Demónios sobre rodas

Todos os anos, quando vejo as imagens das motas na televisão, penso que a concentração motard de Faro daria um belo tema de reportagem. Talvez isso se deva à leitura, em 2007, de Hell’s Angels. Publicado pela primeira vez em 1967, o livro de Hunter S. Thompson teve na origem numa encomenda que lhe foi…

Todos os anos, quando vejo as imagens das motas na televisão, penso que a concentração motard de Faro daria um belo tema de reportagem. Talvez isso se deva à leitura, em 2007, de Hell’s Angels. Publicado pela primeira vez em 1967, o livro de Hunter S. Thompson teve na origem numa encomenda que lhe foi feita pela revista The Nation de um artigo sobre o perigoso e fechado mundo das motas.

À época, o grupo era frequentemente notícia por causa de desacatos, comportamentos violentos, agressões a polícias, homicídios e violações de raparigas adolescentes. Não era fácil para um jornalista penetrar nesse mundo e sair ileso. Mas Hunter Thompson também não era anjinho nenhum, como aliás demonstra à saciedade a sua obra mais conhecida, Delírio em Las Vegas, em que o vemos a consumir drogas, a conduzir de forma selvática e a praticar atos de vandalismo puro.

Arranjou uma mota e iniciou conversações com os líderes.

Na altura, os Hell’s Angels eram considerados uma espécie de hunos (de cujo líder, Átila, se dizia que onde o seu cavalo pisasse jamais voltaria a nascer uma erva). Sobre eles circulavam na imprensa e no espaço público várias histórias, rumores e lendas. Hunter Thompson brincou com isso, como se pode verificar nesta passagem do seu livro: 

«Eles são incrivelmente perversos. Os agentes da autoridade já compararam a sua astúcia à do gambozino, um animal que muitos já viram, mas poucos conseguiram apanhar. Isto acontece porque o gambozino tem a capacidade de se transformar, quando enfrenta a captura, em qualquer outra coisa totalmente diferente. Os únicos outros animais capazes de fazer isto são o lobisomem e os Hell’s Angels, que têm muitos traços em comum. A semelhança física é obvia, mas muito mais importante é o fator transformigação, a estranha habilidade de alterar a sua própria estrutura física e, assim, ‘desaparecer’. Os Hell’s Angels são muito discretos acerca disto, mas é um facto sobejamente conhecido entre as autoridades policiais».

Depois da reportagem da The Nation, Thompson recebeu várias propostas para escrever um livro.

Para horror da sua mulher, recebia frequentemente membros do gang no seu apartamento em São Francisco e, quando era preciso pô-los na ordem, ameaçava com a caçadeira que tinha na parede. O convívio acabou mal, com Thompson a ser espancado por causa de um comentário à forma como um dos motards tratava a sua namorada. Conhecendo os Angels e a sua fama de assassinos cruéis, podia ter corrido bem pior.