‘Há narcotraficantes que vivem num apartamentozinho e nem carro têm’

No início dos anos 80, «a Galiza converteu-se no porto de descarga mais importante do contrabando europeu» de tabaco. Os chefes escolhiam as rotas e distribuíam anualmente o bolo desta lucrativa atividade no Grande Prémio de Fórmula 1 de Montecarlo. O dinheiro tornou-se tão abundante que era contado ao peso: 300 gramas, um quilo, três…

No início dos anos 80, «a Galiza converteu-se no porto de descarga mais importante do contrabando europeu» de tabaco. Os chefes escolhiam as rotas e distribuíam anualmente o bolo desta lucrativa atividade no Grande Prémio de Fórmula 1 de Montecarlo. O dinheiro tornou-se tão abundante que era contado ao peso: 300 gramas, um quilo, três quilos e por aí fora.

Na verdade, a costa caprichosamente recortada da região a Norte do Rio Minho e os segredos da ria ofereciam condições ideais aos contrabandistas, proporcionando esconderijos e zonas de sombra onde podiam passar indetetáveis para as autoridades.

Depois, rapidamente o contrabando de tabaco passou para outro nível: o tráfico de droga. E a riqueza dos protagonistas atingiu também outros patamares.

«Como é habitual com os novos-ricos, os chefes queriam tudo em grande. Oubiña mandou instalar as cristaleiras do paço e desenhou umas foleirices em cores berrantes», escreve Nacho Carretero, jornalista de investigação, em Farinha (ed. Desassossego). Marcial Dorado «instalou no interior [de sua casa] um Buda gigante. Nada comparado com a piscina que tinha sobre o teto de vidro do seu salão. Por sua vez, ‘Sito Miñanco’ destacava-se pelos seus carros: o chefe de Cambados tinha três Chevrolets Corvettes que passeava por Arousa acompanhado pelo seu sorriso».

 

Já ouvi usar muitas expressões: ‘neve’, açúcar’, ‘branca’… O seu livro chama-lhe ‘farinha’. A cocaína tem muitas alcunhas?

Sim. Escolhi farinha porque era uma palavra pouco conhecida no resto da Espanha, mas tinha uma sonoridade muito atrativa. Pensei que era uma boa maneira de dizer que se tratava de um livro sobre cocaína, mas sobre cocaína num contexto concreto.

Quais são os outros nomes que se usam em Espanha?

Farlopa, merca, yeyo, perico… [risos]

 

São nomes de código para que outras pessoas não percebam do que se está a falar?

Penso que estes nomes mais ou menos toda a gente conhece. Entre os traficantes também chamam muito ‘branca’, mas em cada operação costumam dar-lhe uma designação diferente. Podem falar de ‘fruta’ ou dizer qualquer coisa como ‘já te mandei os sapatos’.

 

A capa do seu livro mostra uma embalagem castanha. É assim que a coca é acondicionada quando vem para a Europa?

Sim, é o que chamamos um ‘fardo’. A cocaína normalmente manda-se em fardos, estas caixas que podem ter 3, 4, até dez quilos cada, para poderem ser transportadas com facilidade e rapidamente. Os fardos são descarregados, normalmente vêm envoltos em muitas camadas, porque às vezes são atirados ao mar e recolhidos depois. Além disso cada fardo tem um selo.

 

Um carimbo?

Sim, uma marca da organização proprietária da cocaína. Pode ser o símbolo do dólar, um animal, um emblema que eles possam reconhecer. E se a polícia captura essa mercadoria, eles veem o selo e assim já sabem que não estão a ser roubados. No final é quase como uma empresa, com toda a cadeia de embalagem, transporte, distribuição, até com o seu símbolo reconhecível – mas tudo ilegal.

 

E além destes fardos, não é por vezes transportada de forma dissimulada? Pablo Escobar, por exemplo, chegou a traficar cocaína impregnada em jeans, e quando chegava ao local ensopava-se os jeans, torcia-se e saía a droga. Há outros meios inventivos de transportar a cocaína?

