próximo congresso do PS realiza-se de 25 a 27 de maio. Ana Gomes defendeu, na sequências das notícias sobre o ex-ministro Manuel Pinho, que o PS deve aproveitar essa oportunidade para “escalpelizar como se prestou a ser instrumento de corruptos e criminoso”. Julga que o partido devia fazer uma reflexão sobre o período em que José Sócrates governou o país?

Discordo completamente. O_PS deve aguardar serenamente aquilo que a justiça vai dizer. Ela já condenou as pessoas com essa declaração. Já se antecipou à justiça e fez justiça pela própria palavra dela. Acho que isso seria um erro colossal. Quer o Manuel Pinho, quer o José Sócrates, não foram ainda condenados. Temos de esperar sem intervir e sem comentar. Temos de esperar pela decisão da justiça e só nessa altura é que se pode dizer alguma coisa. Contra esse período ou a favor desse período. Mesmo que Manuel Pinho e Sócrates sejam condenados…

O_PS não será penalizado?

Creio que não é justo julgar o Partido Socialista por haver duas ou três pessoas condenadas. Já houve pessoas condenadas no PS e no PSD. Houve, por exemplo, autarcas condenados pela justiça. Acho que o PS não deve pronunciar-se sobre questões que estão na justiça. Nem a favor dos acusados, nem contra eles. Deixemos a justiça com autonomia, liberdade e independência julgar esses casos. Só depois disso é que podemos tirar conclusões. A posição da Ana Gomes é um erro colossal.

No caso de José Sócrates não estamos a falar de um presidente de câmara, estamos a falar do líder do partido que governou o país durante seis anos.

É um secretário-geral do partido, mas não foi condenado. Há muitas acusações, há esta coisa da SIC agora, mas não foi condenado.

Como é que viu a divulgação dos interrogatórios?

Vejo com preocupação. Já ouve vários juristas que se pronunciaram nesse sentido e a ministra da Justiça  [Francisca Van Dunem]. É, de facto, grave que tenha sido divulgado por uma ou duas televisões sem consentimento dos próprios. Isso fere princípios básicos do direito processual penal. A justiça fará também o seu percurso nessa matéria e espero que se descubra quem é o responsável pelas fugas de informação. Temos de aguardar que a justiça funcione.

Pelo que já sabemos deste caso não acha que há, no mínimo, comportamentos reprováveis, nomeadamente quando falamos de um primeiro-ministro que vivia com dinheiro de um amigo que era construtor civil?

Não conheço os dados todos. Não conheço as situações. O que as pessoas vão conhecendo é, por vezes, a transcrição disto e daquilo. Não acho que seja reprovável uma pessoa viver com dinheiro emprestado de outra. Não é por isso que as coisas estão erradas, mas penso que as pessoas só se deviam pronunciar quando os casos estivessem julgados. Até lá deixemos a justiça funcionar. Qualquer intervenção pública a favor ou contra uma pessoa indiciada ou acusada só perturba a justiça e até perturba a defesa das pessoas.

O_PS e António Costa têm gerido bem este caso quando tomou uma atitude…

De alguma distância. Julgo que é a posição mais sensata. Se o António Costa acompanhasse as críticas ou acompanhasse a defesa estaria a interferir na justiça. A atitude mais sensata é deixar a justiça funcionar. 

Acha a mesma coisa em relação ao que sabemos hoje do ex-ministro Manuel Pinho?

Acho a mesma coisa.

Mas reconhece que é grave um ministro…

Não faço ideia se é verdade ou não. Não ouvi ainda o Manuel Pinho defender-se.

Ele, desta vez, optou por não dizer nada.

Acompanhei a situação pelos jornais, mas não faço ideia se é verdade.

Foi jornalista no jornal “República”, a seguir ao 25 de Abril, e secretário de Estado da Comunicação Social. Como é que olha para o jornalismo?

O mais angustiante é sentir que os grupos de comunicação social estão numa situação muito difícil e muito complexa. Isso condiciona muito a sua atuação, a sua independência em relação aos grupos económicos e o recrutamento de profissionais. As empresas de comunicação têm hoje um novo rival que é a informação das redes sociais e dos falsos órgãos de comunicação social que publicam informação que não é verdadeira. É informação falsa e populista. Há uma multiplicidade de falsos órgãos de comunicação social que não têm estatuto editorial e não têm nada que identifique quem são os seus responsáveis. Isso é preocupante, porque sinto que o poder político e o poder regulador não estão ainda sensíveis a esta questão.

O Estado deve ter aqui algum papel?

Sim. Existem países na Europa, como a França e os países nórdicos, entre outros, que têm mecanismos de apoio à comunicação social. A comunicação social desempenha uma função de interesse público e, portanto, deve haver mecanismos de apoio. É claro que isso exige dinheiro e estou consciente da dificuldade que é mobilizar verbas para este tipo de situações, mas o Estado devia, pelo menos, fazer uma reflexão sobre esta matéria. Creio que uma medida possível seria reduzir a publicidade na RTP. Isso significaria mais publicidade para a comunicação social privada. Há outras medidas possíveis de aplicar. Devia ser uma prioridade, porque há uma crise nos meios de comunicação social em Portugal e é uma matéria que não tem sido debatida. O governo anterior acabou com o departamento da administração pública ligado à comunicação social e hoje em dia não existe nenhuma estrutura ligada à política de comunicação social. É uma situação errada. O_Estado não pode demitir-se e penso que esse problema está a ser desvalorizado nas políticas públicas.

O_PS é acusado muitas vezes de querer controlar a comunicação social. Aconteceu no período de José Sócrates, mas também noutros períodos da história do partido.

Todos os partidos têm esse lastro. O_PSD também teve, no passado, tentações de dominar a comunicação social. A seguir ao 25 de Abril houve o caso “República”, as questões da Rádio Renascença… Mas penso que, por exemplo, a RTP é hoje muito mais independente do poder político do que era nos anos 70 e até nos anos 80. Havia uma cadeia hierárquica controlada pelo poder político. Isso mudou muito e acho que as coisas a esse nível melhoraram muito.