Por que não te calas?

A esquerda não queria que Cavaco falasse porque o teme

A esquerda  em peso atirou-se a Cavaco Silva por este ter manifestado publicamente opinião sobre a eutanásia.

Mas não terá Cavaco direito a falar?

Não é certo que os outros ex-Presidentes vivos, Eanes e Sampaio, deram a sua opinião sobre o assunto?

A questão é outra: a esquerda atirou-se a Cavaco com especial agressividade porque o teme.

Ao querer que Cavaco Silva se calasse, a esquerda mostrou que ainda tem medo da sua opinião, porque sabe que ela tem peso.

De outra forma, não lhe teria dado tanta importância.

Falemos agora da questão em si, muitos daqueles que apoiaram a eutanásia (e não por obediência política) estavam a pensar nos doentes em fase terminal que já não conseguem suportar o sofrimento e suplicam que lhes abreviem a vida.

Foi este o argumento que decisivamente os convenceu.

Ora, perante estes casos, todos nós tendemos a ter a mesma opinião.

Quem somos nós para negarmos a um doente nessa situação um ato de misericórdia?

Só que as questões de princípio não podem ser vistas assim.

A vida é uma linha que começa na conceção e acaba na morte natural. 

Até há 36 anos, esta linha era inviolável.

Não podia ser interrompida em nenhum momento e sob nenhum pretexto.

Mas com a legalização do aborto deu-se um primeiro passo: a linha da vida passou a poder ser interrompida até às dez semanas.

Foi um início. 

Se a eutanásia tivesse sido legalizada, essa linha passaria a poder ser também interrompida antes do seu termo.

Ou seja: no princípio e no fim, a vida deixaria de ter um valor absoluto.

Nestas questões de princípio, é necessário ainda perceber o seguinte: legalizar significa entreabrir uma porta.

E quando uma porta se entreabre é muito difícil voltar a fechá-la.

Pelo contrário: a tendência é para se ir abrindo cada vez mais à medida que o tempo passa. 

Assim aconteceu com o aborto. 

Começou por ser permitido em circunstâncias absolutamente excecionais e sob determinadas condições.

Mas com o passar do tempo essas condições foram-se aligeirando.

E hoje o aborto banalizou-se. 

O mesmo aconteceria com a eutanásia. De início, só seria permitida em condições muito restritas, perfeitamente tipificadas na lei.

Mas  com o tempo essas condições tenderiam a simplificar-se.

Veja-se o que se passa na Bélgica, um dos quatro países onde a eutanásia é permitida.

Há tempos assisti a uma reportagem sobre um caso real lá ocorrido, que os intervenientes autorizaram que fosse filmado. 

Uma senhora dos seus sessenta anos, de boa saúde, consultou um médico, disse-lhe que estava muito desgostosa e que queria morrer. 

O médico aceitou os seus argumentos e marcou outra consulta, para consolidar a ideia e combinarem a data e o local da morte. 

No dia aprazado, o médico foi a casa da senhora, ela deitou-se na cama e o homem deu-lhe a injeção letal. 

Assim, com esta simplicidade. 

O médico em causa tinha, aliás, o epíteto de ‘Doutor morte’.

Ao contrário do que se disse, a legalização da eutanásia não era uma ‘questão de consciência’ – era uma questão política. 

Para o Bloco de Esquerda, a eutanásia era apenas mais um passo na concretização da sua agenda política.

Depois do aborto, da liberalização das drogas leves, das salas de chuto, do casamento gay, da adoção por ‘casais’ homossexuais, das barrigas de aluguer, a proibição da eutanásia era o último tabu a abater.

E por isso o PCP não seguiu os bloquistas, ao contrário do PS e o PSD, que caíram na armadilha.

Mais uma vez, socialistas e sociais-democratas deixaram-se enredar na teia montada pelo BE. 

Nesta questão, sobretudo o PSD tinha a obrigação de ser firme, rejeitando um debate que só iria contribuir, como se viu, para dividir a sociedade portuguesa e provocar ruturas. 

O próprio PSD, aliás, está dividido sobre esta matéria.

Há lá muita gente que coloca os princípios à frente do pragmatismo e não partilha de uma agenda radical.

A intervenção de Cavaco Silva foi ilustrativa dessa verdade. 

Ora, por ironia do destino, o PSD viu-se na situação de, com os seus votos, poder contribuir decisivamente para a aprovação da eutanásia.

Se isto tivesse acontecido, seria mais uma razão para muitos sociais-democratas emigrarem para o CDS em próximas eleições, abandonando de vez Rui Rio. 

Uma última questão: como se percebe que, para mudar normas da Constituição relativamente anódinas, seja necessária uma maioria qualificada – e para alterar princípios civilizacionais, que têm que ver com a vida e a morte, baste uma maioria simples?

Na alteração de normas com séculos de existência não deveria ser necessário um consenso alargado?

Estará certo que uma matéria tão importante como esta possa depender do voto de um único deputado?