Carlão. ‘Vivemos uma altura boa para as pessoas assumirem o que são’

O tempo é sempre um balanço parcial. O Carlão é uma síntese do Pacman e do Algodão, personagens que habitaram o imaginário em construção de Carlos Nobre. Entretenimento?, o álbum dos quarenta mais três, coloca-o perante essa questão existencial e omnipresente ao longo do caminho, mas também perante um tempo de asfixia social e digital…

O tempo é sempre um balanço parcial. O Carlão é uma síntese do Pacman e do Algodão, personagens que habitaram o imaginário em construção de Carlos Nobre. Entretenimento?, o álbum dos quarenta mais três, coloca-o perante essa questão existencial e omnipresente ao longo do caminho, mas também perante um tempo de asfixia social e digital que mira do lugar do utilizador, sem falsos mantras.

O músico, contador de histórias, o observador e o pai de duas filhas fala sobre o quão complexo é viver uma vida banal. Em Almada, com varanda para Lisboa, como não poderia deixar no manual de quem aprendeu a ser e estar no meio de vários caminhos. 

O Entretenimento? parte de uma questão. As perguntas são mais importantes que as respostas? 

Não diria que são mais importantes mas sempre fez parte de mim questionar-me bastante. Deu-me muitas dores de cabeça (sorri). Questiono-me em quase tudo na vida. Houve uma pessoa que me disse que gostava muito de trabalhar comigo mas não conseguia porque me estava sempre a questionar. Sou de extremos: ou analiso tudo ou então nada. O Entretenimento? vem dessa forma de estar que é julgar o que faço, onde é que isso encaixa ou não, e este meio todo de que acabo por fazer parte, quer queira, quer não, que é o entretenimento. 

A resposta está em aberto? 

Sim, porque faço a pergunta para mim e para as pessoas. Há questões que nem têm uma resposta definitiva, ou aquela que é a resposta agora, pode não ser daqui a algum tempo porque tudo muda tão rapidamente. 

O questionar permanente traz inseguranças acrescidas?

Traz, mas há algum tempo que prefiro arriscar do que não fazer. Senão, não conseguiria viver da música. Há concessões que são pacíficas. A maneira como jogo o jogo é: na música, raramente faço concessões. Não digo nunca, porque já fiz, mas a música é intocável. No que está à volta da música – promoção, publicidade -, vou cedendo. Há coisas que se calhar preferia não ter feito, mas fiz e bola para a frente porque senão dou em louco. Claro que depois fico a remoer mas prefiro arriscar porque aquilo que tenho ganho é mais do que aquilo que tenho perdido. Conheço pessoas muito mais complicadas do que eu, e é pena que sejam porque acabam por diminuir o alcance [do trabalho]. Sem dar nomes, é como um ator que só aceita fazer teatro, porque televisão e cinema são artes menores, e ao recusar está a perder oportunidades de chegar a mais gente e fazer coisas interessantes. Aprende-se tanto quando estamos fora da zona de conforto. 

O que é que é aceitável e o que é que não é? Já fizeste publicidade. 

No caso da publicidade, depende. Já há muito tempo que, quando me pedem para cantar, recuso. Não quer dizer que amanhã, se me fizerem uma proposta multimilionária com liberdade criativa, talvez até pense duas vezes. Mas, regra geral, não é isso que acontece. Pedem-me para vender um produto, cantando. Para mim é complicado. Ainda agora, recusei uma proposta muito vantajosa para rimar a vender roupa. Para mim, não dá. Se quiserem usar uma canção minha, é outra questão. Não tenho a ambição de enriquecer. Gosto de ter os meus pequenos luxos, mas já recusei muita coisa porque não esse dinheiro não ia mudar a minha vida e as questões que me iria trazer seriam mais do que muitas. 

Arrependeste-te de teres aceitado o convite para mandatário da juventude da candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República em 2006?

