Fernando Nunes da Silva. ‘Manuel Salgado é o verdadeiro presidente da CML’

O antigo vereador da Mobilidade da Câmara de Lisboa abre o livro e explica por que abandonou o cargo, numa entrevista cuja segunda parte será publicada na próxima edição do SOL.

Saiu da CML, onde era vereador da Mobilidade, porquê?

Saí no final do mandato de 2013, por uma razão extremamente simples e compreensível: o Manuel Salgado na altura fez um xeque-mate ao António Costa em que exigiu ficar com todas as obras e com todo o pelouro das Obras, inclusivamente com a rede viária: ‘Ou é tudo ou nada’, são palavras textuais dele. E isso significava que, por exemplo, eu que tinha o pelouro da Mobilidade, para mudar um sinal na cidade de Lisboa tinha de fazer um ofício para o Manuel Salgado para ele dar instruções às brigadas para fazer a mudança de sinal de trânsito, que é uma coisa completamente incompreensível. Estamos a falar de 2011 e isso era importante porque havia um conjunto de obras relativamente emblemáticas e do ponto de vista mediático com uma certa força – a Casa dos Bicos, a Casa-Museu Júlio Pomar, os Terraços do Carmo do Álvaro Siza -, onde eu tinha levantado algumas objeções a alguns caprichos dos senhores arquitetos que implicavam uma duplicação dos custos iniciais das obras, que eu achava que não devia transigir acerca disso. Na altura, o Manuel Salgado, que era a responsável por esse projeto, achava que isso podia pôr em causa a conclusão dessas obras emblemáticas. Por outro lado, tinha havido um desaguisado bastante forte sobre aquele antigo restaurante de Monsanto, o Panorâmico, onde se queria fazer o quartel central do Regimento de Sapadores de Bombeiros, com um investimento de 40 milhões de euros, uma coisa completamente louca, com três caves escavadas em rocha, em que todos os bombeiros tinham um lugar de estacionamento privativo – um custo completamente faraónico e eu disse: ‘Nem pensar’. Disse que não assinava aquele tipo de despesa. Portanto, havia esse tipo de coisas e  Costa acedeu ao ultimato de Manuel Salgado que ficou com o pelouro todo das Obras. E eu quis sair. Estávamos em março/abril, reuni com os Cidadãos Por Lisboa e disse que naquelas condições me ia embora. O Salgado fica com tudo, então eu fico com nada. E isto lançou o pânico nas hostes, a Helena Roseta ficou completamente fora de si, a dizer que se eu me ia embora era o fim da coligação e que não eu podia ir sem ela também renunciar aos pelouros – e ela estava a fazer um trabalho importantíssimo. Era verdade, ela estava a fazer um trabalho muito importante ao nível da Habitação e pediu-me que ponderasse. E eu fiz um dos meus vários erros políticos, este foi mais um na CML, e disse que ficava mesmo sem poder nenhum. Passei dois anos em que tinha dinheiro no orçamento, mas as verbas nunca eram disponibilizadas e não conseguia fazer obra nenhuma.

Mas estava em que pelouro nessa altura?

Continuava na Mobilidade, tinha era deixado de ter o das Obras, que me tinha permitido fazer algo de que as pessoas não se lembram. Tinha conseguido convencer António Costa a fazer um investimento de sete milhões e meio de euros – em cada ano – durante quatro anos para reabilitar a rede viária da cidade de Lisboa, que estava toda partida. Para se ter uma ideia, duas viaturas caíram num buraco porque se abateu o solo. Se um dos carros não estivesse mal estacionado, a Câmara teria pago uma bela indemnização. No primeiro ano conseguimos gastar sete milhões e 200 mil, no segundo ano eu deixei de ter o pelouro a partir de abril e caiu para três milhões e tal, no quatro ano nem chegou aos dois milhões e no quinto ano subiu aos cinco milhões porque era ano de eleições – não foram obras estruturais, foi mais alcatroar e pintar para ficar bonito para as eleições. Era extremamente importante ter estas duas componentes para poder gerir simultaneamente as obras no espaço público e gerir toda a estratégia de mobilidade que estava a ser definida. Cometi o erro de lá ficar e as únicas coisas que consegui fazer foi quando transferi verbas com projetos para as juntas de freguesia, nomeadamente do PS e do PSD, em que fiz as chamadas zonas 30. E como aí eram as juntas que faziam pressão sobre o António Costa, o Salgado tinha de dar a luz verde a isso.