Depende do tipo de transporte. Na Galiza há uma cultura do mar muito grande, os narcotraficantes são gente do mar, gostam de navegar, de ter as lanchas mais rápidas. O transporte é sempre feito pelo mar, então não precisam de esconder o produto. Mas quando a rota se faz por portos – como Valência, Barcelona ou Algeciras, no estreito de Gibraltar – aí têm de esconder, porque vai em contentores. Nesses contentores há todo o tipo de esconderijos – a imaginação é muito poderosa. Outro dia em Algeciras apanharam nove mil quilos de cocaína num contentor que iam dentro de bananas! Abriram a casca e estava lá cocaína. Às vezes vai noutros tipos de fruta, às vezes está mesmo no contentor.

 

Numa parede falsa?

Exatamente. Tudo o que possas imaginar. Às vezes está misturada com outros produtos químicos, convertida noutro material. Outro dia em Valência apanharam uma espécie de tubos de aço. Mas o aço não era aço. O recetor juntava outro produto químico e desfazia o tubo: era feito de cocaína.

 

E na Galiza, como funciona o tráfico?

Hoje os galegos têm lanchas tão potentes que muitas vezes não estão na Galiza, estão em África, na Mauritânia e noutros países. O que acontece é que sai um pesqueiro ou um cargueiro da Colômbia ou da Venezuela, ou de outro país latino-americano, e pára a meio do Atlântico, em águas internacionais. As lanchas saem de África e em dez, doze horas chegam ali, levam a cocaína para a Galiza, outras vezes para o Norte de Portugal, descarregam e voltam para África. O cargueiro ou pesqueiro segue a sua rota normal. Esta é a técnica que se utiliza na Galiza. É muito eficiente e permite transportar quantidades muito grandes de droga. Nos contentores, embora caiba muita carga, o que se faz agora é utilizar a técnica a que se chama o ‘anzol cego’.

 

O que é isso?

Utilizam contentores legais, abrem o contentor no país de origem, metem 200, 300, 500 quilos de cocaína, selam novamente com uma cópia do lacre, chega a Valência, alguém do porto comprado por eles avisa onde está o contentor, os tipos entram, recolhem a cocaína, colocam o duplicado do lacre, e nem a própria empresa pode descobrir o que se passou ali. Mas quanto podes transportar assim? 200, 300, 500 quilos. Quando os colombianos querem enviar sete ou oito mil quilos de uma vez, precisam dos galegos. Confiam muito nos galegos porque são 30 anos de aliança.

Essas lanchas de que falou são tão rápidas que a Polícia não as consegue apanhar?

É impossível.

 

E o que dizem os polícias? Sentem-se impotentes?

Absolutamente.

 

Também já ouvi dizer que podia haver submarinos a fazer o transporte.

A polícia da Galiza teve conhecimento de planos para construir um submarino, e na ria de Vigo-Pontevedra uma vez toparam um submarino. Mas não posso garantir que alguma vez tenham introduzido cocaína dessa forma. A polícia sabe que tentaram ou pelo menos planearam. Provavelmente…

 

Mas um submarino deve ser caríssimo!

Eles têm dinheiro para isso, acredita. Na Galiza têm essa cultura do mar muito grande, gostam de experimentar coisas novas, não estranharia que tentassem isso.

 

E velejadores?

Também há. Até porque os veleiros passam mais despercebidos. Mas os veleiros transportam quantidades mais pequenas, não se pode meter três ou quatro mil quilos num veleiro.

 

Historicamente a Galiza foi sempre uma região pobre, e nalgumas épocas houve até muitos galegos que vieram para Portugal para escapar à miséria. O contrabando e o tráfico de droga não inundaram a Galiza de dinheiro? Conta-se a história de um traficante, por exemplo, que gastou um milhão de pesetas numa noite de copos… Estas atividades não trouxeram prosperidade à região?

Trouxeram, porque de facto entrava muito dinheiro. Era uma das razões por que as pessoas respeitavam os narcotraficantes, diziam que eles traziam riqueza, davam emprego.