Sim, arrependi-me. Não pelo Manuel Alegre, que é uma pessoa que admiro muito e era um sonho ter um poeta-presidente, mas pelo circo todo à volta de uma campanha eleitoral. Ainda que não fosse um partido, as pessoas dos partidos estavam envolvidas. Os códigos estavam lá todos. Fez-me muita confusão ir a um comício e mal abria a boca, já estava toda a gente a bater palmas. A meio do processo, apercebi-me que não era algo que gostasse de vir a repetir. Não quer dizer que, no futuro, não possa apoiar um candidato no qual me reveja mas aí seria sempre a pessoa e não o partido. Os partidos têm vícios muito difíceis de contrariar. Todos, sem exceção, mesmo aqueles com que me identifico. Cada vez mais as pessoas votam em figuras e não nos partidos. As coisas estão ligadas. Não sou descrente, só não voto se não puder, mas não tenho aquela fé. Há pessoas que estão [na política] pelas razões certas mas outras defendem interesses pessoais muito perigosos. 

Tens usado o caso do Donald Trump para exemplificar como o entretenimento se alastrou a setores «sérios» da sociedade. 

Sim, o Trump tem essa escola. Ele vem da televisão. Do entretenimento. As pessoas dizem que os tweets dele podiam ter sido feitos por uma criança de seis anos, e é verdade, mas também é verdade que a lógica é essa de mau entretenimento. Agora, o Obama também jogou esse jogo, só que de uma forma completamente diferente. Deu-se muito com músicos, foi buscar pessoas que, em condições normais, não se iriam relacionar com uma presidência, mas a verdade é que tanto ele, como a Michelle, também aceitaram fazer parte do entretenimento. Talvez de uma forma mais saudável. A política hoje também passa muito por aí. Estive no 5 para a Meia Noite e a Assunção Cristas estava ali mais à vontade e com menos pudor do que alguém do entretenimento teria. Está toda a gente ligada.

É impossível escapar?

Impossível não é, mas como em quase tudo há que saber dosear. Usar aquilo que deve ser usado como ferramenta, gozar o que podes gozar, mas sem sofreguidão. Às vezes, vou a sítios e as pessoas já estão à espera de um momento que seja O momento para ter uma notícia, para filmar…Na indústria do entretenimento, cada vez mais há essa noção e as pessoas vão armadilhando o caminho para arranjar um momento que só tenha acontecido ali e seja «wow!». E está toda a gente a viver em função disso. Quando se vai fazer uma entrevista a alguém, está-se sempre a pensar nisso quando dantes isso só acontecia num tipo de jornalismo. 

As razões certas são as razões para se estar na música durante tanto tempo?

(pausa) Talvez sejam. Não tenho a veleidade de achar só isso. Há uns anos, vi um documentário sobre uma peça encenada pelo Sam Shepard com ele, o Nick Nolte e o Sean Penn. Às tantas, perguntavam-lhes como é que se tinham tornado atores. O Nick Nolte falou sobre a elevação da arte e a responsabilidade. Dos dramaturgos russos, que são muito importantes e nobres – as razões certas. E a seguir o Sean Penn sai-se com esta: «Vi uma fotografia de um ator que gostava muito com umas botas espetaculares e pensei: também quero aquelas botas» (ri-se). E dali saiu um ator do caraças. Fartei-me de rir com a naturalidade e honestidade com que aquilo foi dito. Às vezes é mesmo assim. Há gajos que são músicos incríveis e começaram para engatar gajas. Às vezes, as razões certas são insuficientes. Conheço gente talentosa que não trabalha nada e quando dá um peido, sai uma coisa do caraças. Assim como conheço outros que davam um testículo para ter um décimo do talento, são sérias e honestas, mas depois a coisa não sai. Gosto de pensar que estou nisto pelas razões certas mas só isso não chega. 

Nunca te assumiste como rapper puro e duro mas sempre fizeste parte do movimento. Como é que observas a transição de movimento contra-cultural para novo normal?