E o que é a zona 30?

São bairros residenciais em que se introduz um limite de velocidade de 30 km/h e se monta um conjunto de dispositivos em que se desincentiva as pessoas de andarem depressa. Não é só um sinal, tem gincana, tem lombas à entrada, mudança de pavimento, a largura da estrada diminui para o carro passar devagarinho. E é extremamente importante porque na altura nós tínhamos as estatísticas da PSP que mostravam que a maioria dos acidentes de atropelamentos com vítimas graves ou mortos era de velhos e crianças, exatamente nos bairros de Lisboa. 

 

Mas continuava a sentir-se limitado…

Nestas condições, não podia continuar e no final do mandato fui-me embora. Pediram-me para ficar na assembleia municipal, para não dar muito nas vistas do ponto de vista político e aceitei. No meu tempo não tínhamos maioria absoluta na assembleia municipal e isso é extremamente importante. Por exemplo, a passagem da EMEL a empresa de mobilidade, deixando de ser apenas empresa de estacionamento e a alteração de uma série de regulamentos, como benefícios para os residentes, como ter três zonas diferenciadas de pagamento do estacionamento, permitir que se pudessem fazer obras ao nível de elevadores públicos para atravessar a via férrea, só foi possível através dessa mudança na EMEL. A primeira proposta foi chumbada na assembleia municipal e eu tive de negociar com o CDS e com o PSD, porque o Bloco e o PCP estavam radicalmente contra e, portanto, havia pouco a fazer aí, porque eram contra uma empresa municipal. 

 

Então e depois?

Um ano depois conseguiu-se aprovar a nova EMEL. A partir do momento em que no mandato de 2013/17 há maioria absoluta quer na câmara, quer na Assembleia Municipal (AM), isto foi o descalabro. O Salgado, que é o verdadeiro presidente da câmara – o Medina é apenas um porta-voz – faz o quer. Eu estava a presidir a uma comissão, a de Transportes e Mobilidade e era vice na do Urbanismo, e sabíamos das coisas pelos jornais, é impensável. A AM é o órgão de poder numa câmara, o executivo deve ser a CML que executa aquilo que sai da AM. E houve uma inversão completa disto, porque como ele tinha maioria nos dois sítios tomava as decisões e depois a Assembleia retificava sem pestanejar. E houve duas coisas que foram a gota de água: por um lado, as zonas 30 que estavam no Plano Diretor Municipal consagradas como uma das estratégias já não eram uma preocupação da CML, eram um problema das freguesias, a estratégia de mobilidade tinha sido deitada fora, e a outra foi aquela maluqueira da segunda circular, transformar a segunda circular numa avenida urbana, retirando uma via em cada sentido. 

Diz maluqueira por ser uma artéria importante?

Viu-se o que foi a obra da EPAL neste verão na segunda circular. Um caos completo em tempo de férias. Agora imagine-se o que era aquilo em permanência em Lisboa e nos dois sentidos. Eu deixei na altura um projeto de intervenção na segunda circular que tinha as arborizações todas à volta, a correção daquelas entradas malucas de autoestrada que passavam a ser entradas mais urbanas, mas nunca me passou pela cabeça reduzir a capacidade porque não há alternativa na cidade de Lisboa à segunda circular.

Mas por que acha que existe a intenção de fazer essa obra?

O Salgado…

Mas porque insiste que é Salgado e não Fernando Medina?

