Pedofilia e revolta na Igreja

Mais do que a autoflagelação pelos crimes de pedofilia, a Igreja devia ocupar-se em precavê-los, ponderando tudo – desde a vida nos seminários ao celibato dos padres 

O FACTO de não ser católico dá-me a possibilidade de tratar este tema com distanciamento. É um assunto perturbante. Para lá dos próprios crimes cometidos, que são gravíssimos, o caso da pedofilia traz à discussão vários tabus que a Igreja se tem recusado a pôr em causa, como o celibato dos padres.

Parece evidente que há uma relação entre uma coisa e outra. O celibato dos membros da Igreja Católica, a proibição das relações com mulheres, pode conduzir a desvios sexuais.

E a educação em ambiente de internato, nos seminários, também pode contribuir para o fenómeno. Todos sabemos como os colégios internos ingleses eram palco de relações homossexuais ou pedófilas.

É CERTO que a insistência no tema tem também a intenção de fragilizar a Igreja. As notícias quase diárias, o desenterrar de episódios com 70 anos, o somatório de casos que atinge proporções gigantescas se não tivermos em conta que ocorreram ao longo de várias décadas, visam obviamente provocar desgaste na instituição.

Acusa-se ainda a Igreja de não ter dado desde o início a importância que o caso merecia, tentando escondê-lo ou desvalorizá-lo. Em vez de expulsar os padres praticantes de pedofilia, expondo-os à condenação judicial, a hierarquia católica preferiu transferi-los e esconder os seus pecados.

Mas não é isso que fazem todas as instituições quando são acusadas de crimes graves? Como reagiu o Partido Socialista quando rebentou o escândalo Casa Pia e alguns dirigentes seus foram acusados de pedofilia? Abriu-se à investigação e aceitou a culpabilização dos suspeitos? Ou fechou-se, defendeu os acusados e atacou os investigadores e o Ministério Público?

A PEDOFILIA é um crime grave e tem de ser erradicado. Ponto final. O facto de ter sido tolerado ou mesmo incentivado em certos lugares e civilizações – onde chegava a ser visto como um sinal de sofisticação – não serve de atenuante. Está hoje provado que os abusos sexuais de crianças provocam traumas para toda a vida.

Perante isto, mais do que a autoflagelação pelos crimes de pedofilia, os responsáveis da Igreja Católica deviam ocupar-se em tomar as iniciativas necessárias no sentido de os precaver. Tudo deve ser ponderado. A vida nos seminários. O celibato dos sacerdotes. A interdição da carreira sacerdotal às mulheres.

É esta reflexão que se pede hoje à hierarquia da Igreja, a começar pelo Papa.

MAS ATENÇÃO: não é honesto confundir a parte com o todo, suspeitar de todos os padres e muito menos reduzir a Igreja à pedofilia.

Impressionou-me a carta de um sacerdote católico, Martín Lasarte, dirigida ao The New York Times, que circula nas redes sociais. Independentemente da autenticidade da carta, o que nela importa reter é o conteúdo. E este é um grito de revolta pela colagem à Igreja do rótulo da pedofilia e pelo esquecimento da ação humanitária dos padres católicos. Padres que não só não violam crianças como as salvam da morte aos milhares. 

A carta começa assim: «Sou um simples sacerdote católico. Estou feliz e orgulhoso da minha vocação. Há vinte anos que vivo em Angola como missionário.

Vejo em muitos meios de informação, sobretudo no vosso jornal, a ampliação do tema dos sacerdotes pedófilos, com investigações de forma mórbida sobre a vida de alguns sacerdotes».

E CONTINUA: «Considero que, ao vosso meio de informação não interesse saber que, eu em 2002, passando por zonas cheias de minas, tenha devido transferir muitas crianças desnutridas de Cangumbe para Lwena (em Angola), porque nem o governo se importava, nem as ONG’s estavam autorizadas. E penso que também não vos importa que eu tenha tido de sepultar dezenas de criancinhas, mortas na tentativa de fugir das zonas de guerra ou procurando regressar, nem que salvamos a vida a milhares de pessoas no México graças ao único posto médico em 90.000 Km2, e graças também à distribuição de alimentos e sementes. 

Não vos interessa também saber que nos últimos dez anos demos a oportunidade de receber educação e instrução a mais de 110.000 crianças…

Não tem uma ressonância mediática o facto que, com outros sacerdotes, eu tive de fazer frente à crise humanitária de quase 15.000 pessoas guarnições da guerrilha, após a sua rendição, porque não chegavam alimentos nem do Governo, nem da ONU.

Não faz notícia que um sacerdote de 75 anos, Padre Roberto, todas as noites percorra a cidade de Luanda e cuide dos meninos da rua, os leve para uma casa de acolhimento na tentativa de os desintoxicar da gasolina e que às centenas sejam alfabetizados». 

CONCLUI O PADRE: «Não é minha intenção fazer uma apologia da Igreja e dos sacerdotes. O sacerdote não é nem um herói, nem um neurótico. É um simples homem que, com a sua humanidade, procura seguir Jesus e servir os seus irmãos. Nele existem misérias, pobreza e fragilidade como em cada ser humano; mas existem também beleza e bondade como em cada criatura…

Insistir de forma obsessiva e persecutória sobre um tema, perdendo a visão do inteiro, cria realmente caricaturas ofensivas do sacerdócio católico e é disto que me sinto ofendido».

Percebo muito bem a revolta deste padre. Qualquer de nós, no lugar dele, sentiria o mesmo.