 

Davam de comer a muita gente.

Numa zona, ainda por cima, abandonada pelo Estado, com grandes problemas económicos. Portanto eles eram vistos como benfeitores sociais. Mas isto tinha uma parte de armadilha, de truque. No final era um dinheiro negro, que não revertia a favor das pessoas. Resultava em empresas de lavagem de dinheiro, empresas fictícias que destruíam o tecido industrial real. Se por exemplo um narcotraficante montava uma empresa de peixe ou de marisco que na realidade era para lavar dinheiro, ele baixava os preços – para ele era igual – e os que viviam realmente da venda de peixe ou de marisco tinham de fechar. Por isso o tecido industrial legal foi muito prejudicado no longo prazo. Foi um dinheiro que caiu do céu, sim, toda a gente ficou muito contente, mas ao fim de uns anos deram-se conta de que este não era um negócio que beneficiava de verdade a população.

 

Noutros tempos os barões da droga cometiam todo o tipo de excessos e extravagâncias. Hoje têm muito dinheiro, mas não o podem mostrar. Como é o modo de vida dos traficantes galegos, podem usufruir de todo o dinheiro que ganham?

O perfil mudou. Agora são muito discretos, não querem sobressair, muitos deles fazem uma vida que se os vires nunca dirias que têm dinheiro. Outros o que fazem é serem narcotraficantes mas também empresários e apresentam-se como empresários. 

 

Usam uma fachada?

É isso. Então podem viver bem, podem desfrutar. Mas o dinheiro, o património real está fora da Espanha. E movê-lo é muito difícil porque hoje em dia o principal foco de atuação é contra o branqueamento e os delitos fiscais. É muito difícil que um capo da droga tenha alguma ligação a uma operação ou a uma mercadoria. Então o que a polícia tenta fazer é seguir o rasto do dinheiro e tentar descobrir a ligação entre o narcotráfico e o património. Por isso muitas vezes há narcotraficantes na Galiza que têm o dinheiro num banco na China ou na Suíça…

 

Ou numa offshore…

E não podem movimentá-lo. Conheço casos de narcotraficantes galegos que têm dois apartamentos no Dubai, outra casa em Hong Kong mas na Galiza vivem num apartamentozinho e nem carro têm! [risos]

 

Já não é aquele paradigma do traficante que tem um Ferrari, uma mansão com piscina…

Alguns têm Ferrari e mansão com piscina. Mas é como te digo, usam essa fachada de empresários. Mas não é como nos anos 80 e 90 na Galiza, em que queriam mostrar o que eram, andavam de Ferrari, viviam num castelo, queriam exibir a sua riqueza. Agora sabem que isso é como um cartaz a chamar a polícia para os vir investigar. Têm a sua vida, têm a sua riqueza, mas da porta para fora são muito discretos.

 

Tirando o produto envolvido, a diferença entre o contrabando clássico – de tabaco, por exemplo – e o narcotráfico foi sobretudo a violência?

Felizmente a violência nunca foi um problema na Galiza. No contrabando quase não havia, com o narcotráfico aumentou um pouco. Também porque o produto começava a chegar da Colômbia, e os colombianos, quando havia um problema, recorriam à violência. Mas foi sempre foi uma violência entre eles, nunca afetou os vizinhos, nunca afetou a população galega. Eles também sabiam que no momento em que a violência estalasse, a polícia e o Estado iam ter muito mais atenção, o negócio podia estragar-se – um pouco o que está a acontecer agora no estreito de Gibraltar, em Espanha. Houve muita violência, toda a Polícia foi para lá, estão muito vigiados agora, e os traficantes galegos estão contentes por o foco mediático se ter mudado.

 

A Galiza transformou-se na porta de entrada da cocaína na Europa, a certa altura quase 80% entrava pelas rias galegas. Por causa disso também se consumia mais ou estava apenas de passagem?

Muito mais.

Isso foi um flagelo social?