O Medina não manda nada. O Medina em termos de município de Lisboa não vale nada. Isto é, não conhece Lisboa, não tem a cultura de Lisboa e para ele Lisboa é apenas um lugar de recuo porque por vários motivos não pôde ir mais longe a nível do PS, era demasiadamente próximo de Sócrates, e, por outro lado, neste momento é um trampolim para outros voos. Aliás, não é por acaso que numa entrevista de duas páginas ao Expresso termina com uma frasezinha que deixa cair a dizer que está disponível para continuar. Quer dizer, um tipo que quer assumir o terceiro lugar de poder do país – Costa dizia que tinha passado por vários ministérios e que a CML era muito mais complexa e tinha muito mais capacidade de intervenção no quotidiano das pessoas do que muitos dos ministérios por onde tinha passado – e está de alma e coração na CML não deixa duas páginas de entrevista para depois no fim dizer que está aqui e quer continuar. Quer dizer, isto não é assim, tem de haver um projeto e uma visão, o que nunca se ouviu. O único que tem um, de facto, é o Salgado. E tinha tão forte que o Manuel Maria Carrilho – o Salgado era para ser o número dois do Carrilho – quando se candidatou à Câmara de Lisboa não o aceitou nas listas. O Salgado tinha um projeto de cidade perfeitamente definido e ele queria ser o protagonista e portanto houve um choque de dois egos. Quando o Costa concorreu à câmara aceitou as exigências do Salgado porque naquela época o grupo Espírito Santo foi extremamente influente no PS. E o Costa partiu para aquelas eleições, em 2007, numa situação extremamente frágil, a competir com uma pessoa altamente carismática e com um nível de penetração nas camadas populares de Lisboa fortíssima como era o caso de Santana Lopes, que tinha ganho a João Soares. O Costa assume esse combate e precisa de apoios, não só financeiros mas do ponto de vista da chamada rede de suporte de candidaturas com este peso. E isso veio a verificar-se, alguns dos meus erros políticos na câmara aconteceram quando não soube que o grupo Espírito Santo tinha interesse nos hotéis Tivoli e numa série de terrenos e comecei a votar contra as propostas urbanísticas na CML sobre isso, e aí assinei a minha sentença de morte. Não nos podemos esquecer de que Manuel Salgado é primo direito de Ricardo Salgado e sempre foram muito próximos. 

Então e a segunda circular? Escreveu-se que se demitiu por causa das obras anunciadas.

Existe um panfleto a circular na CML que é à semelhança daquela figura do Marx, Estaline, Lenine e o Mao: a malta fez uns bonecos que era o Marquês de Pombal, o Ressano Garcia, o Duarte Pacheco e o Manuel Salgado. O grande objetivo do Manuel era ser o quarto homem das grandes mudanças da cidade de Lisboa. Isto é o projeto dele e eu conheço-o, sei como é que ele o defende, etc. Portanto, isso faz parte de um determinado conceito de cidade e de arrogância muito grande de classe em relação àquilo que podemos chamar a classe popular e média baixa, de que não têm de se meter nestas coisas mais complexas. A visão de cidade é para os iluminados e a segunda circular era apenas uma das peças da transformação da cidade de Lisboa numa cidade de boulevards, com um espaço público altamente qualificado e essencialmente virado para a classe média, média alta e para o turismo de um certo nível. Esta é a visão subjacente e é possível provar isso através das propostas apresentadas pelo Salgado em 12 anos de mandato – nunca houve ninguém na CML, antes ou depois de Abril, tantos anos consecutivos e com tanto poder. Aliás, não é por acaso que Lisboa não é todo o concelho de Lisboa, a CML só intervém numa parcela restrita da cidade. É a frente ribeirinha – mas só a frente, o que está para trás não interessa. Além da frente ribeirinha, é o eixo central: ia até ao Campo Grande e agora faz a grande ligação à Alameda que ele desenhou, que ainda é do tempo dele, a grande alameda da Alta de Lisboa – desenho da Risco e do Manuel Salgado. É isto, é a zona histórica, as Avenidas Novas do século XIX, as duas frentes ribeirinhas e o eixo central. 