É estranho. Nos anos 90, quando começaram a aparecer os primeiros nomes em Portugal, era algo muito marginal e com uma conotação muito negativa. Vias grupos a circular nas ruas, identificados com o hip-hop, a quem as pessoal chamava de raps. Era cena chunga, as pessoas olhavam de lado. Foi a última estocada do rock, que na altura era o mainstream, mas nada fazia prever esta transformação. Por um lado, fico contente que o hip-hop se torne mainstream porque dá visibilidade e oportunidade a pessoas que nunca tiveram. O que cada um faz com isso é outra questão, mas o ponto de partida é bom. A democratização dos meios também foi muito importante. O hip-hop permite mais isso. Uma banda pressupõe uma logística que o hip-hop não tem. Sacar um programa crackado dá para fazer a festa em casa. Em termos musicais, há coisas francamente boas e francamente más mas isso acontece sempre no mainstream. O que tenho a apontar é que deve haver um pouco de tudo. Gostava que houvesse mais uns quatro ou cinco Kendrick Lamars e menos quatro ou cinco Drakes. Há uma franja da sociedade com hipótese de mudar algumas coisas que ainda está super-deslumbrada, num registo que se lixe. É aproveitar, curtir e fazer dinheiro. Que é o estilo de vida do rock’n’roll. O pessoal do hip-hop são os novos rockstars, andam com as manequins e as atrizes, começam a morrer de overdose, e têm pouca profundidade. O rock mainstream também era assim, se calhar pior…

Como é que lidas com a pressão social?

Naturalmente, vou fazendo aquilo que me faz sentido. Tento não ser moralista, mas às vezes que tenho que ser. O ‘#Demasia’ é sobre isso. Se ninguém te falar sobre certas coisas, vais estar sempre na boa e é porreiro pensar. A música tem essa função. Pensei muito em coisas que fazia sem pensar através da música. Não deixa de ser curioso também que eu faça o vídeo para essa canção e a principal ferramenta de promoção seja o Instagram mas é tão válido como fazer um filme a criticar o cinema. A minha crítica não é para o meio – que é fortíssimo – mas para o uso que fazemos dele. Até eu encontro em mim alguns exageros mas nada que se compare com esta loucura. Sempre houve pedidos de autógrafos ou de quererem falar comigo mas já tenho passado por situações como ir na rua a ter uma conversa importante ao telefone, as pessoas perceberem mas ainda assim quererem tirar uma foto comigo. Então, estão quatro pessoas – dois casais -, tiraram uma foto comigo e foram-se embora. É um exagero. Não importa o meio para atingir o fim. Fica aliviado por não ter passado por isto na adolescência. Não teria lidado nada bem com isso. Há repercussões muito fortes numa fase tão crítica como a adolescência. Nem é uma questão de achar que é mau; não, é perigoso mesmo ser essa a moeda de troca para a vida. Preocupa-me. 

É preocupante para quem tem duas filhas, uma ainda criança e outra quase a entrar na adolescência?

É. Sou pai porque quis ser pai, e sempre fiz os possíveis para estar presente naquilo que é importante. Não consigo estar tão presente como gostaria mas nem eu, nem a minha mulher somos pais-helicóptero. A mais velha terá o seu telemóvel daqui a dois anos, quando fizer dez. Nas questões importantes, vou ter que me chegar à frente e ser pai que é não cortar o acesso, tentar conversar e contextualizar. Há sempre uma parte que escapa ao controlo dos pais mas sei que se lhes der aquilo que posso dar enquanto pai e amigo, pelo menos estarão mais preparadas. 

Como foi a tua educação?

Livre. Os meus pais estavam super-focados no trabalho. Era uma coisa geracional. A principal preocupação dos nossos pais era amealhar para o futuro e para os filhos, sacrificando a vida pessoal e social deles. Quase que posso contar as vezes que fui almoçar ou jantar fora com eles. Em um ano com as minhas filhas, vou mais vezes ao restaurante do que na minha vida toda de criança e adolescente com os meus pais. Vivemos uma época diferente em relação à paternidade. Por outro lado, os filhos são muito mais protegidos. A educação era mais delegada para a escola e, nesse sentido, fui muito livre. A minha escola nunca me conseguiu seduzir, por isso fui muito mais atrás daquilo que queria ver, ler e fazer do que dos livros. Mesmo os professores mais porreiros não podiam fazer grande coisa porque não tinham margem para isso. Seguiam um programa que não tira o melhor dos miúdos, nem é dado da maneira certa. Tenho consciência que chego aos vinte anos e podia ter um entendimento muito diferente do mundo se tivesse tido outras ferramentas educativas. 

Ter um irmão mais velho [João Nobre, fundador, baixista e principal compositor dos Da Weasel, com quem Carlão se reencontra em ‘Entretenimento?’ ] que importância teve?