Foi um problema muito grande. E continua a ser. Na Galiza moram dois milhões e meio de habitantes, não são muitos, e dentro desse espaço limitado estavam as maiores organizações de narcotransportadores da Europa. A cocaína não ficava ali, ia para Madrid ou seguia para a Europa. Mas uma parte fica sempre ali. Quando eu era novo era normal sair à noite e ver cocaína. Ter acesso a cocaína era demasiado fácil. Só quando saí da Galiza é que percebi que isso não era normal. Tenho muitos amigos que tiveram muitos problemas com a cocaína. Na Galiza temos o que chamamos uma geração perdida, uma geração de rapazes nascidos na década de 70 que foram vítimas da enorme presença da droga. Foi isso que fez a sociedade levantar a voz e as mães enfrentarem os narcotraficantes.

 

Mas há pessoas que consomem a vida toda e têm carreiras bem sucedidas. São empresários, jornalistas, atores…

Hoje há mais informação. Antigamente não havia tanta informação. A gente nova consumia cocaína mas não sabia exatamente o que estava a fazer. E depois provavam heroína ou injetavam cocaína, não sabiam bem como era. Agora há mais informação, podes compatibilizar a vida profissional com o consumo. Isto era gente nova que não tinha trabalho, que não tinha futuro, era um caldo muito bom para que a droga exercesse um efeito pernicioso.

 

Além de o acesso ser fácil a droga era mais barata?

Também. Nos anos 80 um grama de cocaína custava na Galiza metade do que custava em Madrid. Era muito mais barata e muito mais pura, mais perigosa.

 

Tendo tanta oferta, estando tão perto, nunca teve curiosidade?

De provar?

 

Sim.

Claro que tive. Com 16, 17, 18 anos, sais à noite, estás com os amigos, e provas, claro que sim. Depois cada um vai fazendo o seu caminho. Também vais vendo o que acontece aos amigos que consomem muito, apanhas sustos, vês amigos que vão parar à prisão, alguns tiveram problemas de saúde muito graves ou acabaram mesmo por morrer. Mas sim, a atração é muito normal.

 

Presumo que este seja um tema difícil para um jornalista investigar. Recebeu ameaças, houve quem o tentasse impedir?

Não. Sei que há um narcotraficante galego que tem dito por aí que não gostou do livro, mas não recebi ameaças. Agora que o livro se tornou muito famoso em Espanha sabem que se fizerem ameaças vão chamar a atenção e criar um problema para o seu negócio. Felizmente para mim, preferem passar despercebidos.

 

Este livro não coloca lhes problemas uma vez que chama a atenção para o tráfico, denuncia, fala de nomes?

Quando estava a escrever nomes de pessoas que continuam ativas pensei que podia ter um problema. Mas o que vais fazer? Tens de escrever as coisas. E também sei que alguns têm falado porque não aparecem [risos]. Dizem: ‘Este livro está incompleto. Eu não apareço!’. Há também um mundo de egos.

 

Há também rivalidades entre as famílias?

Muito grande.

 

Como explica então que não haja violência como acontece noutros países?

Sabem que se começa a haver violência estragam o negócio. Querem ter o assunto tranquilo, e também há negócio que chegue para todos. Não precisam da violência. Não há um território que tenham de controlar e de defender. Antes da violência preferem atraiçoar-se. Chamam a polícia e dizem: ‘Este tipo vai meter três mil quilos’. Assim conseguem eliminá-lo, mas sem chamar a atenção de ninguém.

 

Só usam métodos legais!

[risos] No final, são maus, mas são inteligentes.

 

E há muitos traficantes presos agora?

Sim, o que se passa é que os mais importantes não. 

 

Só os pequenos?

Claro, só os que não têm tantos meios, tantos contactos, que não tomam tantas precauções. Ou estão mais desesperados para fazer uma descarga. Os grandes têm alianças muito consolidadas, contactos com os poderosos, é muito difícil que cometam um erro. Diria que hoje os narcotraficantes mais poderosos da Galiza não têm uma só acusação nos tribunais por narcotráfico. Aos olhos da justiça estão limpos.