Opresidente do Mecanismo dos Tribunais Penais Internacionais, sediado em Haia, considera grave que António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, tenha supostamente cedido a pressões do Governo turco para não renovar o mandato de um juiz desse Tribunal. O referido juiz está processado na Turquia por suspeita de ligação à tentativa de golpe de Estado de há dois anos.
Todos os juízes do Tribunal Penal Internacional foram recentemente reconduzidos por Guterres para um novo mandato de dois anos, seguindo os protocolos da instância penal mundial, com exceção de Aydin Sefa Akay – que em setembro de 2016 foi detido pelas autoridades turcas e condenado em junho do ano seguinte por um crime sui generis.
Acontece que, na sequência da tentativa de golpe de Estado, o Governo turco criou uma lista de inimigos com base num único ponto: uma aplicação de telemóvel. O juiz Akay, juntamente com milhares de pessoas – entre elas magistrados, jornalistas ou artistas -, foi acusado de terrorismo por ter instalado no seu telemóvel uma aplicação de troca de mensagens encriptadas Bylock, que teria sido usada para planear o golpe.
A transparência dos processos relacionados com a tentativa de golpe de Estado tem vindo a ser largamente posta em causa dentro e fora da Turquia. Durante o período em que esteve preso, Akay manteve as funções enquanto juiz do Tribunal de Haia, onde permaneceu 15 anos, vindo do Tribunal para o Ruanda.
Presidente do Tribunal exprime ‘graves preocupações’
O presidente do Tribunal Penal Internacional, o americano Theodor Meron, emitiu esta semana uma declaração expressando o seu «profundo lamento, e discordância respeitosa, com a decisão de não reconduzir (…) o juiz Akay», acrescentando as suas «graves preocupações acerca das consequências de longo prazo que esta decisão terá para a nossa instituição e para a justiça penal internacional de forma mais global». Com efeito, a não recondução de Akay é vista como um atentado à independência da magistratura do Tribunal, já que os Estados têm competência para indicar juízes mas não para exigir o seu afastamento.
Afirma Meron que «a situação suscitou sérias questões quanto a saber se as imunidades de que gozam os juízes e a independência judicial que estas imunidades se destinam a proteger podem efetivamente ser garantidas para instituições como o Tribunal Penal Internacional, no âmbito do qual os juízes atuam nos países da sua nacionalidade».
Sabendo-se que a decisão de não reconduzir Akay foi tomada por Guterres com base em informação que lhe foi fornecida pelo Governo turco – segundo a qual o juiz já não preenchia as exigência do estatuto do Tribunal, em virtude das suas alegadas convicções -, Meron afirmou que «a aquiescência com a posição avançada pelo Governo turco representa uma aceitação, de facto, de ações de um Estado em contravenção da imunidade diplomática garantida pelas Nações Unidas, tratando-se de um perigoso precedente».
O mesmo responsável declarou ainda que «há uma grande diferença entre o direito estatutário dos Estados em nomear seus nacionais para eleição e as possibilidades, bem mais indeterminadas e potencialmente políticas e arbitrárias, de um procedimento extraestatutário e vago que permite aos Estados advogar a remoção ou não renovação dos juízes seus nacionais ou até, potencialmente, de juízes de qualquer nacionalidade», acrescentando: «Se se permitir aos Estados agirem contra um juiz em violação do ordenamento jurídico internacional – um princípio fundamental do Direito -, a integridade do nosso Tribunal ficará, basicamente, em risco, assim como todo o projeto de justiça penal internacional».
Pressões políticas ou respeito pelos estatutos?
Confrontado pelo SOL sobre as razões que levaram ao afastamento de Akay, o gabinete de António Guterres explicou que a decisão de não reconduzir o juiz turco teve por base aquilo que consta dos estatutos do Tribunal Penal no que respeita aos requisitos exigidos aos seus membros:
«No artigo 9 dos estatutos, lê-se que ‘os juízes devem ser pessoas de caráter moral elevado, imparciais e íntegras, que possuam as qualificações exigidas nos respetivos países para que sejam apontados para os cargos judiciais mais altos’. De acordo com a lei turca, uma pessoa que esteja a ser investigada ou que tenha sido condenada por um crime punido com três meses de prisão ou mais não é elegível para estes cargos», explicou ao SOL Farhan Aziz Haq, adjunto do porta-voz de António Guterres.
«Como o juiz Akay foi condenado a sete anos e seis meses de prisão, já não pode ser reconduzido para um alto cargo judicial na Turquia. Consequentemente, não obedece atualmente aos requisitos exigidos aos juízes que compõem este Tribunal, respeitando o artigo citado anteriormente e, por isso, não pôde ser reconduzido», acrescentou.
Ora, fora exatamente esta a justificação dada a Theodor Meron pelas Nações Unidas aquando da não recondução do juiz turco, a qual levou o presidente do Tribunal a insurgir-se e a emitir esta semana o comunicado onde acusa Guterres de ter sido coagido pelo Estado turco.
Confrontado pelo SOL sobre as alegadas pressões políticas feitas pelo Governo de Erdogan, o adjunto do porta-voz de Guterres não teceu qualquer comentário, preferindo referir outros órgãos ouvidos pelo secretário-geral da ONU antes de tomar a decisão: «Como é exigido pelos estatutos, o secretário-geral consultou o presidente do Conselho de Segurança e o presidente da Assembleia Geral quanto à recondução dos juízes deste Tribunal, falando em particular da situação do juiz Akay. Ambos tomaram nota da ação proposta pelo secretário-geral».