Foi fundamental. Andei com pessoal mais velho, fosse com o meu irmão, ligado à música, ou com outras pessoas, deu-me uma bagagem precoce. Saía de Almada para ir ao King e ao Quarteto ver cinema europeu e a maior parte dos meus amigos dizia que eu era maluco. Não percebiam aquilo e algumas vezes, honestamente, nem eu percebia (gargalhada). Mas tinha essa vontade de aprender porque sempre fui curioso. 

Sentias-te alienígena?

Um pouco. Passei por um período de me adaptar a uma série de grupos. Houve a fase do metal, deixei crescer o cabelo mas ele ia para cima. Carapinha (gargalhada). Tive uma fase mais gótica, fui vanguarda, até que cheguei a um ponto em que percebi que era tudo e não era nada e assim é que estava bem. Como me sentia alien, tentava adaptar-me mas uma parte de mim dizia-me que algo não estava certo. No secundário, só uma ou duas pessoas é que ouvia Pop Dell’Arte. 

‘Muito escuro para branco/muito claro para preto’, descreves na letra do ‘Comité Central’. Não és do rock nem do rap. És de Almada mas vives em Lisboa. Estar no meio é a tua história?

Durante boa parte da minha vida, foi difícil encaixar. Agora vai sendo mais pacífico mas continua a ser muito difícil encontrar alguém e dizer que eu sou esse tipo de pessoa. Mesmo os mulatos têm coisas que não tenho. Desde bebé que estou no meio, por causa do tom de pele e das feições. Tive de arranjar uma maneira de viver com isso. E no final do dia, é fixe porque te torna muito mais compreensivo e tolerante. Nem tens moral para não ser. Mas durante muito tempo fui o Zelig do Woody Allen. Estava com alguém e transformava-me naquilo.

E de repente tens os outros a quererem ser como tu. 

Pois, isso aconteceu. Vivemos uma altura muito boa para as pessoas assumirem o que são com as suas especificidades. Não terem medo de não encaixar. Fico mesmo contente porque sofri bastante com isso. 

E não há o risco de uma nova higiene social?

Sim, é o reverso da medalha mas a importância disso é sempre menor do que o bem que daí vem. Alguém escrever num relatório front hole [em vez de vagina], para não ferir suscetibilidades, é mais cómico do que sério. É mais importante alguém ter o direito de ser chamada daquilo que quiser do que depois as questiúnculas desses debates. Há merdas ridículas. Quando se mudam código sociais e costumes, os primeiros embates vão ter que ser exagerados. As revoluções fazem-se com sangue porque não há outra maneira. É o preço a pagar. Há coisas que me assustam no politicamente correto mas fico sempre mais contente com as batalhas ganhas pela minorias do que com as consequências menos boas. 

O que é que ficou do Pacman no Carlão?

Já era Carlão antes de ser Pacman. Gosto de pensar que estou em constante evolução. Cada vez me chateia menos não concordar com algo que tenha feito. A ciência é assim. O que se dizia há 50 anos não é o mesmo que se diz agora. Continuo a ser a mesma pessoa e o que sou é um apanhado não só do que fiz como Pacman mas também do Algodão.

Aborrecem-te tantas perguntas sobre o regresso dos Da Weasel?

Aborrece-me quando é para criar o soundbyte, porque não há mais do que isso. Outra coisa é alguém ser mega-fã e só viu um concerto ou nunca viu, porque muita gente foi chegando [depois do fim dos Da Weasel em 2010]. 

O tempo diluiu o Pacman dos Da Weasel e normalizou o Carlão?

Talvez. Nos primeiros cinco ou seis anos, pós-Da Weasel, toda a gente me chamava Pacman e hoje é Carlão. Só por aí…

O momento antes do palco ainda assusta?

Stresso sempre muito mas sim, ainda não sou aquele gajo que diz piadas antes dos concertos. Fico no hotel, como qualquer coisa leve e só depois de estar com os pés no palco é que estou bem. Consome-me muito. Não sou máquina de concertos. Mas agora tenho as minhas filhas que me dão um equilíbrio diferente. É uma âncora. 

Vês a tua vida a muito tempo?

Tenho algum medo disso mas vou vendo. Vai passar muito por aquilo que gostava de experimentar para além da música. E por trabalhar com muita gente e descobrir outras formas de fazer as coisas.