O resto não conta?

O resto não é cidade. A proposta para o metro também é do Manuel Salgado já que o ministro – que foi meu aluno e conheço muito bem – me diz que é do Porto e conhece menos as necessidades de Lisboa. O que eu fiz foi perguntar quais eram as prioridades do metro ao presidente da CML, que vinha com o Salgado e me disse que era a linha circular. A linha circular mostra bem o que é a visão da cidade dele, que é apenas a do turismo e dos grandes negócios imobiliários. E eu não acredito que o Salgado meta dinheiro ao bolso. Pode ser que encaminhe negócios fora de Lisboa para o Risco e para o filho para manter a família.

Então mas isso não é a mesma coisa?

Não. Uma coisa é fazer o que o Robles fez, querer meter diretamente dinheiro ao bolso. Outra é numa sociedade como a nossa em que o conhecimento e uma palavra aqui e acolá tem influência. Eu não faço isso, aliás, para ter uma ideia, eu estive quatro anos e meio à espera de uma licença de utilização de um acrescento de um quarto e uma casa de banho de uma casa dos meus pais que herdei.

Por que acha que isso acontece?

Porque há duas câmaras. Há a da via verde, para os grandes negócios imobiliários e para aqueles que é preciso ter na mão, como é o caso do Robles – o Robles não percebeu que no dia em que o Salgado lhe aprovou aquele empreendimento em menos de um ano que ficou completamente nas mãos dele. E depois há o resto, que é terrível. Você não pode imaginar o que é o processo kafkiano do licenciamento em Lisboa para quem não contrata arquitetos da câmara ou quem eles indicam para quem não tem a via verde.

Então mas está a dizer que não há qualquer coisa esquisita no funcionamento da CML?

Então não há? Mais do que há. O que estou a dizer é que o Salgado não mete dinheiro ao bolso, que é uma coisa diferente. 

A sua conclusão é que as grandes obras feitas até 2017 na sua maioria são um disparate.

Os objetivos últimos são interessantes, que é tornar a cidade mais acolhedora do ponto de vista do espaço público, feitas de forma errada do ponto de vista técnico. E isso tem muito que ver com uma espécie de ódio visceral do vereador Salgado a tudo o que seja engenharia e à constituição de um gabinete que é essencialmente de arquitetos e urbanistas que acham que basta consultar as normas técnicas para saber projetar espaço público e que se enganaram. Por exemplo, nos raios de curvatura da Avenida da República, em que os camiões do lixo para poderem recolher o lixo nos restaurantes tinham de passar por cima dos passeios. A obra ainda estava na primeira semana de execução e já estava com reformulações. Outras situações aberrantes como o espaço da via entre a largura da via e o estacionamento em espinha não era suficiente para fazer a manobra. A intervenção ali foi uma anedota e teve três versões diferentes durante as obras porque era só arquitetos e paisagistas sob alçada do Salgado – criou um gabinete próprio fora da estrutura da CML para trabalhar no espaço público – onde não havia engenheiros.

Mas para pedir aquela licença na casa dos seus pais também teve de recorrer a esse gabinete?

