Decidiu publicar as memórias para clarificar alguns episódios. O que é que o levou a tomar esta decisão?
Tinha decidido publicar as minhas memórias só depois de morrer, mas cheguei à conclusão de que a eficácia era nula, porque eu já cá não estaria para contrapor. Eu tinha tudo feito, era uma questão de avançar, e decidi publicar. Tenho as coisas prontas, tudo escrito, com fotografias e provas. Vivi muito e conheci muito. Será um contributo para que os meus netos vivam num Portugal melhor.
Como foi a sua vida até entrar para a Academia Militar?
Sou natural de São Pedro do Sul. Fui batizado catolicamente com o padrinho de batismo Carlos Carvalhas [ex-secretário-geral do PCP]. Ele tinha nove quando me batizou. O meu pai trabalhava com o pai dele. É por isso que eu sou Carlos. Fui sempre um gajo muito desalinhado. Joguei futebol antes de ir para a Academia Militar, mas fui irradiado porque bati no árbitro.
Trabalhou com Fernando Nogueira, no Governo de Cavaco Silva, e mais tarde com Passos Coelho. Como militar, como foi trabalhar com os políticos?
Comecei com o professor Mota Pinto no Governo do bloco central. Foi aí que eu fiquei com o bichinho da política. Era um homem de uma envergadura assustadora como homem de Estado. Era, na altura, um jovem capitão e foi uma experiência que me viciou.
Foi nessa altura que conheceu o Fernando Nogueira?
Conheci nessa altura o Fernando Nogueira, que era secretário de Estado, e me convidou para trabalhar com ele quando foi para ministro. Quando trabalhei com o Fernando Nogueira fui porta-voz do ministro da Defesa. Lidava com jornalistas. Não há nenhum jornalista que possa dizer que eu lhe menti. O José Paulo Fafe [jornalista] dizia que não sabia se eu era o mais militar dos civis ou o mais civil dos militares. O meu pensamento nunca esteve dentro da caixa e daí a sorte que eu tive em contactar muito novo com o professor Mota Pinto. Vivi com ele dois anos em São João da Barra, porque na sequência das operações das FP-25, por razões de segurança, o professor Mota Pinto abandonou a residência que tinha na Avenida dos Estados Unidos da América e foi viver para o Forte de São João da Barra. Eu acompanhei-o. Foi ele que me ensinou o que era o PIB, o que era a balança comercial… Ganhei o bichinho da política, porque a política era encarada como a defesa dos superiores interesses do país.
Deixou de ser encarada dessa forma?
Era muito diferente. O Governo do bloco central foi um Governo patriótico. Teve de resolver um grave problema financeiro. Lembro-me que em dezembro de 1982 não havia dinheiro para pagar subsidio de Natal aos funcionários.
Os militares protestam com alguma frequência contra o poder político. Ainda esta semana protestaram por causa do descongelamento das carreiras. Têm razões para estar descontentes?
Os militares têm de ter o vencimento que a pátria entender que eles devem ter. Não há nenhum militar que tenha sido condenado a ser militar. Eu fui voluntário para a Academia Militar em 1971 quando havia guerra em África. Eu sabia que ia fazer a guerra e depois de lá estar não podia dizer que não concordava com ela. Os militares tiveram uma importância histórica porque foram os autores do 25 de Abril que teve por base uma reivindicação corporativa e salarial e, portanto, nunca estiveram contentes com os seus vencimentos.
Entende esse descontentamento?
Os militares têm uma capacidade reivindicativa razoável, mas têm no seu estatuto determinadas limitações que conscientemente aceitam. Não podem fazer uso da sua arma para impor a sua vontade. Tem de haver um diálogo e dentro da arte do possível encontrarem-se as melhores soluções a cada momento. Têm de ter a noção de que são servidores do Estado com características muito especiais. Um Exército que tem uma cabeça muito grande e um corpo pequeno não pode viver para pagar a cabeça. Tem de viver para pagar os braços, as pernas e todo o corpo.
Concordou com o fim do Serviço Militar Obrigatório?
Não concordei. Fui a favor do serviço militar misto, que obrigava toda a gente a ir, porque naquela altura já só cerca de 30% dos jovens recenseados é que iam ao serviço militar. Uns escapavam, porque tinham dinheiro, outros eram objetores de consciência, outros tinham amigos.
Havia muitas cunhas para não ir à tropa…
A cunha é uma instituição nacional. O que se aprovou, em 1992, foi um modelo em que toda a gente ia fazer um serviço militar curto, na altura quatro meses. Ia toda a gente, tinham uma educação cívica e militar. Quem quisesse ficar ficaria como voluntário. O que se começou a dizer foi que tinha acabado o serviço militar.
Acabou mais tarde com o PS…
Acabou com o engenheiro Guterres. Nessa altura entrámos decisivamente na via profissional. Uma solução que eu não defendo, embora eu considere que o serviço militar obrigatório não é uma casa de correção. Não é aos 20 anos que se vai corrigir aquilo que a família e a escola não foram capazes de fazer do jovem. Não deve ser uma punição. Deve ser preparar o jovem para sobreviver, ter hábitos de horário ou saber respeitar a bandeira. Para ter aquilo a que nós chamamos a consciência cívica e isso dá-se em dois meses. Não é preciso que os jovens entrem e saiam dos quartéis fardados. Não é preciso terem uma farda muito cara.
