A comédia de enganos…

Estava escrito nos astros que Joana Marques Vidal não seria reconduzida na Procuradoria. E, no entanto, a sua investidura num segundo mandato teria sido o gesto político mais inteligente de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa.  Seria a demonstração pública de que a sua continuidade no cargo daria maior fôlego a uma linha…

Estava escrito nos astros que Joana Marques Vidal não seria reconduzida na Procuradoria. E, no entanto, a sua investidura num segundo mandato teria sido o gesto político mais inteligente de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa. 

Seria a demonstração pública de que a sua continuidade no cargo daria maior fôlego a uma linha de atuação independente e sem cedências, alargando o combate ao crime de ‘colarinho branco’ – e à corrupção sob vários disfarces -, alheio à relevância social ou política dos atores envolvidos. 

Todos perderam a condição de intocáveis, embora muitos continuem impunes, confiados nas demoras da Justiça, nos expedientes processuais de advogados de elite, ou no cenário de um arquivamento, ganhando na secretaria o que temem perder em julgamento. A Operação Marquês ou o colapso do Grupo BES são exemplos superlativos. 

O atual Governo está infestado de ‘socráticos’, que nunca esconderam a sua obediência e fidelidade ao ex-primeiro-ministro. O próprio primeiro-ministro em exercício foi braço-direito de Sócrates e defendeu-o, em não raras ocasiões, enquanto perorou na Quadratura do Círculo, na SIC-N. 

Já o Presidente da República, ao tempo de comentador na TVI, fez questão em assumir a amizade antiga que o ligava a Ricardo Salgado. Feita essa ‘declaração de interesses’, e ainda que presumivelmente incomodado, não se furtou a pronunciar-se sobre as suspeitas que envolviam – e envolvem – o amigo, com estragos que deitaram por terra o BES. 

Seria por isso expectável que ambos patrocinassem um novo mandato de Joana Marques Vidal, a cuja determinação e coragem se devem as insónias de alguns ‘poderosos’, acusados de não poucas malfeitorias…

Mas tal não aconteceu – e há que tirar o chapéu à meticulosa encenação montada com grande antecedência. Francisca Van Dunem, com o fato de ministra da Justiça, prestou-se a um papel impróprio, ao declarar inopinadamente, numa entrevista em janeiro, que, no seu entender, a Constituição previa um mandato único para o titular da Procuradoria-Geral da República. Um erro imperdoável numa jurista veterana, ademais magistrada oriunda do Ministério Público.

Era o ‘balão de ensaio’ de que o Governo necessitava para sondar reações – incluindo as corporativas -, já que na família socialista a substituição de Joana Marques Vidal era há muito ponto assente.

A polémica que se seguiu – e a desautorização que ouviu, na altura, de vários constitucionalistas – obrigou a ministra a emendar a mão e a explicar agora a decisão do Governo à luz do «princípio de único mandato».

Curiosamente, na nota publicada pela Presidência da República, Marcelo não validou a tese do mandato único da PGR mas, sim, «a limitação de mandatos em homenagem à vitalidade da democracia», o que não é bem a mesma coisa. 

À letra, percebe-se a nuance do professor de Direito. Na prática, a sintonia institucional com Costa foi total, apesar de nem conhecer pessoalmente a indigitada, como revelou. Assinou de cruz.

No seu comentário televisivo, Luís Marques Mendes trouxe, ainda, outra achega relevante. E exibiu o documento assinado pelo PS e o PSD, datado de 1997, onde ambos os partidos se comprometiam num acordo de revisão constitucional, fixando o mandato do procurador-geral em seis anos, podendo ser renovado sem qualquer limite.

«Isto está escrito e foi assinado por PS e PSD», enfatizou Marques Mendes, omitindo, contudo, que, à época, era Marcelo o presidente do PSD.

Justa ou injustamente, Marques Mendes costuma ser visto como porta-voz informal de Marcelo na SIC. Por isso, ao admitir como muito provável a recondução de Joana Marques Vidal, dando força aos rumores que corriam nesse sentido, a hipótese adquiriu o estatuto de dado adquirido.

Fê-lo, aliás, na linha da manchete do Expresso, do mesmo grupo de media, que, na edição de 15 de setembro, titulava: Acordo à vista para manter a PGR. Era o que convinha para despistar quem reclamava a continuidade da procuradora-geral.