Não, não, mas esperei mais de quatro anos pela legalização. No bairro económico do Restelo, há uma coisa absolutamente aberrante: a esmagadora maioria das obras que foram licenciadas desde que Salgado é responsável, são obras que não respeitam o Plano Diretor Municipal nem os regulamentos urbanísticos da CML. Têm área a mais de construção, têm altura de construção a mais e tem área permeável a menos. Para mim, a questão fundamental é esta: eu até posso concordar em parte com a visão que o Salgado tem, como três ou quatro áreas da cidade em que eu trabalhei, por exemplo, com a Parque Expo. Aquilo que se vê hoje na frente ribeirinha foi desenhado na Parque Expo com uma equipa chefiada pelo Vassalo Rosa e de que eu tive a honra e o orgulho de fazer parte. E fomos nós a desenhar a zona da Expo até Santos. O José Miguel Júdice esteve indicado para presidir à Frente Tejo para pôr o plano em prática e nós trabalhámos com ele, mas o Júdice de repente bate com a porta porque estava à espera de que a sua nomeação fosse retificada. A história é muito simples: quando o Costa avança para a câmara e leva o Salgado, o Salgado diz que a frente ribeirinha é dele. E o Júdice disse que ele podia ter a sua ideia, mas que tinha sido nomeado pelo Governo e era uma entidade acima da câmara e portanto tinha a sua autonomia e não admitiu. Depois, a extinção da Parque Expo como gabinete de projetos é uma decisão da Cristas que ninguém percebeu. O Governo tinha acabado de tomar posse e era preciso reduzir custos e então decidiram acabar com a Parque Expo. Só para ter uma ideia, a Parque Expo estava na altura a fazer trabalhos na Argélia, Tunísia, Brasil, Angola, China, tinha uma carteira de encomendas grande e só no ano passado é que se conseguiu fechar as contas. Porque acabou? Foi o Salgado e a Risco. Ele há muito tempo que defendia a extinção da Parque Expo e viu ali uma oportunidade. A Risco hoje é do filho do Salgado, da ex-mulher do Salgado e de dois arquitetos antigos. O Salgado retirou-se mas na prática assegurou a sua continuidade.

E fazem grandes projetos para Lisboa?

Os únicos que têm são a ampliação do Hospital da Luz, com a desculpa de que como tinham feito o primeiro projeto eram eles que faziam a expansão, o que não tem nada que ver uma coisa com a outra, porque qualquer gabinete de arquitetura pode fazer uma expansão, mais ainda quando a expansão é tornada possível por uma tomada de posição da CML que hoje se sabe que foi uma aldrabice.

Porquê?

Depois do que contei sobre aquela ideia do quartel em Monsanto, a ideia que houve foi concentrar o corpo forte do quartel na zona de Chelas onde é a sede dos Sapadores Bombeiros e ter o modelo americano e anglo-saxónico que é pequenos postos nos vários bairros da cidade com três ou quatro veículos para intervenção rápida enquanto não chegam reforços mais pesados, se se justificar. Como o quartel de bombeiros que existia na zona do Hospital da Luz estava com problemas de infiltrações e precisava de obras, havia a oportunidade de o vender por uma pipa de massa, e isso permitia-nos construir cinco desses quartéis onde são mais necessários. Achei que isso era uma boa solução, mas tudo se complicou na primeira proposta que só não foi a votação porque a Helena Roseta se apercebeu e avisou o Costa que a mandou retirar: a proposta era vender o terreno para ampliação do Hospital da Luz. Portanto, faz-se uma hasta pública já dizendo quem o é comprador. E foram eles que ganharam. Depois, o convento do Beato é outra justificação que não se percebe. Disseram que tinham feito um estudo prévio e não faz sentido nenhum, era o mesmo que dizer que os dois módulos que faltam no CCB têm de ser feitos pelo Gregotti e o Salgado, não faz sentido. Fizeram o projeto da parte que foi construída e a partir daí qualquer arquiteto pode fazer o projeto seguinte.

Diz-se muito que os arquitetos do Porto não ganham nada em Lisboa.

Isso não é verdade, o Souto Moura ganha. Mas é mais complicado do que isso. Nesta visão autocrática do Salgado, da sua cidade, ele é que escolhe quem são os protagonistas para o seu desenho. Não acha estranho que 12 anos depois não haja um único concurso público em Lisboa? O único que houve foi quando eu estava à frente da EMEL e lancei um concurso para adaptar um antigo edifício do jornal A Capital para fazer um parque de estacionamento e fazer um museu do rock’n’roll com o Rui Veloso e os Xutos.

Onde era?

No Bairro Alto, no antigo edifício d’A Capital.

Mas não foi para a frente?