Há países em que o serviço militar voltou a ser obrigatório. Faria sentido voltarmos a esse modelo?
Sou a favor. Faz sentido o regresso se for curto e para toda a gente, homens e mulheres. Com muita flexibilidade e muita preparação dos instrutores. Não é para rastejar. Não é para fazer o que se faz nos Comandos. É para fortalecer a coesão nacional. Dar valores e princípios aos jovens, porque nós só nos unimos para defender a seleção nacional.
Mesmo sabendo que há jovens que não querem ter essa experiência militar.
Sim. Por isso é que é obrigatório. Admito, como nós tivemos, o objetor de consciência. Foi exageradamente explorado. Admito que uma pessoa tenha uma objeção a pegar em armas. Por isso é que eu digo que estes meses de serviço militar devem ser muito bem preparados e dar aquilo que um cidadão deve saber num caso de guerra ou de catástrofe. Aprender a sobreviver. Quando falta a água, quando falta a energia ou o combustível… Não é para combater.
As Forças Armadas perderam à volta de 25% do efetivo na última década. É uma situação preocupante?
Não. Quando nós falamos na “Defesa 2020”, entre 30 a 32 mil homens são suficientes. Não é um Exército de generais, nem de coronéis. As Forças Armadas têm de ter uma base maior do que a cúpula. Têm de ser uma pirâmide, porque muitas vezes mandam-se soldados embora para se pagar aos coronéis e aos generais. Isso é que é profundamente errado. Foi isso que Fernando Nogueira e agora Passos Coelho tentaram fazer e conseguimos muita coisa. 90% do que estava previsto para a “Defesa 2020” está hoje conseguido, apesar de termos um ministro que os militares chamam carinhosamente de Mr. Magoo, aquele boneco dos desenhos animados que via muito mal.
Como foi gerir, numa situação de crise e com a troika em Portugal, as reivindicações dos militares?
Foi difícil, mas tive a sorte de trabalhar com dois líderes. Um que se chama Fernando Nogueira e outro que se chama Passos Coelho. Não cederam e fomos até ao fim. No tempo do dr. Nogueira ameaçaram com tudo. Quando o dr. Nogueira passou os paraquedistas da Força Aérea para o Exercito ameaçaram que iam queimar as boinas à porta do Ministério. O ministro disse-me: ‘Ó Chaves, vêm aí os gajos queimar as boinas’. Eu disse-lhe: ‘O problema é deles, que vão ter de comprar outras. No quartel não entram sem boina’. Éramos o único país do mundo que tinha os paraquedistas na Força Aérea.
Mais tarde trabalhou com Passos Coelho numa situação mais complicada a nível financeiro e com muitos cortes…
Houve cortes significativos, mas foram todos justificados. Nós para chegarmos ao número 30 a 32 mil homens fizemos um exercício matemático de investigação. Se ler o documento da reforma da ‘Defesa 2020’ percebe que aquilo não é emotivo, é racional. Ali não há a defesa corporativa de quem quer que seja. Trata-se de adaptar às Forças Armadas as circunstâncias que o país tinha e tem neste domínio. São circunstâncias difíceis para todos e têm de ser partilhadas por todos. Não pode haver uma ilha em que haja uns beneficiados.
Já conhecia Passos Coelho?
Já o conhecia desde a sua juventude. Discuti muito com ele o serviço militar obrigatório [quando liderava a JSD].
Não acha que ele foi demasiado duro nas medidas de austeridade?
Ele tinha de ser duro. Eu vivi com Passos Coelho as piores horas da minha vida, porque ele centrava toda a sua atividade diária a resolver o problema dos dinheiros. Da dívida, dos orçamentos… Eu ouvi inúmeras vezes da boca do Passos Coelho vinte minutos da doutrina. Uma vez disse-lhe: ‘Eu já sei isso de cor’. Foi um choque tremendo para ele ter encontrado um défice quase nos 12%. Nunca esperei que ele tivesse aquela resiliência e que aguentasse. Se adicionarmos a isso todos os problemas familiares que existiram à volta dele, eu digo-lhe que não sei como é que aquele homem aguentou. Nunca quis vender a banha da cobra e nunca mentiu ao país e foi por isso que ganhou as eleições.
Faz agora um ano o assalto nos paióis em Tancos. Como viu este episódio?
Com muita preocupação, porque vi incompetência, vi impunidade, vi arrogância da parte do chefe militar e lamentavelmente o chefe militar está convencido de que é o dono da verdade e o dono do Exército. Não aprendeu nada com as coisas que lhe sucederam, quer nos Comandos, quer em Tancos, quer algumas que ainda podem vir a acontecer.
O que tornou possível que esta situação pudesse acontecer?