Desmentido pelos factos, Marques Mendes apresentou-se em antena, sob indisfarçável tensão, com o ‘trabalho de casa’ feito para resgatar o passo em falso. 

Seria de esperar que o ‘navio-almirante’ de Balsemão – cuja robustez e credibilidade já conheceram melhores dias – esclarecesse também, na edição seguinte, por que errou, revelando em defesa própria por quem foi manipulado ou se foi incompetente. Em vez disso, o Expresso publicou uma nota editorial pífia e envergonhada, nem sequer assinada pela direção (o diretor Pedro Santos Guerreiro limitou-se, pudicamente, a remeter o leitor da sua coluna para a nota editorial, como se não fosse nada com ele), onde reconhece o óbvio, ou seja, que falhou onde não podia falhar. 

Não foi caso único na imprensa. O Observador também errou, ao anunciar online que «estava tudo pronto» para a recondução da PGR. Mas, ao menos, o seu diretor, Miguel Pinheiro, soube assumir o deslize do jornal e a responsabilidade, em texto assinado. .

O timing para o desfecho da ‘novela’ da PGR, encenada ao longo de meses, voltou a ser perfeito, incluindo a farsa posta em cena pela ministra da Justiça, ao consultar os partidos quando tudo estava decidido. 

O anúncio surgiu de supetão, a meio de um jogo de futebol transmitido em direto num dos canais de TV, e no rescaldo mediático da última lição de Marcelo na Faculdade de Direito. António Costa levava a sua avante. 

Bem andou Pedro Passos Coelho ao quebrar o silêncio, publicando uma carta aberta no Observador, na qual estranhava não ter havido «a decência de assumir com transparência os motivos que conduziram à sua substituição». 

Ao contrário de Rui Rio, fértil em atitudes dúbias – e que, só depois de humilhado pela substituição consumada sem o ouvirem, veio elogiar o mandato da PGR (o que não se passou com Cavaco, que impôs a Sócrates a consulta ao líder da oposição, antes de nomear Pinto Monteiro para PGR) -, Passos Coelho foi frontal ao reprovar a decisão do Governo, secundada por Marcelo.

E Cavaco não lhe ficou atrás, saindo da sombra com um comentário sibilino, ao considerar que «esta decisão política de não recondução de Joana Marques Vidal é, talvez, a mais estranha tomada no mandato do Governo que geralmente é reconhecido como ‘geringonça’». Certeiro.

Ficam para a história os rumores cirúrgicos postos a circular. Joana Marques Vidal desmentiu, aliás, um deles, com liminar crueza, ao esclarecer que «a hipótese de ser reconduzida nunca me foi colocada».

O sigilo foi protegido ao milímetro. Só faltava remover o juiz Carlos Alexandre para que a paz voltasse a reinar na oligarquia, o que aconteceu ontem. 

Aquando da substituição da PGR, José Sócrates apressou-se a irradiar felicidade. 

Compreende-se o regozijo. Quem conseguiu sentar na primeira fila, no lançamento de um seu livro, o ex-PGR Pinto Monteiro e o ex-presidente do Supremo, Noronha do Nascimento, não poderá conformar-se com a pertinácia do Ministério Público e achará intolerável que a PGR não tenha travado as investigações, nem tenha desistido de levá-lo ao banco dos réus. 

Sócrates inventou, à míngua de outros argumentos, estar a ser perseguido pelas ‘direitas’ «cumpliciadas» com o Ministério Público, enquanto os seus advogados somavam recursos para impedir a marcha inexorável do processo. Achou-se «preso político» quando esteve detido preventivamente no estabelecimento de Évora. E, até hoje, não mudou de tática nem de auto vitimização. 

Sócrates não tem emenda. E confiará – como Ricardo Salgado – que tudo se vá arrastando nos corredores dos tribunais, extinguindo-se num arquivamento, sem nunca chegar a julgamento. 

É essa expectativa que a sucessora de Joana Marques Vidal terá de contrariar, como prioridade. Se Lucília Gago, a futura PGR, vacilar, as comparações ser-lhe-ão fatais. A corrupção está em alta e vai dar-lhe muito trabalho. 

A Justiça não poderá ficar refém de interesses ocultos nem prestar-se a uma comédia de enganos.