A última lição de Marcelo

Marcelo sempre ensinou que a solução mais óbvia quase nunca é a correta, mas às vezes parece que ainda não o aprendeu

Marcelo Rebelo de Sousa deu a sua última aula na quinta-feira. Também fui seu aluno, de Direito Administrativo, na Faculdade de Direito de Lisboa

Estudante-trabalhador (já no jornalismo) mas sem desistir de fazer o curso durante o dia, fui quase sempre aluno de método B (que é como quem diz, frequentador de exames finais, escritos e orais) prescindindo da avaliação contínua – que correspondia ao chamado método A – porque o pouco tempo que me sobrava para a faculdade ainda tinha de dar para a frequência das obrigatórias cadeiras de matraquilhos e snooker.

Se ia a poucas aulas práticas, nas ‘catacumbas’, ia ainda a muito menos aulas teóricas – aquelas que eram dadas pelos professores de cátedra, como Marcelo Rebelo de Sousa.

E só poderei pecar por excesso se disser que fui a três das suas aulas.

Tanto que numa oral de Direito Constitucional, Jorge Miranda terminou dizendo-me que só lamentava que eu não tivesse feito «mais vezes o caminho para o anfiteatro 1». Com a vénia que sempre mereceu, ele lá sabia.

 

O facto de ter feito o curso quase todo em método B fez com que tivesse tido o privilégio de me cruzar em exames orais com professores como Jorge Miranda, Soares Martinez (pai e filho), Martim de Albuquerque e Pedro de Albuquerque e tantos outros. Mas não cheguei a apanhar Marcelo – quem me fez a oral de Administrativo foi o professor Vasco Pereira da Silva, à época assistente.

Não tenho por isso as recordações de Marcelo que muitos colegas meus têm.

Mas tenho lembrança de uma intervenção em particular.

Quando o anfiteatro 1 se encheu numa aula de História do Direito, de Martim de Albuquerque, em protesto contra a discriminação de um colega nosso invisual, Marcelo irrompeu sala dentro e acabou com a contestação, garantindo que não haveria discriminação. Foi também por sua intervenção que o nosso colega que mandou o professor Albuquerque «marrar com o comboio de Chelas» não acabou por ali com uma já longa carreira de aluno da FDL.

Se no Direito Constitucional o meu professor foi Jorge Miranda e as suas sebentas os meus manuais, juntamente com as anotações dos conimbricenses Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Administrativo as minhas referências foram as obras de Freitas do Amaral e Marcello Caetano.

Assim, em matéria de Direito, o que aprendi com Marcelo – e ainda assim foi muito – foi depois, ao longo da minha vida de jornalista de política, em que tantas vezes falámos sobre temas jurídico-legais e constitucionais – sobretudo quando eu fui editor de Política e do Primeiro Caderno do Expresso, altura em que mais me contactava ou me respondia às minhas tentativas de contacto, vá lá imaginar-se porquê.

Também é verdade que, nesse período, Marcelo foi líder do PSD e tivemos os referendos da regionalização e do aborto.

 

E uma das coisas que Marcelo ensina, na linha, aliás, da sempre boa escola de Direito de Lisboa, é que a solução mais acertada para um problema, jurídico ou não, raramente é  a que parece mais óbvia e imediata. 

Há que estar atento aos pormenores e ver as sub-hipóteses, porque a solução está quase sempre nos pequenos sinais e nas pistas que tantas vezes parecem menos óbvias e, porém, são-no.

É por isso que, deixando agora Marcelo professor e atendendo ao Presidente, há que perceber o que também esta semana veio comunicar ao país, a dois tempos.

Primeiro, em nota da Presidência da República, na quarta-feira, fez saber que: «Tal como esclareceu em Leiria no sábado passado e ainda ontem em Celorico de Basto, em resposta aos órgãos de comunicação social, o Presidente da República nunca manifestou, nem pública nem privadamente, qualquer posição sobre a matéria respeitante à nomeação do Procurador-Geral da República. Pelo contrário, sempre afirmou que essa matéria seria apenas objeto de apreciação uma vez apresentada a proposta pelo Primeiro-ministro».

Depois, no dia seguinte, anunciou a nomeação de Lucília Gago como procuradora-geral da República, confirmando a não recondução de Joana Marques Vidal.

A primeira nota fê-la Belém porque,  não obstante todas as posições (ou pressões) públicas das últimas semanas a favor da recondução de Joana Marques Vidal, Marcelo já sabia que não a iria reconduzir, uma vez que até já dera assentimento ao nome de Lucília Gago proposto por Costa. 

Havia por isso, e desde logo, que afastar o cenário de uma derrota política ou de uma cedência do Presidente.

Porque a verdade é que, muito embora o Governo desde há meses tenha deixado claro que não reconduziria Joana Marques Vidal – tendo por base o entendimento, que pelos vistos Marcelo também tem, de que o mandato do PGR deve ser não renovável -, o nome do Presidente foi sistematicamente invocado e associado aos defensores da recondução. E Marcelo nunca, até quarta-feira, se demarcou.

Porém, e usando léxico da FDL, estando embora a doutrina e a jurisprudência divididas  sobre a matéria, já há muito que era certo, mesmo que não óbvio,  que não havia volta a dar.

Tanto assim que Joana Marques Vidal aceitou participar, e botar palavra, sobre o futuro da Justiça numa sessão pública três dias antes de terminar o mandato. Quando aceitou fazê-lo, e tal foi divulgado, foi o mais claro sinal de que a 12 de outubro já não seria a procuradora-geral da República. Se o fosse, não falaria.

 

O professor Marcelo deu a última lição na quinta-feira, na Aula Magna. Mas o Presidente, que sabe muito, ainda tem  bastante para ensinar. E, como resulta de todo este processo, para aprender.

António Costa, em tempos idos, também foi aluno dele – e com toda a certeza foi muito mais vezes do que eu ao anfiteatro 1.