Foi possível por desleixo e por incúria. As pessoas deixaram de fazer aquilo que deveria ser feito. Nós estamos a falar da região do país onde há a maior concentração de efetivos e meios militares. Como é que se deixa de fazer uma ronda porque não há um jipe? Ali na zona há mais de mil jipes. Isto é inconcebível e não tem consequências. Os únicos punidos foram os desgraçados dos soldados. E como é que apareceram as munições ali tão perto? Até apareceu mais do que aquilo que se dizia que tinha sido roubado. Isto é incúria completa. Inadmissível em qualquer sistema militar, esteja ele onde estiver. Destrói a imagem da instituição. Eu imagino o que é que se comentou a nível internacional.
O ministro da Defesa, Azeredo Lopes, não atuou bem?
Um indivíduo ou exerce ou não exerce. Não pode estar sempre com desculpas. Ele tem sempre o poder de exonerar ou propor a exoneração do Chefe do Estado-Maior, que é a pessoa com quem ele diretamente lida. Enquanto não houver chefes punidos há uma coisa que é uma doença terrível da sociedade que é o sentimento de impunidade.
O Chefe do Estado Maior do Exército, Rovisco Duarte, devia ter sido demitido?
Se eu fosse ministro da Defesa tinha demitido imediatamente o chefe do Estado-Maior do Exército [Rovisco Duarte]. A seguir iríamos averiguar, mas ele saía logo.
O Presidente da República teve uma intervenção muito ativa neste caso.
Por insuficiência dos outros. O governo não avança, o ministro mete-se atrás da obscuridade e ele teve de agir para segurar… Ele é que foi segurar as pontas. Por isso é que eu digo que ele tem defendido as Forças Armadas correndo alguns riscos.
Mas tem atuado bem?
Tem atuado bem. Esta dupla é a minha esperança. Eu tinha decidido que nunca mais falaria de Forças Armadas. Só voltei a este assunto, porque vejo que há hipótese de fazer qualquer coisa. Nós temos um CEMGFA (Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armada) que é doutor. O almirante Silva Ribeiro sempre teve uma vida académica e social que o levou a ser doutor de uma faculdade pública. Devido seu percurso e às suas características, é para mim a única esperança de que a gente venha a ter Forças Armadas. É capaz de sair do marcar passo e passar ao passo de corrida. E tem a apoiá-lo o Presidente da República, que tem cumprido as suas missões de comandante supremo e tem defendido as Formas Armadas, às vezes até com grande risco. Se as Forças Armadas não aproveitam esta dupla que têm agora, então vale mais prepararem o fim. Esta é a última vez que têm uma equipa capaz de concretizar aquilo que fomos adiando desde 1976. Fizemos um bocadinho nos anos 90, fizemos um bocadinho no governo de Passos Coelho, mas agora é preciso fechar o circuito.
Morreram dois recrutas no curso dos Comandos. Tem alguma explicação para casos como este?
O caso dos Comandos é um acumular de casos. Se as pessoas procurarem as razões que levaram o então ministro Fernando Nogueira a extinguir os Comandos percebem que foi porque já naquela altura acumulávamos meia dúzia de mortos em situações muito complicadas. Aquilo não é novo. Não há necessidade de matar ninguém.
Justificam-se que sejam praticados exercícios tão duros?
Fazem-no por clubite. Há aquela história de que devem fazer sempre pior do que aquilo que lhes fizeram a eles. Há um afastamento das lideranças. Quando eu deixo a instrução entregue aos subalternos, há mais probabilidades de acontecerem desastres. Se a instrução estiver com um oficial superior as coisas não são da mesma maneira. Passei mais de metade da minha vida na Academia Militar a ser instrutor, professor e comandante. Tive alguns acidentes, obviamente, mas levar à morte… E não tratar devidamente das pessoas que já estão clinicamente numa situação desesperada e deixá-los morrer numa tenda miserável sem os evacuar para o hospital… Foi preciso chamar o INEM, que é uma estrutura civil, para fazer aquilo que eles não quiseram fazer. É inconcebível.
Que opinião tem sobre o ministro da Defesa, Azeredo Lopes?
Repito: é o Mr. Magoo. O homem não vê nem quer ver. Não tenho nada que dizer dele, porque dispensou os meus serviços com uma carta elogiosa [Azeredo Lopes extinguiu a Comissão de Acompanhamento para a Reforma da Defesa Nacional, presidida pelo major-general Carlos Chaves]. Encantado da vida. Graças a Deus ainda não estragou muito do que estava a ser feito e tem prosseguido algumas coisas. Mas não tem a força política necessária a um ministro da Defesa nestas circunstâncias. Ele, para mim, é um ajudante do ministro Santos Silva, porque quando o ministro dos Negócios Estrangeiros é forte ofusca o ministro da Defesa. É um homem das artes, esteve muito tempo numa autoridade [Entidade Reguladora para a Comunicação Social] , fez uns fretes e, portanto, pelos fretes que fez foi premiado com o lugar de ministro. Carinhosamente, os militares, que encontram sempre nomes para toda a gente, chamam-lhe o Mr. Magoo, que é aquele boneco dos desenhos animados do gajo que não vê nada.