Não. Como o júri era relativamente independente, porque era eu que estava à frente e não o Salgado, quem ganhou foi o arquiteto Barreiros Ferreira que tinha ganho ao Salgado a nova Feira das Indústrias de Lisboa no Parque das Nações. O Salgado tem-lhe um ódio de morte. Barreiros Ferreira ganhou o primeiro prémio – que significava que lhe pagavam o projeto de execução e era construído – e quatro anos depois o projeto de execução não tinha sido pago. E só quando o João Paulo Saraiva entrou para as finanças na CML é que consegui que lhe pagassem pelo menos o projeto que ele tinha apresentado e nunca mais se falou em construir o que quer que fosse. 

Mas ele atribui diretamente a arquitetos?

Ora aí está. Não é a CML que atribui, quem atribui agora é a EMEL, que passou para ele, é a Associação de Turismo de Lisboa – liderada pelo Medina – e indicações a privados ou entidades públicas como o Porto de Lisboa. A partir do momento em que, por exemplo, o Carrilho da Graça ganhou o concurso do terminal, tudo o que se passa à volta do terminal passa a ser atribuído ao Carrilho da Graça sem nenhum concurso.

Mas por que isso não é investigado?

Porque a ordem dos arquitetos está capturada pelos arquitetos estrela que é a quem o Salgado atribui. Não é estranho que em 12 anos, por exemplo, Gonçalo Byrne não tenha nenhum projeto em Lisboa? A empresa Estoril Sol, quando era para demolir o hotel e construir outra coisa, primeiro contactou o Salgado, mas esse projeto não foi para a frente. Depois, contactou o Byrne, que fez o projeto e o Salgado nunca mais lhe perdoou. E por isso Byrne não trabalha em Lisboa. E sei que ele esteve quase para fechar o gabinete porque não tinha quase trabalho nenhum. O que o safou foi ganhar concursos na Alemanha e na Suíça.

E ninguém denuncia?

Ninguém, porque o poder do Salgado é mesmo muito grande. O Salgado teve o desplante de dizer numa reunião de um projeto com um colega já falecido, Vasco Massapina, na zona de Sete Rios ao pé da C. Santos, em que estando presente o arquiteto da C. Santos e os administradores, o Manuel Salgado disse que enquanto o arquiteto fosse o Vasco eles não teriam nenhum projeto aprovado para ali. Assim, numa reunião com o cliente. Não se esqueça que o Manuel é primo do Ricardo Salgado, são muito próximos e o Ricardo era mesmo o dono disto tudo, não tenha dúvidas. O Manuel já é o dono disto tudo na CML. E, portanto, enquanto o Ricardo e a teia não for efetivamente condenada, as pessoas não se querem meter nisto.

Acha que Manuel Salgado pode ser condenado?

Sabe porque saí da Assembleia Municipal? Porque o apanhei numa coisa que dá perda de mandato e eventualmente cadeia, que é o edifício novo da Fontes Pereira de Melo. O processo esteve na PJ… O terreno é do Armando Martins, dono do Atrium Saldanha. Ainda no tempo do Abecassis ele ligou ao Armando a dizer que lhe comprasse o terreno. Ele comprou, fez vários projetos, e durante 20 e tal anos nunca lhe aprovaram nenhum projeto, por uma razão extremamente simples: os vários PDM só admitiam à volta de 10, 12 ou 14 mil metros quadrados de construção e naquela altura, para viabilizar o que lá estava, era preciso um pouco mais – 16 ou 17 mil. E um dos Espírito Santo com que ele trabalhava aconselhou-o a fazer uma hipoteca sobre o terreno, e ele fez, uns 15 milhões. Entretanto há o estoiro da economia, tem uma proposta da KPMG que estava no Monumental e precisava de expandir. Isto já se passa com o Salgado, ele diz não ao projeto por causa do PDM. E há uma carta em que os homens da KPMG escrevem ao Armando Martins a dizer que não vão falar mais com a CML porque não são pessoas de confiança. O Armando Martins faz um pedido de informação prévia para ficar com um documento escrito, que é assinado pelo Salgado e diz que se pode chegar a 12 mil metros quadrados para escritórios ou a cerca de 14 mil e tal para habitação. E o Armando entregou o terreno por um euro ao Banco Espírito Santo.

