Considerado o maior escritor cabo-verdiano, Germano Almeida viu ontem esse estatuto ser reforçado pelo anúncio da atribuição do maior galardão literário da lusofonia. É o segundo autor daquele país a ser distinguido com o Prémio Camões: Arménio Vieira, poeta seu compatriota, foi o primeiro (e o quarto africano), em 2009, a receber o galardão inaugurado em 1989. Sucede assim a Manuel Alegre, distinguido no ano passado.
Na sua 30ª edição, após reunião do júri, no Hotel Tivoli, em Lisboa, o gigante afável que nasceu na ilha da Boavista, em 1945, foi anunciado como o vencedor desta distinção. Ainda que, com a sua característica bonomia, se possa adivinhar que o galardão venha a ser por ele acolhido com alegria, o certo é que não irá ser motivo de grande deslumbramento. Como já deixou claro, e ao arrepio do que acontece com a maioria dos escritores, que adoram reclamar a condição de autores universais, Germano Almeida nunca escondeu que, para si, Cabo Verde é o centro do mundo. Sendo o único romancista do país com alguma expressão no estrangeiro, há alguns meses afirmou sem rodeios para quem escreve – “para ser entendido pela minha gente”. A sua grande desilusão seria se os cabo-verdianos não o entendessem.
Atualmente a viver no Mindelo, o romancista que tem a sua obra publicada em Portugal pela editora Caminho, estreou-se como contista no início da década de 1980. O seu primeiro romance, “O Meu Poeta” (1989), marcou uma inflexão decisiva na literatura cabo-verdiana, e não só pela forma como elevou a fasquia do ponto de vista da estrutura, num livro de fôlego que traça de forma satírica um retrato devastador do país, do seu meio cultural, e do regime que, à época, era ainda de partido único. Desde então publicou obras como “A ilha fantástica”, “Os dois irmãos” e “O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”, estes dois últimos já adaptados para cinema. E a Caminho acaba de editar o seu mais recente romance, “O Fiel Defunto”.
A propósito deste livro, em entrevista ao i, em novembro do ano passado, o escritor disse: “Estou no último capítulo, e espero que este livro seja diferente dos outros que escrevi porque desta vez me propus de início a escrever um romance”. Esclareceu que a diferença era que, neste livro, se entregava mais aos pormenores: “Porque quando o que se quer é contar histórias, acabamos por saltar por cima de muitas coisas. No romance, aprofundamos o retrato, vamos às coisas mais pequenas. Mas não sei de facto se é um outro livro igual aos outros ou se consegui o que queria”.
Questionado sobre se voltava a refletir sobre a realidade do seu país, adiantou que esse era sempre o seu tema. Quanto à trama, acrescentou: “É a história de um escritor que desistiu de escrever, e que quando mais tarde se decide a retomar a escrita, no dia em que vai publicar o livro, é morto. É morto por um amigo, e o que fica em aberto é saber as razões que levaram a isso. Mas é uma vez mais um livro em que se brinca com a literatura.”
A entrevista foi concedida logo após Germano Almeida ter participado numa das mesas do “Morabeza” – festival literário promovido pelo Ministério da Cultura do país e organizado pela Booktailors na Cidade da Praia. Abraão Vicente, o ministro da Cultura de Cabo-Verde – que agora celebrou efusivamente a vitória do romancista – na altura reagiu à entrevista censurando o “terrível” retrato que Germano Almeida nela fez do país, e o retrato “horrendo” que fez da sua classe política.
Numa nota publicada na sua página de Facebook, Abrãao Vicente criticava o romancista, dizendo que a sua leitura da realidade pecava por ser redutora e “por ir de encontro ao desejo de um populismo escancarado que quer a todo o custo alimentar uma narrativa de desqualificação da classe política”.
“Resumindo a entrevista: somos pobres, malformados e corruptos”, notava o ministro da Cultura, mas fazia questão de deixar uma ressalva: “Atenção: este não é um retrato deste Governo com ano e meio de mandato, é o retrato de toda a classe política cabo-verdiana feita pelo que é considerado o maior escritor cabo-verdiano vivo.” Não se ficando por aqui, Abraão Vicente, admitia que “a entrevista causa incómodo, claro. Dá que pensar.” E porquê? Porque “normalmente não se vê cabo-verdianos a falar de Cabo Verde desta forma. Muito menos uma eminente personalidade. Normalmente por mais que sejam as nossas diferenças, nós cabo-verdianos gostamos de passar uma boa imagem do país, gostamos de promover Cabo Verde. A credibilidade e a imagem internacional do país são das nossas maiores riquezas, custou muito a construir.”
Político, procurador e crítico Germano Almeida estudou Direito na Universidade de Lisboa e fez carreira na advocacia na ilha de São Vicente. Antes de se afastar da vida política ativa, foi deputado eleito pelo Movimento para a Democracia de Cabo Verde (MpD, atualmente no poder) e exerceu o cargo de Procurador-Geral da República de Cabo Verde. Assumindo que a sua obra não só procura retratar a realidade social e política em Cabo Verde, mas que funciona como uma crónica que será lida ao longo de anos, desempenhando também um papel enquanto testemunho histórico, Germano Almeida disse a este jornal que no tempo do partido único era considerado um opositor. “Aliás, fiz parte dos dirigentes do MpD, nos anos 90, em que começámos a travar um combate contra o regime do partido único, e fizemos oposição ao regime para conseguir alguns assentos na Assembleia. Mas não tínhamos o intuito de ganhar eleições. Quando ganhámos as eleições o partido descaiu-se demasiadamente para a direita. Um partido que começou por se posicionar no centro-esquerda, acabou por resvalar para o centro-direita, com todas as privatizações que vieram a ser feitas e que, quanto a mim, têm prejudicado muito o país.”
Quanto ao tipo de políticas liberais que o escritor criticava e de que Abraão Vicente logo procurou isentar a culpa do executivo que integra, nessa entrevista Germano Almeida deixou exemplos do tipo de medidas que, na sua opinião, comprometem o futuro daquele país: “Tínhamos uma empresa do comércio externo e que fornecia Cabo Verde de todos os produtos de primeira necessidade a preços competitivos. Como compravam grandes quantidades, o Estado podia negociar preços mais baixos, e porque estava dotada de transportes, conseguia colocá-los em todas as ilhas. Acabaram com essa empresa, acabaram com esses transportes, e hoje, anos depois, é ainda muito complicado conseguir que um barco leve de uma ilha para outra os produtos.”