Chico Buarque. Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas

Depois do Porto, é a vez de Lisboa desfazer a cama e desforrar-se da longa ausência do cantor e compositor que fez corar a língua portuguesa 

Ele anunciou a volta e houve um tremor debaixo da pele das coisas. Quem duvidou que o tímido viria provocar estragos ao fim de uma ausência de 12 anos? Seis datas logo esgotadas. As noivas caíram em cima. Dizem que o último álbum nem é dos melhores. Mas, entre os talentos de Chico Buarque, não se encontra a desilusão. 
Chegou a Portugal para uma invasão subtil, dessas que, na superfície, não deixam tudo escangalhado, mas abrem a porta para esses lugares onde “os sonhos serão reais/ e a vida não”, para um confuso casarão, “uma espécie de bazar/ onde os sonhos extraviados/ vão parar/ entre escadas que fogem dos pés/ e relógios que rodam p’ra trás”.
E se mais datas tivessem surgido, depois das noivas seria a vez de aparecerem os cornos, que viriam tentar perceber o que tem ainda de tão especial o rapaz de olhos verdes aos 73 anos.
Esta invasão é feita em contraluz, tocando para o reino de tudo o que oscila e pode desfazer-se em pó. E por oposição aos modos bárbaros que hoje regressam com uma volta moderna. E agora peço um pouco de tolerância do leitor, para trazer do passado um paralelo que julgo esclarecedor.
Houve um grande estudo genético em 2003 que tirou uma conclusão espantosa. Imaginem só que 1 em cada 200 homens vivos à data, segundo determinou o estudo, descendem em linha directa de um só homem que morreu há 750 anos. Porque o cromossoma Y é transmitido de pai para filho, o que se descobriu é que entre as diversas linhagens paternas há uma que leva grande vantagem sobre todas as outras. É a de Gengis Khan, imperador mongol que nasceu ouvindo as lendas de um lobo cinzento que haveria de devorar toda a terra.
Aquele estudo determinou que cerca de 16 milhões de homens vivos então eram seua descendentes, e no território que fica hoje entre o que foram as fronteiras do império Mongol à data da morte daquele conquistador 10% dos homens carregam o cromossoma Y de Khan.
Há outros cromossomas “super-Y” a tentar dominar o mapa genético mundial, mas nenhuma chega perto do antigo imperador, que abrange 0,5% de todos os homens.
Mas este desvio vem a propósito do quê, pergunta o leitor. Ora, de Chico pode dizer-se que é o anti-Gengis Khan. E podemos também adiantar que a marca que o cantor e músico deixará no mundo, se não irá ler-se no mapa genético dentro de 750 anos, não é menos impressionante.
A polémica imbecil que rodeou “Tua cantiga” – o primeiro single do último álbum, “Caravanas” – tentou colar a Chico Buarque e às suas letras uma conotação machista. Alimentou algum burburinho mas logo morreu. Só podia. Até na descendência de Chico se lê uma doce ironia: ele não deu nem passagem ao seu cromossoma Y. Só fez filhas. Três.
Agora pense-se no invisível tumulto que, mesmo assim, este tímido vem provocando desde o fenomenal êxito de “A Banda”, que, em 1966, o lançou para a ribalta, ao vencer o II Festival de Música Popular Brasileira. Como logo ele se fez esse delicado vulto que mulheres há várias gerações vislumbram sorrindo-lhes desde o altar dos seus sonhos.
Voltando a Khan, eis a mais célebre das citações que lhe são atribuídas: “O grande motivo de júbilo para um homem é derrotar os seus inimigos, levá-los à sua frente, tirar-lhes tudo o que possuem, ver todos os que amam desfeitos em lágrimas, montar os seus cavalos, e apertar as suas mulheres e filhas nos braços.”
Quanto a Chico, é difícil escolher entre tantas frases, versos… cada um mais delicado, sem humilhar. E, sobre os excessos desses outros homens, com quem se recusou até a rivalizar, ele atribuirá tudo isso a “um sol que bate na moleira/ o sol que estoura as veias/ o suor que embaça os olhos e a razão… É por isso, como ele canta, que “tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria/ filha do medo, a raiva é mãe da covardia” (“Caravanas”).
Este talvez nem seja o melhor álbum de Chico, mas ele continua a ser o mesmo doido que escuta vozes, e lhes responde. Se as suas canções têm tanta graça, tão grande ressonância, é porque o fôlego tomou balanço na sua imaginação e emprenha os sentidos ocultos de quem o ouve. As suas personagens são aparições, chegam com os seus modos inesquecíveis e tornam muito difícil não as seguir para esse lugar onde os sonhos extraviados vão parar. A voz dele é uma segunda chance, um universo paralelo.
Ele reina sem necessidade de atemorizar os seus inimigos, e o seu veneno é daqueles que dão esperança. A poesia objectiva de Chico tem um país (ou um mundo) atrás de si. Por isso, fala com o outro em nós, e revigora um desejo de resistência colectivo, do mesmo modo que, aos 73 anos, sem falar mais baixo nem mais alto, ainda nos explica o amor, tão claro como muito poucos alguma vez souberam fazer. 
Tome-se para exemplo os versos do “Dueto” que, neste álbum, canta com a neta (Clara): “Consta nos astros, nos signos, nos búzios/ Eu li num anúncio, eu vi no espelho/ Tá lá no evangelho, garantem os orixás/ Serás o meu amor, serás a minha paz (…) Mas se a ciência provar o contrário/ E se o calendário nos contrariar/ Mas se o destino insistir em nos separar/ Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas/ Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos/ Profetas, sinopses, espelhos, conselhos/ Se dane o evangelho e todos os orixás/ Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz”.
Esta noite, como ontem, e na de amanhã ou na seguinte, as noivas de Chico, os seus aprendizes, irão recebê-lo em Lisboa, partilhando o súbito encanto por este tímido conquistador. Um desses poetas que aparecem casualmente, que em vez de tomarem o mundo à força, devorando toda a terra, ensinam a chegar pelo sonho, viver um grande amor sem estragos. Ele é o amante que, cantando a meia voz, compensa o desleixo dos outros.