Mas porquê?

Tinha a hipoteca e não tinha como pagar. No ano seguinte, o mesmo Manuel Salgado aprova 24 mil metros quadrados de construção ao Banco Espírito Santo. E é por isso que saio, porque entreguei um dossiê disto ao Medina com os documentos todos numa reunião de duas horas e tal. O Medina agradeceu muito e não fez nada. O Vítor Gonçalves do PSD entregou ao Costa, porque o Costa julgava que era uma guerra pessoal minha com o Salgado. Mas o Costa estava de saída e já não conseguiu fazer grande coisa, o terreno já tinha sido entregue.

Por que é que Armando Martins não processou Salgado?

Foi a meu conselho, porque ele tinha dois grandes projetos em Lisboa para serem licenciados, além de interesses em Loures, outra câmara do PS. Eu fui ouvido pela PJ.

E a PJ não fez nada?

É muito grave. A PJ ouviu, isto veio cá para fora para os jornais, foi investigado. O Armando Martins foi ouvido, o Vítor Gonçalves do PSD também e depois de nós sermos ouvidos passam meses e o Vítor Gonçalves telefona à inspetora e pergunta pelo processo. E ela diz que o processo tinha sido avocado a nível superior e não sabia o que tinha acontecido. Foi abafado. Mas há aqui uma coisa: é que quando ele assina aquela carta ao Armando já tinha sido aprovado na CML o regulamento do novo PDM e a planta de ordenamento do novo PDM que estava na altura em discussão pública e o novo regulamento permitia o que o Armando queria. O que o Salgado devia ter dito ao Armando era para ele esperar mais uns cinco meses até isto estar aprovado porque o novo regulamento já permita fazer o que ele tinha pedido. O que lixou o Salgado? É que como eu estava a trabalhar com eles na CML, na redação do regulamento do novo PDM, eu guardei as cópias todas dos vários documentos. E tenho aquilo que tinha sido aprovado para ser submetido em discussão pública na sessão de câmara, onde, antes do despacho do Salgado para o Armando Martins a dizer que não podia construir, já era permitido construir o necessário. Isto é ocultação de informação, abuso de poder, etc. Por que é que ao fim deste tempo todo ele não foi preso? Por causa dos interesses do grupo Espírito Santo. Aliás, eu continuo a achar que face a alguns processos que continuam a ocorrer na câmara, como a Quinta da Matinha, muita coisa ainda se vai descobrir. Esses terrenos eram da família Espírito Santo que passaram para um fundo fechado de que ninguém sabe quem são os verdadeiros proprietários…

Quando revela tudo isso não tem medo?

Tenho algum, mas neste momento estou a um ano da reforma, os meus filhos estão empregados, a minha mulher está reformada, tenho casa própria, tenho a licença de utilização passada, respeitei tudo. 

Como encara esta guerra dos arquitetos com os engenheiros?

