Ai se Victor Hugo fosse vivo…

É permitir que a lei passe a consagrar a hipótese de alguém poder tirar a vida a outrem, poder matar, dever matar.

«Está pois a pena de morte abolida em Portugal, pequeno povo que tem uma grande história! Penhora-me a recordação da honra que me cabe n’essa victoria illustre. Humilde operario do progresso, cada novo passo que elle avança me faz pulsar o coração. Este é sublime. Abolir a morte legal deixando à morte divina todo o seu direito todo o seu mysterio é um progresso augusto entre todos. Felicito o vosso parlamento, os vossos pensadores, os vossos escriptores e os vossos philosophos! Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo á Europa. Disfructas de antemão essa immensa gloria. Morte à morte! Guerra à guerra! Odio ao odio. Viva a vida! A liberdade é uma cidade immensa, da qual todos somos cidadãos. Aperto-vos a mão como a meu compatriota na humanidade». 

Victor Hugo

Este escrito de Victor Hugo, uma carta dirigida ao redator principal do DN Eduardo Coelho, foi publicado no Diário de Notícias de 10 de julho de 1867, dias depois de D. Luís ter assinado a carta de lei que sancionou o decreto das Cortes Gerais que aprovou a reforma penal e das prisões e consagrou a abolição da pena de morte.

A carta de Victor Hugo é, hoje como desde há 151 anos, motivo de orgulho para Portugal e seu povo.

Porque, tendo sido o primeiro país europeu a abolir a pena de morte, serviu de facto de exemplo para esse avanço civilizacional que, não obstante passado já mais de um século e meio e estarmos já a finalizar a segunda década do terceiro milénio, muitos países além fronteiras da Europa continuam por adotar – muitos com regimes totalitários ou ditatoriais e de terceiro mundo, mas também outros de primeiríssimo mundo e paladinos da democracia (como os Estados Unidos).

Nesses idos dias do século XIX, Victor Hugo enviou uma outra carta ao seu amigo do DN, uma vez mais elogiando o povo português: «Proclamar princípios é mais belo ainda do que descobrir mundos».
O princípio proclamado – e hoje constitucionalmente protegido – é o da inviolabilidade e indisponibilidade da vida humana, bem e valor supremo da sociedade.

Ora, 151 anos depois – e quando no mundo a causa ainda é a abolição da pena de morte –, o Parlamento português vai discutir e votar quatro propostas de introdução da eutanásia, chamem-lhe ‘despenalização’ ou ‘legalização’ (sendo que toda a razão têm os seis bastonários da Ordem dos Médicos que argumentam que não pode ‘despenalizar-se’ nem ‘legalizar-se’ uma prática que simplesmente não existe).

Porque a eutanásia de que se trata em todos as propostas em causa, independentemente dos argumentários e das alegadas restrições e/ou condicionalismos, é, na verdade, a violação do princípio básico da inviolabilidade ou indisponibilidade da vida.

Ou seja, é permitir que a lei passe a consagrar a hipótese de alguém poder tirar a vida a outrem, poder matar, dever matar.

Pode até o autor da lei reclamar que a malha é de tal modo apertada que não permitirá desmandos. A Constituição de 1933 também era quase perfeita e deu no que deu.

Essa é a questão de princípio: a inviolabilidade da vida não admite exceções. Não pode.

De outro modo, e como bem diz o PCP para justificar o voto contra as propostas em causa de toda a sua bancada parlamentar, estamos perante um «retrocesso civilizacional».

Quem por clemência admite a morte medicamente assistida, o suicídio assistido ou a antecipação da morte de alguém em estado de saúde terminal ou em condições de dependência total, porque não a admitirá também na inclemência para com quem atenta contra a Humanidade ou comete outro qualquer crime igualmente hediondo e quem manifestamente se revela incapaz de reabilitação ou reinserção social. Por que não revogar a prisão perpétua ou a pena capital?

A Constituição e a Lei têm de proclamar o princípio da indisponibilidade e inviolabilidade da vida humana. Não pode haver homem ou conjunto de homens capazes de ditar quando e em que circunstâncias pode e deve morrer quem quer que seja.

Não se trata de uma questão religiosa, trata-se de um princípio civilizacional primário.

De outro modo, está aberta uma caixa de Pandora, de consequências imprevisíveis e incontroláveis.

O suicídio já não é criminalizado. Mas o suicídio assistido é. Tem de ser.

Ensinou-me a mais sábia das minhas Professoras que não se deve dar a mão a alguém para o ajudar a morrer quando se pode dar-lhe a mão (ou até as duas) para o ajudar a viver.

A questão é essa: mais do que a sociedade permitir-se ver-se livre dos seus enfermos, inválidos, incapazes, quase vegetais, ou simplesmente velhos já mesmo velhos é apostar em dar-lhes devido acompanhamento para que eles possam viver, e morrer, com dignidade. Seja exigindo mais às células familiares no acompanhamento dos seus dependentes, seja investindo numa rede de cuidados paliativos que é manifestamente insuficiente e, ela sim, degradante.

Victor Hugo deve estar às voltas no túmulo. Acredito que se ele pudesse escrever o que lhe iria na alma, desta vez a carta seria impublicável e encher-nos-ia de vergonha.