Eu assinei a petição dos arquitetos, “A Arquitetura Para os Arquitetos”. Estou 100% de acordo com isso, não faz sentido nenhum, os engenheiros civis no meu tempo ainda tinham alguma cultura arquitetónica e hoje não têm nenhuma porque o curso foi sendo reduzido. No meu tempo eram seis anos, agora são quatro anos e meio. Mas temos de atender aos velhotes por essa província fora, mais do que nos centros urbanos, que toda a vida fizeram projetos de arquitetura porque nem sequer havia arquitetos. A Câmara Municipal de Évora, em 1979, tinha um engenheiro e um topógrafo, por exemplo. No interior, menos ainda, e era natural que os engenheiros fizessem os seus projetozinhos. Por isso, estou de acordo que se faça a exceção a pessoas que passaram a vida a fazê-lo para que possam continuar a assinar projetos. Antes, todos podiam assinar, depois só os arquitetos passaram a poder, e agora no fim só os arquitetos e os engenheiros formados até ao ano x é que podem assinar. Abriu-se de novo demasiado a porta. Os arquitetos têm de se convencer que não são os donos da verdade. Não é aceitável, por exemplo, que o Souto Moura – que eu admiro muito e se tiver oportunidade digo-lhe isto -proponha para a Praça das Flores aquele tipo de intervenção, como não é aceitável que esteja a impedir a reabilitação do quarteirão inteiro que ainda subsiste do século XIX/XX na Fontes Pereira de Melo, que tem os graffiti bonitos, porque os proprietários entregaram ao Souto Moura e ele disse que não é decorador de interiores e não quer respeitar as fachadas e quer deitar abaixo para fazer de novo. Só que o PDM não permite e então está-se à espera que aquilo caia. Isso já aconteceu em Entrecampos, com outro edifício. É inadmissível que uma ordem dos arquitetos se agache perante um dos seus sócios e deixe que um quarteirão do século XIX vá abaixo porque o senhor arquiteto diz que não faz sentido aproveitar a fachada, se a regra é aquela, isto não é admissível. O arquiteto tem de dizer que, face às regras, não aceita o trabalho e não impedir que a cidade progrida, porque é o único quarteirão em Lisboa que falta reabilitar.

E as coisas boas do seu trabalho enquanto vereador de Lisboa?

Quando Sampaio esteve na CML, a ideia da cidade era que Lisboa tivesse uma certa dimensão demográfica e com um certo peso, ao contrário do que aconteceu, que se passou dos 850 mil habitantes para menos de 550 mil em 30 anos: Queríamos que este núcleo central tivesse à volta de um milhão de habitantes, porque isso justifica uma série de investimentos e equipamentos. Além disso, queríamos que fosse uma cidade interclassista, com o modelo dos Olivais, de Alvalade ou do Restelo. Vivi no Restelo e ainda hoje há ali um afeto que se mantém dessa vivência e encontramo-nos pelos cafés. Era colocar Lisboa como capital europeia, daí o slogan “Capital Atlântica da Europa”, que era perceber o património da cidade, toda esta relação com o mar e uma área metropolitana que as pessoas exploram pouco: em 40 quilómetros vai-se para as florestas nórdicas de Sintra e vai-se para praias que só se veem em Miami. Onde é que há esta diversidade assim em tão pouca distância? Repor as ideias do Nuno Portas de que as pessoas deviam ser alojadas nos seus próprios locais. E em termos europeus, afirmá-la como uma cidade muito agradável para se poder viver e trabalhar. Nestes últimos anos, a ideia que vinga é aquela de que é preciso qualificar o espaço público nas zonas visíveis, e que interessa promover, para vender melhor do ponto de vista imobiliário.

Como a antiga Feira Popular.

Pois.

Não acredita na integração das classes sociais no terreno da antiga Feira Popular?

Não, isso foi abolido. A proposta da Helena Roseta no meu tempo, que depois não avançou porque ainda não estava fechada a situação com a Bragaparques, era de que os terrenos viriam a ter 40% de habitação, dos quais 15% a custos acessíveis. Na proposta atual, os 700 fogos que estão previstos a custos controlados são dos antigos terrenos da EPUL na Avenida das Forças Armadas, que já constavam do plano inicial e de uns edifícios da Segurança Social, cerca de 220, que era escandaloso que fossem para mais negócios à Robles na cidade de Lisboa. Aquilo que era o plano da EPUL, que o Salgado destruiu, foi transformado em escritórios. Tudo para mascarar o grande negócio dos terrenos de Entrecampos. Mas que fique claro que o que me separa de Manuel Salgado é que, para mim, em democracia uma cidade não pode ser desenhada por uma só pessoa, por mais brilhante que essa seja. Para mim, uma cidade é uma construção coletiva, onde não deve haver lugar para as ditaduras do politicamente correto ou das mentes iluminadas. Como também não deve ficar sujeita à ditadura dos negócios, do poder financeiro ou do poder político do momento.